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Dos esquadrões da morte às milícias: a base íntima do protofascismo bolsonarista

Leia a primeira parte da série A grande familícia

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Parte significativa da base social bolsonarista está ancorada no conteúdo militar/policial sob diferentes formas. Destacamos as milícias no Rio de Janeiro, grupos paramilitares formados  primordialmente por policiais civis, militares e bombeiros – ou seja, agentes de segurança pública – que controlam serviços de determinados territórios e que acumulam dessa forma  uma espécie de capital criminoso ao longo de décadas. Há duas origens desse acúmulo de, digamos, parafraseando Bourdieu, “capital criminal”: grupos de extermínio os quais realizam execuções sumárias (cobram caro por tal “empreendimento”), de um lado, e a venda de segurança privada, de outro lado.

Como é sabido, a ditadura empresarial militar iniciada em 1964 forneceu os elementos para a criação dos esquadrões da morte. (1) Formados inicialmente por agentes públicos de segurança que operavam execuções sumárias, esses esquadrões paralelos às polícias militares contavam com o financiamento por parte de empresários, bicheiros, e a plena anuência e estímulo por parte do regime.

Entre esses grupos, estava a Scuderie Le Cocq, que tinha como presidente de honra o jornalista David Nasser, um notório apoiador da ditadura, e que foi repórter dos principais veículos de comunicação da época. Nasser recorria aos amigos influentes no governo ditatorial pedindo para acelerar os processos judiciários civis que abria contra seus desafetos.

Outro líder do Esquadrão era o delegado José Guilherme Godinho que, em 1990, foi eleito deputado estadual pelo Partido Social Cristão (PSC) com o slogan “Bandido bom é bandido morto”. Esse chavão passou a ser o lema de ação de grupos de extermínio e até hoje é uma das expressões favoritas do Presidente da República e seu séquito.

A  Scuderie Le Cocq se tornaria uma associação criminosa com mais de 7 mil filiados,  ultrapassando as fronteiras do estado do Rio de Janeiro, com ramificações no Espírito Santo e em Minas Gerais.   Estava inscrita como Pessoa Jurídica na condição de entidade filantrópica, mas foi legalmente extinta depois de ser acusada pelo Ministério Público Federal de abrigar e proteger grupos de extermínio, traficantes e assaltantes.

Em dezembro de 2005, o desembargador federal Guilherme Calmon, do TRF-2, manteve a decisão do juiz Alexandre Miguel, da 12ª Vara Federal no Espírito Santo, que extinguiu a Scuderie Le Cocq. A decisão que extinguiu a Le Cocq proibiu também a utilização dos símbolos da entidade como bonés, camisetas, chaveiros, adesivos e outros objetos. Tal associação possuía uma página na internet onde se vendiam esses souvenirs com o emblema de uma caveira sobre dois ossos cruzados, clássico símbolo da morte e do perigo, imagem apavorante que parece ter inspirado também o símbolo do BOPE (Batalhão de Operações Especiais) do Rio de Janeiro.

Extinta em 2005, a Scuderie Le Cocq voltou a atuar de forma deliberada no Rio de Janeiro de forma mais discreta. Resgatando, a nuance de “Associação Filantrópica”. No dia 27/05/2015,  organizaram uma panfletagem no bairro nobre da Lagoa. No texto, a associação, que reúne 60 integrantes, entre policiais aposentados e policiais da ativa e gente de outras áreas, incentiva as pessoas a recorrerem ao Disque-Denúncia como forma de combater os assaltos a ciclistas.

“No local, uma equipe usava coletes da Scuderie e afirmava estar fazendo “um trabalho de conscientização”. O presidente da associação, Humberto Fittipaldi Filho, disse que a população está diante de uma violência desenfreada no Rio de Janeiro e que o trabalho da entidade, atualmente, é preventivo.” Encontramos na internet fotos de Fittipaldi com o senador Flávio Bolsonaro, publicado no jornal Compasso, que aglutina setores de extrema direita em Magé.

O titulo é bem sugestivo: “Só andamos em boas companhias”. Uma clara adesão do Le CoQ ao bolsonarismo.

