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BRASIL

‘A vida não pode parar’: discurso meritocrático derrotado com o adiamento do Enem

Mariana dos Santos Reis, do Rio de Janeiro, RJ
Tomaz Silva/Agência Brasil

Desde o dia 4 de maio, o Ministério da Educação (MEC) veiculou a propaganda do Enem em rede nacional. Através de um vídeo de 1 minuto, o MEC informou que o Enem 2020 não seria adiado mesmo diante da situação da pandemia. A data de inscrição foi anunciada para do dia 11 até o dia 22 de maio com realização das provas no final do ano.

O conteúdo do vídeo gerou descontentamento dos pais de vestibulandos e indignação de grande parte do alunado apto a prestar o exame. A naturalização da desigualdade educacional emitida no conteúdo da propaganda propiciou a criação de paródias e memes que viralizaram através do bordão “Você que lute!”. O reforço da ideia da meritocracia na propaganda contou com a participação de jovens incentivando os vestibulandos a estudarem para o exame, visibilizando um ambiente privilegiado de estudo amplo, com equipamentos e acesso à internet.

A palavra mérito vem do latim meritum e designa: “ter mérito ser digno de recompensa, elogio, prêmio, estima, apreço”. Embora a ideia do mérito ou esforço individual no vestibular ainda perdure no imaginário social, pesquisas no campo da educação apontam a falácia desta perspectiva. Estes estudos (Saviani, Leher, Cunha) sinalizam descontinuidades de políticas públicas em educação, não assegurando a qualidade do ensino público ou propiciando condições acadêmicas do alunado da escola pública ao disputar a vaga com alunos.

Verificamos nas universidades brasileiras um perfil predominantemente elitizado de estudantes ainda que as cotas raciais e sociais tenham conseguido equalizar a situação da disputa das vagas no vestibular.

Em meio a essa apologia escancarada da propaganda do Enem à meritocracia da educação, entidades estudantis, classistas e docentes se mobilizaram pela rede social em prol da campanha de adiamento do exame através da hastag “AdiaEnem”. O clamor popular ecoou com tamanha força que ganhou adesão até mesmo de parlamentares da ultra direita.

No dia 19 de maio, ocorreu a sessão de votação no Senado referente ao projeto de lei que adia a aplicação do Enem 2020, que propicia o acesso ao ensino superior, tendo como justificativa a pandemia do coronavírus. O projeto foi aprovado por 75 votos contra 1. O único senador a se opor foi Flavio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente da república, Jair Bolsonaro. No dia seguinte (20 de maio), o INEP( Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), que organiza a divulgação e efetivação do exame em território nacional, decidiu adiar o Enem devido às dificuldades trazidas pela pandemia.

Diante da extrema rejeição da realização do exame sob as condições, analisaremos os principais discursos meritocráticos propagados por essa propaganda do Enem, considerando a construção hegemônica do princípio da meritocracia ao longo da trajetória da educação brasileira.

“E se uma geração de profissionais fosse perdida?”

É perverso responsabilizarmos uma geração de estudantes pelo futuro de um país que historicamente negou o acesso à educação de qualidade para a maior parte da população. A lógica da “geração de profissionais perdida” responde às demandas de um modelo funcionalista de educação que formula seu conjunto de políticas educacionais voltado para o atendimento ao capital financeiro e mercantilização do ensino. A irracionalidade em desconsiderar que este é um momento delicado para a maioria das famílias brasileiras se acentua na tentativa de responder ao funcionamento da economia capitalista. Soma-se ao cenário devastador da pandemia, a legitimação da necropolítica nas favelas e periferias do Brasil. Somente nesta semana na cidade do Rio de Janeiro, segundo o coletivo de favelas “ Fala Akari”, cinco jovens foram executados na favela de Acari, um jovem na Cidade de Deus e outro jovem no Morro do Salgueiro em São Gonçalo. Neste sentido, as ações do próprio Estado muitas vezes vêm a aniquilar essas mesmas gerações que possuem o sonho de ingressar numa universidade.

“A vida não pode parar. Precisa ir à luta, se reinventar, se superar”

O Brasil hoje se encontra na quarta posição mundial em relação ao número de óbitos e pessoas contraídas pela Covid-19. Esse dado é ainda mais alarmante se considerarmos a ausência de direitos sociais das classes D e E. Fatores como a falta de acesso a condições sanitárias, materiais de higienização e paralisação das atividades profissionais que garantiam o sustento financeiro deste grupo contribuem para um surto de casos de pandemia nessa parcela da população. O número de óbitos hoje registrado em áreas periféricas e de favelas preocupa pesquisadores da área da saúde e especialistas da OMS. Desta forma, é importante lembrar que as condições socioeconômicas dos estudantes de escola pública hoje no Brasil apresentam uma ausência de direitos que não lhes possibilitam “superar” as lacunas existentes na sua formação educacional.

