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BRASIL

Pandemia e suas consequências: a dialética na formulação do programa político

Boris Vargaftig, de São Paulo, SP
Marcos Corrêa/PR/Fotos Públicas

O confinamento emergencial, hoje a única defesa comprovada contra a extensão da pandemia Covid-19, impede iniciativas políticas presenciais. Com a honrosa exceção dos trabalhadores da saúde, notadamente as enfermeiras do DF, da torcida corintiana e dos antifascistas de Porto Alegre, há pouca presença nas ruas e os assassinatos na periferia persistem, como se nada houvesse – o último, um menino de 14 anos!

Há uma contradição aparente entre a luta pela sobrevida, que obriga a aceitarmos as recomendações da ciência e por outro lado, a necessidade imperiosa de serem preservadas as condições para as lutas populares. Esta contradição é entretanto formal, e não dialética, pois ignora as interações entre os dois termos, sobrevida e luta.

A defesa da sobrevida não implica em abandono das reivindicações e da defesa de um programa dito de transição

A defesa da sobrevida não implica em abandono das reivindicações e da defesa de um programa dito de transição, bem ao contrário, como generaliza Trotski quando afirma: “É preciso ajudar as massas no processo de suas lutas cotidianas a encontrar as pontes entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Esta ponte deve consistir em um sistema de reivindicações transitórias que parta das atuais condições e consciências de amplas camadas da classe trabalhadora e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: sua conquista do poder pelo proletariado”. (1)

Isto significa que a defesa da saúde é indissociável de um aprofundamento da consciência da população trabalhadora e que as dificuldades de hoje podem constituir fonte da consciência de que as desigualdades em provir cuidados e saúde só serão sanadas com um programa que extravase o capitalismo. Este é o programa de transição. Como esta consciência não existe hoje, embora intuitiva para muitos, é no apoio e incentivo às medidas salvadoras atuais que o movimento socialista deve se apoiar para conscientizar da necessidade de luta por outra organização social.

O programa de transição se aplica a outros terrenos de luta e reivindicações, como por exemplo à oposição entre o ensino público e o privado e envolve relações com aliados de classe e com a chamada Frente Ampla, o “Todos Unidos contra Bolsonaro”. Eis uma palavra de ordem simpática, mas ambígua, porque reúne adversários de classe. Isto deve ser clarificado.

Dois governadores reacionários, há pouco desconhecidos e eleitos graças à sua aliança com Bolsonaro (“bolsodória”), souberam aproveitar da situação, abrandar ligeiramente suas manifestações de barbárie para adotarem, mui respeitosamente, as recomendações da ciência contra o vírus. Passaram a apoiar o confinamento. Poderão no futuro se vangloriar de terem reduzido o número de mortos. Não se trata de enfraquecer a luta, ao excluirmos adversários de ontem, mas de correr o perigo – diria eu, a certeza – de traição ulterior.

Preferível manter a política de se opor a Bolsonaro, pregando a destituição de sua chapa, sem rejeitar que outros se oponham, por suas razões que podem não ser as nossas. Os motivos da oposição entre a esquerda e ex-aliados e talvez futuros, de Bolsonaro, cujos eleitorados em parte aliás se confundem, são tão diversos que qualquer negociação com estes direitistas só pode criar confusão e desorganização na frente única de classe. Esta deve reunir sindicatos e associações de defesa profissional e dos direitos humanos, organizações sociais e de minorias, notadamente de negros e organizações políticas que se reclamem da esquerda, reunidos em torno de um programa, que é mais próximo possível do programa de transição, mesmo se nesse caso o acordo e portanto alguns recuos programáticos podem ser necessários.

A avaliação dos dados de incidência e mortalidade da pandemia carrega um defeito idêntico ao das avaliações globais da opinião pública: não levam em conta que a sociedade é dividida em classes e que os trabalhadores não podem manter seu confinamento, pois vivem em bairros desprovidos de condições sanitárias básicas, em alojamentos diminutos abrigando várias pessoas etc. O confinamento voluntário lhes é impossível, agravado pela redução drástica de seus rendimentos. Esses fatos evidentemente, falseiam as estatísticas globais.

Por outro lado, o confinamento varia de um a outro bairro, de um estado a outro, o que reduz a eficácia das medidas em curso e conduz a uma inevitável disseminação da epidemia. (2) Uma verdadeira coerência nesta luta, com a coparticipação de todos países em causa, exigiria a ausência de submissão aos imperativos de classe e à subserviência ao imperialismo norte-americano, portanto a expressão da luta estratégica por outra sociedade. A Organização Mundial de Saúde (OMS) não tem poder, mas explicita sérios argumentos científicos, e mesmo assim sua presença incomoda os neofascistas, opostos a qualquer posição de bom senso, de aceitação das análises e recomendações científicas que lhes evocam o chamado multicentrismo. Num texto cuja localização não recordo (talvez na “A doença infantil…), Lenin descreve um cenário que serve de bom exemplo: você está de carro numa estrada, surgem assaltantes, que exigem todos seus valores e documentos em troca de sua vida; você aceita a chantagem ou em nome de seus princípios, os recusa, sua vida estando ameaçada? Claro que os aceita. Sem nenhuma argumentação pejorativa,  é essa nossa situação frente à OMS, a limpidez de seus argumentos nos obriga, já que nossa sobrevida está em causa, a aceitar suas recomendações.