Fonte:https://jornalnocompasso.com.br/2018/12/04/so-andamos-em-boas-companias/

Pois bem. Entre os filiados da Scuderie Le Cocq, está ninguém menos que Ronnie Lessa, ex-sargento do BOPE, acusado de ter assassinado a vereadora Marielle Franco e Anderson Gomes. Essa informação é revelada no documentário Marielle, produzido pela Rede Globo e dirigido por Caio Cavechini. A Polícia Civil, ao entrar na residência de luxo de Lessa, vizinho de Jair e Carlos Bolsonaro, encontrou entre seus pertences uma carteirinha de sócio do esquadrão Le coq datada do ano de 1989. Lessa possuía ainda 117 fuzis depositados em um paiol no subúrbio da cidade, um verdadeiro arsenal de guerra, dando indícios de ser também traficante de armas. Prosseguindo à paródia dos conceitos de Bourdieu, podemos dizer que Ronnie Lessa tinha o habitus perfeito para o “campo” da prática da execução sumária no Rio de Janeiro.

Segundo matéria da revista Veja, “Ronnie Lessa já sabia há pelo menos uma semana que seria preso. Desde que soube da prisão iminente, Lessa passou a sair de casa todos os dias antes das 4 horas da manhã”. O sicário teria dessa forma tido tempo de se livrar de mais provas de seus crimes, mas deixou para trás a carteira de associação ao Le Coq.

No dia 1º de fevereiro de 2019, Jair Bolsonaro nomeou um ex-membro capixaba da sociedade “beneficente” do Lecoq, Carlos Humberto Manato, para exercer o cargo de Secretário Especial para a Câmara dos Deputados da Casa Civil da Presidência da República, comandada, na época, por Onyx Lorenzoni. O registro de filiação de Manato na Scuderie Le Cocq é o de número 687. Manato confirmou ter sido filiado da Le Cocq por três anos em nota enviada em 2018 ao blog de Eliomar Côrtes, reproduzida por matéria dos Jornalistas Livres:

“na tarde de sábado (08/09/2018), a Assessoria de Imprensa do candidato a deputado federal Manato confirmou que ele já integrou os quadros da Scuderie Le Cocq, mas que desconhecia o envolvimento da entidade e ou de associados com a prática de crimes. Em 1991, Carlos Manato, na época médico, concluiu o curso da Escola Superior de Guerra (ESG), vindo a integrar a Associação dos Diplomados na Escola Superior de Guerra (ADESG). Durante o curso, alguns amigos policiais o convidaram para também fazer parte da Le Cocq, que, segundo eles, seguia as mesmas linhas da ESG. Manato participou de algumas reuniões e não se identificou com os temas, achou que era bem mais restrito ao meio militar e não voltou às reuniões. A desfiliação só ocorreu cerca de três anos depois, pois encontrou certa dificuldade devido a mudança de endereço da sede da organização”.

Note-se que não se trata de cargo qualquer: a Casa Civil da Presidência é um dos mais altos núcleos de poder no governo Bolsonaro,  e não faz a menor questão de esconder sua intimidade com membros deste grupo de extermínio: Jair Bolsonaro é vizinho de Ronnie Lessa e  padrinho político de Carlos Humberto Manato.

Vemos, portanto, que a ascensão protofacista bolsonarista carrega em sua gênese o ranço militar truculento de 1964, o ódio aos direitos humanos e a promoção da cultura da execução sumária, a qual jamais foi desalojada de seus nichos na democracia. Anuência do Estado, financiamento empresarial e assassinos profissionais, fardados ou não, são os ingredientes que se mesclaram durante a ditadura e que vão crescer na forma de milícias décadas depois.

A milícia de hoje é o esquadrão da morte aprimorado da ditadura empresarial militar. Há diversas milícias no estado do Rio de Janeiro, mas, há uma específica, que se tornou referência em execuções quase perfeitas: O Escritório do crime. É com esse grupo que os Bolsonaros possuem relação orgânica, e é dele que trata a segunda parte desta série.

 

*Historiador, militante do PSOL. Membro do GTO- Grupo de Trabalho e Orientação coordenado por Virginia Fontes. 

 

Notas

1 – Sobre esse tema, ver ALVES, José Claudio. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro, APPH, 2003; e ALOY, Jupiara e OTÁVIO,Chico. Os Porões da Contravenção. Rio de Janeiro, Record, 2015.