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Tempos atrozes (2): as contradições atuais

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Virgínia Fontes

Como afirmamos na parte 1 deste artigo, o fascista Jair Bolsonaro teve apoio eleitoral aberto (e discreto) do empresariado, da mídia proprietária em sua integralidade, das Forças Armadas, de sua base social armada (milicianos e policiais), dos setores mais conservadores das igrejas (católica e protestantes), de setores das classes médias e de setores populares.

Os empresários apoiavam de fato o fascismo ou a trajetória de mão única que entraram não permitia alterações? Impossível ter certeza, e há muitas interpretações. Sua base empresarial inicial era composta sobretudo por burguesias grandes e médias, enquanto as mega-burguesias, com escassas exceções estavam ausentes, ao menos publicamente.  Seus apoiadores eram principalmente oriundos do comércio varejista, como Localiza, Havan, Coco Bambu, etc. Alguns mega-capitalistas o apoiaram publicamente,  como Rubens Ometto, da Raízen-Cosan, associação entre grande empresa brasileira e a multinacional Shell. Rapidamente Bolsonaro teve o apoio da UDR e, com ela, da Frente Parlamentar da Agropecuária, mas não teve o endosso explícito da Abag. Os bancos foram os últimos a entrar na procissão empresarial bolsonarista. Uma vez eleito, toda a burguesia brasileira passou a fazer bloco com Bolsonaro, mas não a fazer declarações explícitas de apoio.

Bolsonaro teve ainda apoio da extrema direita brasileira e estadunidense, especialmente aquela ligada a Donald Trump. Teve apoio de grupos internacionais para a montagem de sua ‘comunicação’ e formação das bolhas pelo whatsapp, mantendo o sequestro de milhares de informações à venda por variadas empresas de telefonia e outras. Sua fonte intelectual? Olavo de Carvalho, que rapidamente passou a oferecer cursos gratuitos para os policiais no Brasil, além de lançar filmes, jornal e programas de TV. Está em ativismo frenético. Soma-se a ele o ranço militar truculento de 1964, que se conservou e jamais foi desalojado de seus nichos. E o apoio aberto e interessado de Donald Trump, sobretudo com olhos para o petróleo e a Venezuela.

E finalmente, e o mais importante, teve apoio popular – Gramsci lembra que quando os subalternos perdem sua direção, ficam desnorteados e são presas exatamente dos ensandecidos que apregoam ser ‘contra tudo’… e falsificam a ira popular (parafraseando Francisco de Oliveira, quando denunciou Collor de Mello). 

Todos imaginávamos que imediatamente após a posse (e muitos, até mesmo logo após a eleição) começaria a perseguição imediata a toda a esquerda. Não foi o que ocorreu. O que houve foi a devastação sistemática e frenética – por mudanças constitucionais, leis, medidas provisórias e o intenso uso de medidas administrativas para devastar por dentro toda a institucionalidade vigente. A casca perdurava, seu conteúdo e teor já são outros. Legislativo e Judiciário parecem lutar apenas pela casca, desdenhando completamente de seu conteúdo. Ou pior, concordando com o novo baixo teor, em especial a desidratação democrática promovida por Paulo Guedes.

Numa das primeiras medidas, Bolsonaro fechou conselhos – e aqui, houve pequena reação de alguns APHEs. Em mais de 3 mil assinaturas de entidades associativas populares em abaixo assinado contra o fechamento dos conselhos por Bolsonaro, figuravam mais ou menos 60 APHEs, dos quais uns 10 eram significativos (como o Instituto Alana ou o Instituto Ethos, ambos integrantes do GIFE). De resto, notícias divulgadas pelo GIFE fazem discretas críticas ao comportamento de Bolsonaro, sempre silenciando totalmente sobre seu projeto econômico.

A revista Piauí escancarou a crítica. Ela é de um dos irmãos artistas da família Moreira Salles, o outro sendo o criador da Serrapilheira, APHE criadora de Fundo Patrimonial para a produção de ciência básica, que é uma as formas de privatizar a decisão sobre a produção científica. A Serrapilheira atualmente apoia a divulgação dos vídeos de Atila Iamarino. Mas os irmãos artistas não participam da gestão do Unibanco-Itaú… e é difícil deduzir de suas posições algo sobre o andar de cima.