Termos como “se reinventar” se transformaram em palavras de ordem nos manuais de autoajuda, que asseguram garantia de sucesso profissional ou acadêmico na contemporaneidade. Essa ideia do próprio indivíduo ser agente da sua mudança, através de novas ferramentas e diferentes meios de aprendizagem, detém a simpatia de muitas pessoas, sobretudo diante da popularização da função “coach” no mercado. A crença de que o sucesso acadêmico depende da vontade individual centraliza comportamentos baseados em fatores internos (aptidões, personalidade, esforço). Esta linha raciocínio, por sua vez, invisibiliza as causas externas (lacunas acadêmicas, poucas oportunidades, interferências sociais) que exacerbam as desigualdades educacionais existentes atualmente no Brasil.

A justificativa do projeto neoliberal da educação, calcado na defesa de que as oportunidades são iguais para todos, sustenta-se na democratização do acesso ao ensino básico a cerca de 98% da população brasileira. Defende-se, assim, a premissa de que todos têm acesso à educação, desconsiderando os contextos culturais e socioeconômicos que determinam o sucesso ou fracasso do estudante brasileiro.

“Estude de qualquer lugar, de diferentes formas, pelos livros, pela internet, com ajuda do professor”

É importante nos atermos às condições de habitação de grande parte de estudantes da classe popular, que são moradias apertadas ou com grande concentração de pessoas, impossibilitando, assim, a garantia de um espaço arejado ou silencioso para a rotina diária de estudos. Em período de isolamento, o número de horas que as pessoas se concentram numa casa aumenta, propiciando tensões cotidianas provocadas por esta convivência. Deste modo, tais circunstâncias abalam a saúde mental do estudante, que se sente esgotado no seu local de moradia, além da pressão emocional diária pela intensa carga de estudos.

A solução encontrada por grande parte das instituições escolares brasileiras na época da pandemia foi substituir a educação presencial pelo ensino remoto (aulas on-line à distância). Porém, a maioria dos estudantes do Ensino Médio brasileiro estão matriculados na rede pública de ensino (87, 5% concentrados na esfera federal, estadual e municipal) e neste momento encontram-se sem a regularidade das aulas cotidianas.

Algumas redes estaduais de ensino como a do Rio de Janeiro aderiram à educação remota no período da pandemia, desconsiderando o percentual alto de estudantes em situação de vulnerabilidade social e sem conexão com a internet.

Em pesquisa mais recente do IBGE, em 2017, aponta -se que cerca de 70% da população acessa a internet. No entanto, 17,7 milhões de domicílio brasileiros declararam não ter acesso a internet pelo fato de considerarem um serviço muito caro. Tal justificativa do alto custo da internet fatalmente se relaciona com o perfil socioeconômico das famílias dos estudantes da rede pública, chefiadas em sua maioria por trabalhadores informais que vivenciam hoje tamanha estabilidade econômica.

Além disso, nesse processo de pandemia os professores vêm denunciando as condições de precarização e excesso de cobranças com relação às suas atribuições anteriores. É importante ressaltar que a categoria do magistério é composta majoritariamente por mulheres que acumulam trabalho doméstico com os cuidados de crianças ou parentes idosos da família. Portanto, não é nada razoável exigir que os professores ajudem os vestibulandos sistematicamente em aulas a distância perante um conteúdo tão extenso e complexo como do Enem.

Em suma, reconhecemos a forte pressão da sociedade civil e dos coletivos estudantis e movimentos sociais em todo país frente ao adiamento do Enem 2020. Para além da questão da realização do Enem, temos que pensar um novo modelo de educação brasileira para juventude brasileira. O projeto de escola atual corrobora com uma lógica meritocrática e desigual de acesso a aprendizagem. Sendo assim, seria necessária a democratização de um ensino realmente igualitário a todos e a garantia do acesso livre às universidades pública aos estudantes brasileiros.

Referências:

“‘A vida não pode parar’: nova propaganda do Enem revolta estudantes”, TV Cultura, 05/05/2020

“‘A vida não pode parar’: Propaganda do Enem é altamente criticada”, Geek publicitário, 04/05/2020

“Estudantes criticam propaganda do MEC sobre manutenção de datas do Enem”, Jornal Metro, 04/05/2020

” Estudantes criticam propaganda do MEC sobre o Enem 2020: ‘A vida não pode parar'”, Notícias concursos, 04/05/2020

“O Enem 2020 precisa ser cancelado? Nova propaganda do MEC gera discussão nas redes sociais”, Pure break, 04/05/2020

“Paródia satiriza nova propaganda do Enem e viraliza nas redes sociais”, O povo, 06/05/2020

“Propaganda do Enem 2020|#AdiaEnem”, Fatos com dados, 19/05/2020

” Vídeo do Inep sobre ENEM 2020 vira meme nas redes sociais”, Midiamax, 05/05/2020