Em tempos de truculência nesse Brasil de crises crônicas e intermináveis, nesse cenário político-discursivo tomado pelo obscurantismo de um governo protofascista, é válido problematizar o racismo enquanto uma categoria política e discursiva ao passo que legitima ações e pedagogias que se consolidam a partir do vocabulário, nas ações institucionais, na exclusão de identidades das estruturas sociais e políticas e nas dinâmicas e discursos da retórica de Bolsonaro. Diante do isolamento social devido a pandemia da Covid-19 e da crise do capital, é visto um vasto vocabulário que representa a prática racista na sua essência e totalidade, não somente nesse período de conjuntura do governo Bolsonaro, mas também em outras realidades históricas. A obra Memórias da Plantação de Grada Kilomba publicada em 2008 em Berlim no Festival Internacional de Literatura nos convida a pensar e partir para uma reflexão sociológica sobre o racismo e seus condicionantes e com um diálogo multidisciplinar num viés de combater as práticas racistas.
Grada Kilomba, autora negra, portuguesa, parte de uma escrita anticolonialista e antirracista com uma abordagem teórico-metodológica na psicanálise para discutir o racismo bem como a paisagem cultural de gênero e com alinhamento teórico acerca das discussões decoloniais sobre o feminismo negro, a branquitude e outros debates que se fazem presente ao discutir racismo, tendo em vista que o racismo está para além das relações interpessoais de poder e das paisagens culturais de raça, classe, gênero, etnia, nacionalidade e sexualidade. Nessa perspectiva, o presente texto é convidativo aos leitores a se debruçar sobre a obra Memórias da Plantação e, daí passar a fazer analogias aos discursos que estão em voga na atual conjuntura política e numa outra situação de conjuntura e compreender de maneira holística as práticas racistas percebidas na retórica bolsonarista que nos remonta a um passado colonial, traumatizante.
A retórica de Bolsonaro personifica as identidades oprimidas sob um ângulo racista embasada na pedagogia colonialista de dominação. Indubitavelmente, os seus discursos tendem a reduzir o sujeito negro da sua dimensão social, cultural, política e individual e aplicando rótulos que são considerados em seus discursos para negar a subjetividade do indivíduo além de projetar as identidades oprimidas numa perspectiva de primitivização e incivilização. A título de exemplificação, durante o encontro com jornalistas e simpatizantes na saída do Palácio da Alvorada no dia 26 de março de 2020 Bolsonaro nos diz que:
“O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele. Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí.” (Jair Messias Bolsonaro – Presidente da República).
Inquestionavelmente, esse discurso representa uma prática racista, colocando o sujeito brasileiro como “Outridade”. Como é sabido, o racismo é também uma prática discursiva, sustentando-se no discurso. Nesse caso, o chefe de Estado brasileiro na sua concepção política está se referindo de modo geral as camadas rotuladas como minorias sociais, em especial a identidade negra. Apercebesse que há a retórica colonialista de que o/a negro/a é uma super figura de pele escura destacando a identidade negra como forte o bastante para ser acometida por uma doença. Cria-se uma visualização e performance de inferioridade sobre estas identidades que estão alocadas num território historicamente invisibilizado pelas políticas de dominação colonialista que, hoje, mediante o governo Bolsonaro continuam sendo excluídas das estruturas sociais e políticas.
Nota-se uma esquematização gênero-raça no discurso de Bolsonaro, pois seu discurso opera no sentido da representação da mulher negra e homem negro de modo a classifica-los numa posição de marginalidade. Em outras situações, é possível observar o jogo de palavras utilizado pela retórica bolsonarista. Enquanto uma palavra representa a estética negativa da identidade negra uma segunda mascara sua posição de marginalidade. A obra, Memórias da Plantação é convidativa para entendermos essa discussão que transcende os nossos espaços de vida.