Quais as contradições mais imediatas? 

1) A fraqueza de Bolsonaro – fraqueza de sua sustentação institucional, de ausência de partido, incapacidade de entregar o crescimento econômico prometido, etc. –  se converte na principal força de impulso do movimento da avalanche iniciada há 4 anos. A conversão de fraqueza em força aumenta com a pandemia, que passa a ser responsabilizada pela crise, como se o vírus não atingisse outros países e ‘esquecendo’ que o crescimento econômico rasteja há vários anos. A demissão de Mandetta, que caíra no gosto popular, e a de Sergio Moro, o ‘paladino lavajatista’ não provocaram o repúdio imediato a Bolsonaro e levaram a uma divisão entre seus apoiadores que, entretanto, continuam a sustentar Bolsonaro. Por outro lado, os bandos armados díspares da base bolsonarista não tiveram até aqui atividade política relevante explícita (salvo o motim dos policiais em Fortaleza e o recente e caricato grupo dos 300, acampados em Brasília sob barracas padronizadas vendidas pela Havan, de propriedade do véio da Havan, fervoroso adepto de Bolsonaro). Seguem comprando e traficando armas e têm direito – apesar da tentativa de controle do Exército, vetada por Bolonaro – a uma grande quantidade de munições. As informações são escassas nesse terreno. Jagunços e milícias continuam atuando principalmente nos campos e cidades, aumentando a truculência proprietária no país. Sob a pandemia, mostrou-se cruamente a incapacidade de coordenação nacional do governo Bolsonaro, levando-o à exasperação da convocação de seus aliados e ao desgaste dele decorrente. 

2) Sua base social – familícia e bandos armados, incluindo as FFAA – segue a seu lado. Essa é sua força real, sua base efetiva.  Diferentemente de 1964, quando a hierarquia militar atacou o próprio Exército, amputando sua base legalista, dessa vez um capitão poderia subordinar a alta hierarquia, pela adesão ou… pela violência. Ao que tudo indica, as FFAA aderiram e se mantém próximas do ideário bolsonarista – como visto pelo texto do vice-presidente Mourão divulgado dia 15/5/20 no Estadão, que reafirma seu compromisso com todas – TODAS – as linhas principais de enfrentamento que Bolsonaro está realizando. É essa base social de proposta, teor e comportamento fascistas – engordada por comerciantes e alguns empresários bolsonaristas – que promove carreatas da morte. Barulhentas, desagradáveis, não são muito numerosas. Não temos pesquisas mais claras da composição desses grupos, e muitos se vestem e se apresentam como militares, mas não sabemos a que setores pertencem, pois tendem a ocultar a informação.

Sob a pandemia, essa base social é incompetente, preparada que está apenas para atacar e não para assegurar solidariedade. Milícias atuaram no Rio de Janeiro nas carreatas da morte e promoveram ameaças às populações, para impor a retomada das atividades econômicas. Defrontaram-se, em alguns casos, com comandos do tráfico, que ao contrário, chegaram a impor toque de recolher em algumas regiões.

3) O empresariado está construindo novas entidades, provisórias, a cada dia, como o Conselho Superior Diálogo pelo Brasil, substituto bolsonariano do CDES do governo Lula, montado às pressas em março de 2020, filhote do ativismo bolsonarista de Paulo Skaf na FIESP que lançou em finais de 2019 o Diálogo pelo Brasil. Ou ainda o Coalizão Brasil constituída por entidades associativas (APHEs) de defesa dos interesses setoriais, aparentemente em disputa com a FIESP, que esteve com Bolsonaro na semana passada e foi com ele ao STF, para lamentar a morte de CNPJs e despreocupar-se com os CPFs…  Na semana seguinte, dia 14 de maio de 2020, outra visita espalhafatosa de empresários a Bolsonaro, dessa vez em nome direto de suas próprias empresas (e não de entidades associativas), acompanhados de Skaf, sempre para exigir mais e mais recursos e atenção pública para seus interesses particulares.

