Dia 28 de maio é o Dia Internacional de Luta pela Saúde Integral da Mulher e Dia Nacional de Luta pela Redução da Mortalidade Materna. A saúde integral feminina diz respeito a uma gama de aspectos relacionados à assistência, prevenção, proteção e recuperação da saúde que atravessam toda a vida da mulher, desde a puberdade até a menopausa e o período posterior a ela, durante todo o envelhecimento. Contudo é comum que a saúde da mulher seja observada especificamente pela ótica da maternidade, o que repercute em muito das reivindicações também estarem atreladas a essa pauta em especial.
No Brasil, a discussão acerca da política de saúde mulher precisa abarcar a caracterização da conjuntura política atualmente vivenciada. É indispensável destacar que a temática da liberdade e autonomia feminina capta atenção por confrontar o conservadorismo e o fundamentalismo intrínsecos à situação reacionária na qual se encontra o País, cujas características mais marcantes passam pelo desprezo à garantia de direitos básicos e pela violação àqueles conquistados pelas minorias – dentre elas a que tem sido vanguarda das últimas lutas sociais e manifestações contra governos que pautam o retrocesso: as mulheres.
Sob a égide de um líder que cunhou sua gestão, desde a campanha, ante o bastão do machismo, do racismo e do elitismo, o Ministério da Saúde (MS), antes gerido por Luiz Henrique Mandetta, acompanhou e continua seguindo a política de retrocesso e o programa de destituição de direitos, permitindo o desmonte das principais políticas de saúde e a degradação do direito à saúde universal. Além disso, pode-se perceber o imbricamento das medidas do Ministério da Saúde e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) quando levamos em conta a indicação, pela ministra Damares Alves, da abstinência sexual como principal método contraceptivo a ser indicado para a juventude, abdicando da educação sexual e, mais uma vez – como é prática desse governo obscurantista – das evidências científicas.
A reação do Ministério da Saúde, contrária à integralidade da saúde da mulher, encontrou pilar no alinhamento junto ao Conselho Federal de Medicina (CFM). A medida inaugural dessa parceria se apresentou pela recusa e proibição do termo “violência obstétrica” na assistência em saúde e nos documentos orientadores dos serviços, tais quais manuais, protocolos e notas técnicas, sob alegação de que o termo ofendia a categoria médica e configurava irresponsabilidade no uso, uma vez que a prática, segundo os responsáveis, é inexistente. A violência obstétrica é considerada como violência de gênero, por se dirigir especificamente a mulheres e permear relações de poder desiguais na nossa sociedade.¹
Essa terminologia foi proposta para a identificação de qualquer ato de violência direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera ou ao seu bebê, praticado durante a assistência profissional, que signifique desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências.
Considera-se como violência obstétrica desde demoras na assistência, recusa de internações nos serviços de saúde, cuidado negligente, recusa na administração de analgésicos, maus tratos físicos, verbais e ou psicológicos, desrespeito à privacidade e à liberdade de escolhas, realização de procedimentos coercivos ou não consentidos – como episiotomia e manobra de Kristeller (corte entre a vagina e o ânus com a justificativa de ampliar a passagem da criança, que não possui evidência científica, e ato de empurrar a barriga da gestante para acelerar a descida do feto, que pode resultar em traumas físicos para a mãe e para a criança- respectivamente), detenção de mulheres e seus bebês nas instituições de saúde, entre outros.¹
Ao contrário do que afirmaram a categoria médica e o MS, na pesquisa Nascer no Brasil, inquérito nacional realizado com 23.940 puérperas, mais da metade das mulheres tiveram episiotomia, 91,7% ficou em posição de litotomia no parto, quando as evidências recomendam posições verticalizadas; a infusão de ocitocina e ruptura artificial da membrana amniótica para aceleração do trabalho de parto foi utilizada em 40% das mulheres e 37% foram submetidas à manobra de Kristeller.¹
Além das estatísticas, que fundamentaram a derrubada da medida, é importante considerar as perspectivas de raça e classe envolvidas na prática de violência obstétrica, uma vez que mulheres pobres e negras, com menor acesso à escolaridade, possuem maior dificuldade para identificar as práticas violentas, bem como peregrinam mais no serviço em busca de atendimento; ao passo que mulheres negras sofrem mais violência obstétrica pela crença racista de que suportam mais dor e pelo racismo institucionalizado nos serviços que nega atendimento digno em tempo oportuno.
A segunda medida contrária à dignidade das mulheres pautada pelo CFM e apoiada pelo Ministério da Saúde foi a Resolução nº 2.232/2019- CFM, que trata sobre a recusa terapêutica – direito conferido a todo indivíduo maior de idade e gozando de plenas atribuições mentais de recusar procedimentos terapêuticos, exceto em caso de perigo iminente de morte e… em caso de ser mulher. O documento, orientador da ética médica, considera que “a recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”.
É indispensável enunciar esta proposição sob o prisma da dominação patriarcal do corpo feminino. Antes da maternidade, seja esta uma escolha ou uma condução social, a mulher se constitui enquanto ser humano, detentora de seu corpo que, ao contrário do que prega a imposição social amparada pelo machismo estrutural elitista, não tem como função única procriar.
Ao vincular ao feto a decisão da recusa terapêutica pela MULHER, que o é antes de ser gestante e mãe, desconsidera-se a repercussão biopsicossocial de procedimentos que invadem e violam o corpo feminino – tendo em vista que a propositura se refere aos procedimentos envolvidos no ciclo gravídico-puerperal. Além da negação à liberdade e autonomia feminina, a ação nega a luta da mulher por liberdade sexual, que perpassa questões reprodutivas vitais, como educação sexual básica, cuidados pré-natais, cuidados na saúde preventiva, compreensão do funcionamento do corpo da mulher, combate à esterilização forçada, cesáreas e/ou histerectomias desnecessárias e complicações médicas. Consecutivamente, a Resolução dialoga intimamente com as pregressas ações negacionistas ao conceito e prática de violência obstétrica.