Feuerbach, filósofo materialista pré-marxista, cujas virtudes Marx reconheceu ao ultrapassá-lo conceitualmente, dizia que não se pensa da mesma forma numa choupana ou num palácio. Esta simples evidência é ocultada pela luta ideológica mediática, religiosa, intelectual, das classes dominantes, que visa suprimir o pensamento independente, fonte de problemas. Certas avaliações, assim como os pleitos eleitorais, compartilham do mesmo pecado: globalizar as opiniões implica em esconder quem pensa e o que pensa. Isto se torna mais claro nas eleições locais, quando bairros podem ser avaliados em função de sua composição social. Mesmo depois da instalação de um governo de trabalhadores, quaisquer que sejam suas formas, os resultados serão diferentes no Jardim Europa ou em Brasilândia… Por isso, a unanimidade eleitoral, sonho dos reformistas para hipotéticas vitórias tranquilas, é menos relevante para o campo  de esquerda que os valores setorizados. Acrescente-se um dado essencial, aparentemente contraditório: Trotski o analisou magistralmente, em “Revolução e Contra-Revolução na Alemanha” (3) ao afirmar que a vitória socialista é impossível sem uma ampla coalizão de classe, o problema sendo a definição de “ampla”, que determina o programa, para fazer com que a direção do processo seja ganha pelos elementos mais avançados, com o apoio conquistado da base popular.

Como resolver o dilema de pregarmos uma Frente Única de esquerda e, ao mesmo tempo visarmos, com aliados temporários, o mesmo objetivo limitado, que é a destituição do governo neofascista? A chave está no termo “momento”. Opomo-nos ao mesmo adversário/inimigo, mas cada qual de seu lado. Não há problema em “visarmos”, por razões certamente diversas, na mesma direção que o super neoliberal Dória e, apesar de compreensível repulsa, na mesma direção que Witzel, contra seu antigo aliado e apoiador. Foi por razões eleitoreiras que eles decidiram atacar Bolsonaro, mas poderão se reconciliar, desta vez contra a esquerda. “Visar” juntos não implica em negociar um projeto a médio ou longo prazo, é mais um “contra” do que um “a favor”. Isto difere fundamentalmente de uma frente única de classe, e eis onde a referência a Trotski tem grande valor.

O trotskista Mario Pedrosa, em sua introdução de 12 de janeiro de 1933 a “Revolução e Contra-Revolução na Alemanha” (4) (portanto 17 dias antes da tomada legal do poder por Hitler e asseclas, não insistirei na analogia com os dias de hoje), citava Marx, ao falar da revolução de 1848: “Depois de uma revolução, a contrarrevolução permanente torna-se para a coroa uma questão de existência cotidiana”. Ao se referir à política ultra-esquerdista do PC Alemão, que rejeitava a frente única com os socialistas, Pedrosa completava: “Os destinos da revolução alemã dependem apenas da conquista dos operários socialdemocratas”. Neste plano, a comparação entre a Alemanha pré-nazista dos anos 1930 e o Brasil de hoje pode levar a se pretender mecanicamente que o eleitorado a ser conquistado para derrotar os fascistas nas urnas seria de igual constituição, social-democrata na Alemanha e lulista no Brasil. Esquece-se uma imensa diferença: a derrota política na Alemanha foi precedida pela política absurda do PCA, que rotulava os socialistas de “social-fascistas” quase até a derrota final, enquanto que no Brasil não existe senão uma caricatura de PC, o chamado PCdoB, e a derrota ocorreu antes da vitória eleitoral de Bolsonaro, 2016 preparando 2018. Mais importante, o PT perdeu-se ao aderir aos planos liberais da grande burguesia e do imperialismo. Continua a ser um grande partido, mas não dirige lutas, só pensa em alianças eleitorais. Para simplificar, prefere a Frente Ampla à Frente de Esquerda. Poderá talvez mudar, mas duvido.

Foi a ausência da frente única de classe, tarde demais e mal constituída, que possibilitou a vitória do nazismo

Foi a ausência da frente única de classe, tarde demais e mal constituída, que possibilitou a vitória do nazismo – que o PC considerava àquela altura como inevitável e muito, mas muito mesmo, provisória! Eis a frente única de classe que não vigorou, como vigorou parcialmente na França, mas prejudicada pelas presença dos chamados radical-socialistas na Frente Popular de 1936 Ao diluir seu caráter de classe, seu programa foi esterilizado, levando à derrota em 1938, a governos reacionários e à subsequente vitória nazista que martirizou a França até 1944-1945. Reconhecer esses fatos históricos não é mero enfeite cultural, porque sua compreensão auxilia a interpretar também a situação brasileira.