As declarações empresariais, entretanto, foram de apoio a Paulo Guedes, à sua política e, sobretudo, à retomada do trabalho em curto prazo e ao austericídio anterior. Há diferenças entre eles? Seguramente e há declarações com posições diversas vindas de personalidades ligadas a banqueiros e a setores econômicos, como Armínio Fraga ou Pérsio Arida. Também a campanha levada adiante pela Rede Globo ou pelos jornais Folha e, com menor ímpeto, Estadão, mostra severas divergências com Bolsonaro e… apoio à sua política econômica. Nas organizações empresariais setoriais não estão imediatamente visíveis maiores diferenças e, até onde é possível enxergar, ainda estão com Bolsonaro. Há diferenças no agronegócio, que há muitos anos não é mais apenas agro, mas reunião de indústrias diversas (mecânica, química, produção alimentar), proprietários de terra e grandes investidores. De um lado, a Abag representa os mega e conta com a Globo e, de outro, a UDR, que expressa o lado mais atrasado e clássico da truculência rural brasileira, na figura de Nabhan Garcia. Mas, apesar das diferenças, seguem juntos na Frente Parlamentar da Agropecuária…

Há aqui uma característica a a ressaltar: nos anos recentes o empresariado apoiou abertamente movimentos de mobilização popular de extrema direita, de um anticomunismo primitivo e feroz, antidemocráticos na forma e no conteúdo. Historicamente, sua tendência era evitar sequências de manifestações. Em 1964, a Igreja Católica liderou a marcha das mulheres e, após o golpe, houve a campanha de doação ‘ouro para o Brasil’ e, em seguida, a ditadura empresarial-militar evitou mobilizações e manifestações, como fizeram os empresários entre 2015 e 2016 e como prossegue fazendo Bolsonaro. Sua histórica truculência, mesmo se envelopada de filantropia, aproxima parcela do empresariado na atualidade de manifestações fascistas.

A crise econômica aprofundada pela pandemia abre enorme incógnita pela frente, uma vez que o isolamento social impossibilita as manifestações populares e deixa a suposição de que somente bolsonaristas se expõem à contaminação, por não acreditarem nela. No entanto, amplos setores de trabalhadores estão à frente do enfrentamento à covid-19, a começar por todos os trabalhadores da saúde e pelos que asseguram produção essencial e abastecimento. 

4) E as entidades empresariais sem fins lucrativos, de teor mercantil-filantrópico? Esses APHEs continuam a fazer o mesmo de antes, agora intensificadamente com a pandemia – já recolheram, em campanhas de doação, mais de 4 bilhões de reais, que não se sabe exatamente ao que se destinarão. Estão atuando, junto com algumas prefeituras, governos de Estado, igrejas e entidades populares, no miolo dos bairro populares, fazendo doações de cestas básicas, máscaras e álcool gel. Prosseguem, portanto, devastando o que ainda resta de possibilidade de uma política unificada para os setores populares, fragmentando e dispersando os recursos que amealham de grande parte da população, para garantir suas bases específicas de atuação (muitos atuam no entorno de suas empresas ou em regiões próximas da moradia de seus trabalhadores) e tentar impedir que saques e rebeliões ocorram. Numa mão, a filantropia interessada que se nutre de fundos públicos e devasta políticas universais; na outra mão, a pressão genocida da volta rápida ao trabalho, da rapina sobre direitos, sobre a propriedade pública (especialmente a terra) e sobre os fundos públicos.

5) GOLPE? É possível um golpe, seja de Bolsonaro, seja das FFAA, com ou sem Bolsonaro? Sim. No entanto, o golpe retiraria exatamente esse elemento de fraqueza convertida em força de Bolsonaro, caso seja desencadeado pelas FFAA contra Bolsonaro. Caso seja desencadeado por Bolsonaro, ao que tudo indica por enquanto contaria com o apoio das FFAA e introduziria elementos fascistizantes no próprio regime, e não apenas em suas declarações de intenções. Todas as previsões serão vãs, embora trágicas, neste caso. Assim, o mais provável é a continuidade da devastação da democracia e dos direitos de toda a sociedade através da associação Bolsonaro+FFAA. Tudo dependerá das condições de saída da pandemia e da impossibilidade já evidente de que este governo – e Paulo Guedes – de assegurar o crescimento e o mundo mágico dos investimentos e do crescimento dos lucros. 