Acrescida ao terror medieval da negligência à mulher e sua autonomia, há, mais uma vez a total desconsideração à perspectiva de classe e raça quando a resolução ressalta o iminente perigo de morte, uma vez que as mulheres periféricas, negras e com menor acesso à escolarização são facilmente levadas a abdicar de seus direitos pela incompreensão sobre as questões explanadas pela equipe de saúde – o que as torna suscetíveis a crer que qualquer condição seja iminência de morte para ela ou para o feto, desde que acarrete não necessariamente nesse contexto de fragilidade da vida, mas que assim seja afirmada em favor do conforto, domínio e lucro para determinada categoria profissional e/ou gênero.
Ademais, toda a ofensiva contra os direitos sexuais e reprodutivos concentrada no que diz respeito à violência obstétrica vai de encontra a face de uma mesma luta, que perpassa a humanização do parto, a defesa da legalização do aborto e o combate à violência de gênero nas políticas públicas voltadas à saúde da mulher.
Por fim, outra medida que atingiu diretamente o acesso das mulheres às políticas de saúde, mais especificamente de saúde sexual e reprodutiva, foi a proibição, pelo Ministério da Saúde, através da Nota Técnica nº 38, da colocação do Dispositivo Intrauterino (DIU) por enfermeiras e enfermeiros. A iniciativa foi implementada a pedido do Conselho Federal de Medicina (CFM), que coloca a prática realizada pela enfermagem frente à Lei do Ato Médico, alegando o procedimento como concernente àqueles inseridos no rol de práticas privativas da categoria médica.
Decerto que a nota técnica n°38 fere a Constituição Federal no que tange à disposição sobre a oferta de todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção durante a realização do planejamento familiar, garantindo a liberdade de escolha desde que estes não ofereçam risco à vida e à saúde das pessoas. Acerca disso, é imprescindível considerarmos a desigualdade do acesso à saúde no Brasil e, nessa perspectiva, a ausência de equipes completas de atenção básica e o acesso dificultado à atenção especializada nas localidades mais remotas – embarreirando a concretização dessa disposição constitucional de forma universal.
Logo, é inegável a importância da realização do procedimento, nesse âmbito da assistência, por enfermeiros e enfermeiras capacitados e capacitadas, tendo em vista que esta categoria profissional se faz mais presente nas comunidades periféricas, o que pode potencializar o alcance das políticas de saúde, sobretudo para as mulheres, e a construção da equidade.²
Vale, ainda, ressaltar o quanto a política de saúde da mulher ainda é centrada no corpo cisgênero e na orientação heterossexual, deixando de dialogar com a política de saúde LGBTQIA+, o que tem como consequência o despreparo das profissionais na rede de saúde e o grande obstáculo à concretização dos princípios da equidade e do acesso no Sistema Único de Saúde (SUS) – fazendo com que esses segmentos não sejam adequadamente assistidos.
No contexto da pandemia, as mulheres constituem a maioria do contingente de trabalho nos serviços essenciais, sobretudo no serviço de saúde, compondo majoritariamente categorias como a Enfermagem – maior força de trabalho no SUS e linha de frente no combate à COVID-19. Assim, são elas quem mais sofre agora não mais só pela tripla jornada de trabalho, mas com o acréscimo das atividades remotas dos filhos, do teletrabalho, da violência doméstica aumentada durante a quarentena, das obrigações de cuidado com idosos e com as atividades domésticas. Toda essa sobrecarga resulta em prejuízos à saúde física, mental e laboral das mulheres, o que deve receber atenção especial nesse momento crítico que temos vivenciado.
Com todos os ataques à política de saúde da mulher, é possível perceber o quanto o sistema de saúde é dominado pela ótica capitalista patriarcal, interessada nas reservas de mercado, que desconsidera os aspectos de classe que perpassam a realidade da população brasileira em prol de sua centralidade e afirmação. Este panorama se articula intrinsecamente com os ideais de mercantilização da saúde, revelando, através da parceria entre categorias elitizadas e governo neoliberal, a ofensiva ao SUS e à concretização do direito universal à saúde – desta feita, para a comunidade de mulheres, que recebe constantes ataques às suas liberdades, principalmente sexuais e reprodutivas, e às políticas de saúde a ela direcionadas.
Portanto, é necessário compreender que a defesa do funcionamento do Sistema Único de Saúde, com a concretização da universalidade da saúde pública socialmente referenciada, diz respeito, também, à luta das mulheres pela manutenção de seus direitos. O acesso às políticas de saúde da mulher é imprescindível para a perenidade da conquista dos direitos sexuais e reprodutivos, do combate à violência de gênero e ao machismo institucionalizado e, por fim, para a garantia da vida de todas as mulheres.
*Lígia Maria é acadêmica de Enfermagem da Escola Superior de Ciências da Saúde do DF (ESCS-DF); militante do Afronte e da Resistência Feminista em Brasília.
REFERÊNCIAS:
1- LANSKY, Sônia; et al. Violência obstétrica: influência da Exposição Sentidos do Nascer na vivência das gestantes. Ciência e Saúde Coletiva; ago./2019. Disponível em: https://scielosp.org/pdf/csc/2019.v24n8/2811-2824/pt. Acesso em: 16 fev. 2020.
2- Repúdio à nota técnica nº 38/ Ministério da Saúde- Executiva Nacional dos Estudantes de Enfermagem (ENEEnf)
Comentários