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MUNDO

Homem negro, inferno branco: Minneapolis em chamas

Gabriel Santos, de Maceió, AL

“Fogo nos Racistas”
Gustavo Marques; Djonga


Um mês atrás um jovem foi assassinado a tiros por moradores de um bairro nos Estados Unidos. Ahmaud Arbery era um jovem negro e fazia exercícios correndo no bairro quando foi alvejado. Seus assassinos eram supremacistas brancos. Na segunda-feira desta semana, 25, George Floyd, um homem negro, foi assassinado por um policial branco. George Floyd foi algemado, teve o rosto colocado no chão, e gritava que não conseguia respirar, enquanto o policial apertava seu pescoço. Ele foi sufocado até a morte.

Durante a noite e a madrugada de ontem ocorreram o terceiro dia seguido de protestos em Minneapolis, cidade de Floyd. A delegacia do local foi incendiada. As cenas e fotografias se espalharam e rodaram o mundo. A imagem das chamas consumindo delegacias e carros de policia enquanto jovens negros se orgulhavam do feito pareciam cenas finais de um filme escrito e dirigido por Quentin Tarantino. Não se tem registros de momento como esse no país em décadas. Eram do mundo real, cenas de uma revolta negra feita contra a violência policial e o racismo estrutural. A mais de meio século que manifestantes não tomavam uma delegacia local. Os polícias foram expulsos da cidade. Tiveram que ser resgatados pelo telhado por helicópteros e saíram as pressas quando viam os manifestantes se aproximando. Uma revolta que logo se espalhou por todo o país.

Pelas ruas de Minneapolis foram formadas imensas barricadas. Motoristas de ônibus e trabalhadores se negaram a transportar policiais ou ajudar a instituição. Grandes lojas foram saqueadas em muitas cidades. Confrontos físicos ocorreram entre manifestantes e grupos de supremacistas brancos e policiais. Logo latinos e muçulmanos se incorporaram aos protestos, e agora chegam trabalhadores brancos. Patrulhas armadas feitas pelos manifestantes e que historicamente são organizadas pelo movimento negro norte-americano tomam conta de diversas ruas em diversos estados. Figuras do esporte como o maior jogador de basquete do mundo, LeBron James, se colocaram a favor das manifestações. Enquanto escrevo estas linhas a Guarda Nacional foi solicitada para intervir em Minneapolis e a policia local foi elogiada no twitter por Donald Trump, que o censurou por apologia à violência. O milionário presidente dos Estados Unidos afirmou que a Guarda Nacional responderia com bala a qualquer ato que chamou de vandalismo criminoso. Os protestos seguiram radicalizados. Em Denver, Nova Iorque e em Louisville confrontos contra a polícia transformaram as ruas em praças de guerra. Nesta última os manifestantes também pediam justiça por Breonna Tylor, assassinada em março com oito tiros vindos da polícia enquanto ela estava em casa.

As próximas horas são imprevisíveis, desde a manutenção da rebelião e sua expansão no coração do Império, até seu refluxo. Um confronto maior e generalizado com a entrada da Força Nacional é também uma hipótese. Não podemos saber o que acontecerá. O fato é que no país que afirma ser a maior democracia do mundo, é preciso que negros incendeiem as ruas para que o Estado perceba que suas vidas importam.

Ao observar as manifestações, duas coisas muito interessantes podem ser vistas. A primeira é o papel que as igrejas e mesquitas tiveram. Muitos templos religiosos servem de abrigo para os manifestantes. Eles funcionam como uma espécie de enfermaria e outras como um quartel general ou lugar de refúgio no meio do fogo cruzado. Outro fator que vale ser visto e refletido com calma, foi o fato de que grupos considerados criminosos, das chamadas “gangues”, se colocaram como proteção aos manifestantes em Minneapolis contra os grupos de supremacistas brancos.

Os protestos inicialmente organizados por movimentos como o Black Lives Matter parecem ter um imenso peso do espontâneo, como é visto em todas as revoltas. É sempre interessante ver as palavras de ordem mais utilizadas e que mobilizaram. Nesta revolta, vemos além de “Justiça para Floyd”, um imenso peso para o “Parem de matar pessoas negras”. A auto organização de negros e a atuação de movimentos sociais de perspectiva antirracista partindo dos territórios foi o que permitiu impulsionar estes protestos que trazem uma pauta anti-racista e que confronta diretamente uma organização do Estado: a polícia. 

O movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) é mais do que uma hashtag ou palavra de ordem, como podemos ter o erro de pensar. Ele é verdadeiramente um movimento social. Seria como uma espécie de Frente na qual participam diversos outros coletivos, desde trotskistas, passando por pan-africanistas, socialistas-democráticos, comunistas, etc. São 40 filiais por todo o território norte-americano.