Voltemos aos problemas de saúde. Contraditoriamente, a luta contra a pandemia tem um aspecto pluriclassista, que a própria burguesia e seus governos precisam considerar: não bastam medidas imediatas, que são evidentemente necessárias. A total desigualdade dos investimentos na saúde, agravada pelos planos neoliberais de Guedes e pelo peso do setor privado e pelos indecentes planos de saúde, hospitais privados de luxo, etc. prejudica evidentemente a luta contra a pandemia – a isto se somam os delírios negacionistas, anticulturais e anticientíficos da extrema-direita.

Assistir à famosa reunião do ministério dos impropérios, lembra as criticas preconceituosas do andar de cima contra a sintaxe de Lula: a burguesia enfurecida, as senhoras de bem (sic) indagavam, escandalizadas, como era possível um “tamanho ignorante” representar o país: hoje parecem menos preocupadas – e sua própria sintaxe, sobretudo os acordos verbais, são em geral bem deficientes. Se passarem provisoriamente à oposição, tudo farão para condenar a pessoa de Bolsonaro, respeitando seu vice, defensor de tudo quanto Guedes preconiza. Daí a absoluta necessidade de se combater pela anulação das eleições de 2918 e por eleições gerais. Eis outra diferença de peso com as forças burguesas que, ao “descobrirem” que Bolsonaro e asseclas atrapalham mais do que ajudam, querem eliminá-lo, mas evocando razões formais que preservem o vice e Guedes, e assim continuarem a jogar as pretendidas “reformas” nas costas dos trabalhadores.

Reunindo os dois conceitos, volto a uma tentativa de análise programática dos dois temas essenciais nos dias de hoje: a saúde e o programa de transição. Fala-se em fila única nas UTIs, em vista do esgotamento da capacidade de acolhida do setor público, prejudicado pelo sub financiamento crônico. Evidentemente, o patronato se opõe, argumentando que a fila única o impediria de honrar compromissos com subscritores pagantes e apresentando outras patologias. Para um neoliberal, estamos próximos do comunismo, da divisão “injusta” dos cuidados, já que uns (as classes abastadas) pagam os convênios e outros (os trabalhadores), não. Fica oculto o fato que os trabalhadores são onerados ao menos em três planos: social e urbanístico, pelas suas condições de vida, educação, saúde, limpeza pública, transportes etc; pelos impostos que pagam, quando os capitalistas, sobretudo os multimilionários, desfrutam de mecanismos que reduzem o que poderiam e deveriam pagar; e finalmente, pelo que é mais importante, política e socialmente, porque produzem mais-valia, parte da hipotética remuneração pelo seu trabalho que não lhes retorna, mas é apropriada pelo sistema capitalista.

Isto é irreconciliável e constitui um argumento adicional contra formalização da chamada “Frente Ampla”, que mais uma vez levaria o movimento operário organizado ou em vias de sê-lo, a reboque das soluções burguesas, contrárias aos seus interesses imediatos e permanentes.

Não se trata de uma guerra teórica, com consequências estéticas ou ao máximo, de conclusões literárias. O Estado é uma estrutura de classe e, no caso, é burguês, capitalista. Isto é flagrante, basta ver a pressão contra os salários e direitos adquiridos em lutas anteriores, o aumento da duração de tempo de trabalho etc. Esta crise também sanitária terá sido enfrentada com maior ou menor perícia, mas com vistas à preservação e fortalecimento da economia e do regime capitalista, e já está sendo utilizada para, na calada da noite ou da pandemia, promulgaram leis retrógradas. Em outras circunstâncias como na França em 1938-39 ou na Alemanha de Bismarck com as leis anti-socialistas, a crise foi pretexto para o mesmo tipo de “solução”, aumento da carga dos trabalhadores, supressão de liberdades e reforço do capitalismo.

O capitalismo fracassou mundialmente

Após a pandemia, o projeto de reconstrução da saúde publica coloca o problema: vai-se construir uma escola e um hospital, ou alternativamente uma prisão ou um empreendimento imobiliário para a classe média? É o mesmo tema de luta após guerras devastadoras: qual o projeto de sociedade a ser instituído e baseado em que forças sociais?

A estatização do setor privado, sob controle e iniciativa dos trabalhadores que finalmente, salvaram-no no momento da crise, permitiria um plano nacional, de caráter igualitário, eliminando e estatizando os convênios e demais arapucas, controlando e progressivamente incorporando ao SUS renovado, com organismos de controle dos usuários e trabalhadores da saúde, todos aparatos que transformam saúde em mercadoria.

Restariam organizações científicas e de cuidados que floresceriam ao escaparem do capitalismo dominador. Eis um esboço de programa de transição: medidas dentro do capitalismo, que extravasam entretanto para o vislumbre de outra sociedade, ao se apoiarem em mobilizações classistas e apresentarem outro projeto para a população e a humanidade.

 

NOTAS

1 –  L. Trotski  “O Programa de Transição”, 1938,  publicado por Tykhe, www.tykhe.com.br, e presente em livros de obras escolhidas ou completas.

2 – Juntos contra o Covid Mapa: https://juntoscontraocovid.org/map.html  

3 – Livraria Editora Ciências Humanas, SP, 1979

4 – Ibid.