O discurso de Bolsonaro, reproduzido por seus lacaios e por alguns monopólios de mídia, problematiza o debate da diferença. No entanto, o problema não é a diferença, mas eliminar a diferença. Desse modo, é uma narrativa que objetiva moldar as estruturas num sentido de exclusão dessas epistemologias que devem fazer parte dos projetos e políticas de governo. A retórica do governo Bolsonaro não tem a ver com a democracia e com o humanismo. Mas, direciona-se aos interesses geopolíticos com alinhamento teórico aos pressupostos do imperialismo Norte Americano. Por isso, há um discurso projetado a exclusão de identidades que simbolicamente são rotuladas como a personificação de um sujeito violento e criminoso.
Numa outra situação de conjuntura, Bolsonaro afirma que “O índio está evoluindo”.Essa afirmativa retrata a total personificação do incivilizado. É explícito que o racismo se constitui numa relação de diferença, poder e hierarquia. Nesse sentido, não podemos naturalizar o racismo. É necessário entendermos essa prática política e discursiva e pensar em proposições de emancipação e superação destes discursos que alimenta o ego do sujeito branco. Para além disso, a obra é convidativa a montarmos uma configuração de resistência frente as estruturas colonialistas de opressão. Há nesse sentido um diálogo entre teoria estudada e prática vivenciada. Por isso, Memórias da Plantação é indispensável para entendermos o racismo diante de situações concretas da realidade que vivenciamos e que estamos vivenciando. Como afirma Grada (2019), “[..] o racismo cotidiano incorpora uma cronologia que é atemporal”. (p. 29).
“Fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Nem para procriador ele serve mais”. Bolsonaro apresentou essa narrativa racista em 2017 numa palestra no Clube Hebraica no Rio de Janeiro. De fato, essa retórica segue uma lógica da política da segregação e do aniquilamento da cultura de povos colonizados. Uma retórica ofensiva, descrita a partir da perspectiva do colonizador. O racismo coloca as identidades oprimidas nas margens. É assim que a política racista e elitista de Bolsonaro pode ser percebida e compreendida. Além do discurso, o racismo está configurado nas ações. Nessa perspectiva, são vivas as medidas racistas do governo Bolsonaro a exemplo da tentativa de remoção das comunidades quilombolas de Alcântara no Maranhão a fim de expandir o Centro de Lançamento de Alcântara, cedido aos EUA. São políticas que atendem a geopolítica imperialista.
É visível a rejeição a negritude em suas políticas de governo. No mais, as narrativas e ações de Bolsonaro estão de acordo com o projeto colonizador de silenciamento das vozes oprimidas. Temos que compreender que o racismo perpassa também o campo das instituições. No limiar da atual conjuntura política, é visto que as instituições estão ocupadas por ideólogos que corroboram com as narrativas racistas de Bolsonaro. Como discutido, o racismo está metodicamente alinhado a categoria de gênero. Desse modo, são vários os discursos racistas do atual governo que atingem a dimensão do gênero. Os discursos racistas de Bolsonaro cumprem uma função ideológica assim como o racismo institucional na medida que há um tratamento desigual diante das relações materiais na sociedade.
“O racismo é uma realidade violenta”. (KILOMBA, 2019, p. 71). Sem dúvidas, o racismo representa uma política que fere e traumatiza as identidades. É nesse sentido de violência simbólica que se constitui as práticas racistas de Bolsonaro além do racismo institucional mediante as ações de seu governo. Felizmente, Grada Kilomba discute o racismo na sua totalidade e nos dar a oportunidade de entender essa categoria político-discursiva a partir de uma leitura crítico-reflexiva e da dialética materialista. Para além disso, é preciso superar as práticas racistas, posicionar-se de maneira antirracista, destituir as fantasias brancas e em geral destituir a ideologia colonialista na sua essência.
Arnóbio Rodrigues de Sousa Júnior é Estudante do curso de licenciatura em Geografia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará e militante do PSOL
Antonio Avelar Macedo Neri é Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2019.
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