Em minha opinião, a mais importante palavra de ordem dessa revolta é: “Nós temos o direito de revidar”. Essa palavra de ordem é uma leitura de ações que são feitas, e um convite para que elas continuem sendo aplicadas. Este revide se dá de muitas formas. Desde a destruição de prédios ou patrimônios identificados com a opressão e violência racial, passando pelo confronto físico com grupos de supremacistas brancos ou até mesmos com policiais, e chegando até no saque de grandes lojas e corporações. Estas ações de revide podem acontecer de forma espontânea, e esta palavra além de os afirmar como legitimo diante da sociedade, travando uma batalha pela consciência daqueles que ainda não foram ganhos pelo movimento, serve também como um chamado para a organização desse revide, pois até saques, conflitos físicos com grupos fascistas, entre outras ações, são melhor feitas se forem organizadas.  

A palavra de ordem de “nós temos o direito de revidar” resgata também ensinamentos de clássicos do movimento anti-racista, como os de Malcolm X, Bobby Seale, Panteras Negras, entre outros. Que afirmavam o direito dos negros de revidarem e de lutarem contra as agressões e o racismo. Outro fator muito importante dela, é que trabalha com o conceito de “nós”, ou seja, é um chamado para o coletivo. Não é um revide individual. É um revide coletivo de “nós”, aqueles que são marginalizados e oprimidos. Por fim, ele trabalha com o rompimento da lógica do direito da violência estatal, por meio da Polícia, como algo normal. A hegemonia da violência não pode pertencer ao Estado que o utiliza contra corpos negros.

Temos algo a aprender aqui no Brasil?

Aqui no Brasil nós precisamos tomar algumas lições. Em nosso país existe uma ruptura entre o conjunto da esquerda institucional e o movimento negro, e não cabe aqui tratar dos inúmeros motivos para que isto tenha ocorrido e ainda ocorra, não é o objetivo do texto e não podemos tratar esse tema de forma rasa. Apesar disso, um ensinamento que os últimos anos trouxeram que é preciso mudar a forma que se organizamos e repensar nossa atuação. 

Isto não significa abandonar todos os trabalhos políticos que a esquerda socialista batalhou para conseguir. Mas sim que precisamos rever conceitos, formas organizativas e locais de atuação. Existe cada vez mais uma pressão entre os próprios movimentos, em especial na juventude, para que olhe mais para aquilo que normalmente não é tratado, ou seja, pelas periferias.

Acredito que isto acontece muito por uma mudança na composição que muitos movimentos têm sofrendo. Existe uma racialização em curso na esquerda socialista brasileira. Primeiro com o ingresso de camadas populares nas Universidades de todo o país. Segundo com processo de afastamento do Partido dos Trabalhadores de suas bases populares, e as medidas do mesmo no âmbito de Segurança Pública, fez com que muitos destes jovens de esquerda que procuram se organizar em partidos e movimentos, procurem organizações diferentes daquele que ainda é o maior partido do Brasil. Outros fatores podem ser apresentados, e esta é uma discussão importante e aberta. Mas o que acontece é que muitos coletivos e partidos viram em suas fileiras o aumento de número jovens negros e periféricos, que passam a tratar de pautas especificas internamente e cobrar uma estrutura que caibam seus anseios. 

O futuro da esquerda socialista no Brasil perpassa pelo entendimento de que a questão racial deve ser visto com centralidade. O trato do racismo como estrutural na sociedade não pode ser visto apenas de forma teórica, é preciso ser colocado em prática. Temos a  urgência necessidade de nos enraizarmos nas camadas populares da população e de darmos mais atenção à organização territorial. Como fazer isto não é simples. Não se trata de disputar espaços com as Igrejas Evangélicas. Buscar fazer isto é armar para a derrota. A esquerda socialista fala sobre Marx e luta de classes, eles falam sobre Deus e o Paraíso. Devemos assumir que é uma competição desleal se formos ver deste ponto. Mas acredito que as ações de solidariedade que acontecem em todo o país neste momento de pandemia e a formulação através da Teoria da Reprodução Social podem ser úteis para pensarmos em soluções para os dilemas.

Por fim a palavra de ordem desta revolta negra que acontece nos Estados Unidos que mais gosto é “Faça os racistas terem medo”. Ela é autoexplicativa. Todos nós devemos olhar atentos para aquilo que acontece em Minneapolis. Nossas vidas importam, as dos supremacistas racistas brancos não.