6) A base eleitoral de Bolsonaro segue alta – não foram desmontados os esquemas de convencimento via bolhas e via whatsapp, apesar de intensas campanhas contra fake news, não se desmantelaram as redes e contida a replicação automática. Os debates parlamentares continuam agindo na “casca”, sem atacar o cerne do problema. Pior ainda, a familícia montou eficiente esquema de divulgação, com lives  semanais, encontros na porta do Planalto, reuniões e cultos com pastores e padres que mantêm a proximidade de Bolsonaro com boa parte de seus eleitores. A pandemia, ao trazer a exigência de recursos para os vulneráveis, torna Bolsonaro o “pai” dessa nova renda… Não obstante, há mudanças importantes no cenário político, uma vez que grande parcela dos governadores desconsiderou as pregações genocidas de Bolsonaro e tentou agir para enfrentar a pandemia, apesar da descoordenação federal. Rupturas importantes, como a do governador-empresário João Dória (SP), e do candidato a fascista substituto Wilson Witzel (RJ) indicam reposicionamentos empresariais não explícitos. O governo Bolsonaro declarou guerra aos dois, seja no plano eleitoral e econômico, caso de SP, seja acrescido do uso de milícias efetivas, com digitais judiciárias, no caso do Rio de Janeiro. Crescem tensões no interior das direitas políticas, e há de incluir o comportamento de Ronaldo Caiado (GO), explicitando diferenças mesmo sem romper abertamente com Bolsonaro. Ainda aqui, os programas econômicos se mantêm similares.

7) O apoio popular – nazismo e fascismo não cresceram por serem os alemães e italianos especialmente inclinados ao racismo e ao horror, mas porque encontraram solo devastado, em que períodos de intensa crise econômica e social ocorreram em paralelo à destruição violenta da esquerda ou de seu transformismo, quando grupos inteiros mudaram de posição na guerra de classes, como mostrou Gramsci. O nazi-fascismo excita a que os subalternos, em vez de enfrentarem as condições que criam a desigualdade, atuem como aqueles que os violentam no cotidiano. Tortura e assassinatos de jovens, negros e mulheres populares jamais foram efetivamente enfrentadas. Ainda que persista apoio popular não desprezível a Bolsonaro, ele não se elevou ao longo do seu governo e a resistência a ele cresceu em todos os setores sociais. A proposta genocida de Bolsonaro atinge duramente os setores populares, que têm seus familiares e próximos atingidos (e mortos) pela covid, além de ficarem inteiramente desprovidos de serviços de saúde nas capitais com superlotação de hospitais e enormes filas. Vivem na pele o crescimento das crises sanitária, funerária e dos cemitérios. E não contam com um política ágil e consistente de apoio econômico. O pós-pandemia provavelmente trará intensas lutas sociais. 

8) Tampouco os partidos de esquerda conseguem se tornar verdadeiros partidos, com atuação social intensa como os tempos exigem, e atuação parlamentar consistente. Os bons parlamentares com que contam os partidos têm de enfrentar praticamente sozinhos o bolsonarismo, sem trabalho coletivo, resultando em excesso de atividades parlamentares que os devora. Mesmo assim, movimentos sociais e partidos de esquerda desenvolvem intensas atividades de solidariedade, premidos pelas urgências. Já a direita e extrema-direita, ambas também integrando o centrão, continuam agindo no balcão de negócios (que está longe de se limitar ao imediato toma-lá-dá-cá imediato, e envolve também empresariados de diversos portes, em escala nacional, estadual e municipal). Enfrentam Bolsonaro, por vezes, mas para assegurar a mesma política econômica. As tensões estaduais ainda não se encaminharam para recomposições parlamentares ou partidárias.

À guisa de conclusão inconclusa, pois falta uma avaliação das condições internacionais  – as contradições crescem, e perdura o espectro de fascismo. As divisões entre grupos de extrema direita e direita seguem aprofundando a devastação da avalanche que provocaram. Somente Bolsonaro, a meu juízo, tem condições de escalar para o fascismo, enquanto as Forças Armadas tendem a uma autocracia ditatorial brutal, abafando os movimentos mesmo que de apoio. Embora o enfrentamento do fascismo seja o mais urgente, não pode haver contemplação com as possibilidades ditatoriais declaradas por militares.

 

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