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BRASIL

Obituário: o grito silencioso da memória no projeto “inumeráveis”

Celso Lins*, de São Paulo, SP

Esta palavra triste do título, palavra quase em esquecimento, o obituário era página obrigatória nos jornais impressos, e durante anos foi o lugar de nominar os que nos deixaram. Tinha o importante papel de fazer circular a notícia do falecimento e, em alguns casos, chegava a indicar o local e horário do velório para que as pessoas, num mundo sem internet e celulares, tivessem a notícia da “passagem” e pudessem ir consolar e reconfortar a família.

Nos dias de hoje, o obituário me diz mais, me diz da identidade do e da falecida ou falecido, garantindo à família a certeza de um abraço, a esperança de reencontrar nas pequenas histórias contadas pelos amigos próximos ou distantes, uma breve lembrança: “Ela era uma mulher brilhante, defensora do direito…” ou “Ela era uma trabalhadora consciente de seu papel revolucionário na sociedade.” Frases que ajudam a conhecer quem não pode mais desenhar sua história, entregue à versão dos que dela participaram.

Um programa dominical pela televisão colocou entre seus quadros atores contando em poucas palavras a despedida de vítimas da COVID-19. Estas pequenas histórias foram sacadas do site “Inumeráveis” que se descreve como “Memorial dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil.” Seu título sugere que as pessoas que estão nos deixando não sejam números mas histórias, que sua dignidade humana fique em palavras não em algarismos hindu-arábicos.

Mas na realidade brasileira até virar número virou privilégio, pois se muitos se vão sem a atenção médica necessária, quanto mais o devido teste para COVID! Vemos ai outra triste relação do poço de desigualdades aprofundadas pelo golpe de 2016. Sim, é preciso explicitar uma e outra vez que as decisões politicas são as responsáveis por estas mortes, pela subnotificação e que isso não é só um resultado de decisões recentes mas de já quase quatro anos de um politica afastada do povo, demonizada por uma parcela significativa da população e apossada pela milícia.

Palavras duras para lembrar da PEC 95, ou emenda do fim do mundo? Pois é!!! O fim do mundo chegou, pelo menos até o momento, para mais de 11 mil brasileiros. O SUS sucateado, com número reduzido de funcionários e instalações abandonadas, o programa mais médicos abandonado, os Estados endividados, são todos face de uma mesma moeda.

Moeda que era utensílio colocado sobre os olhos dos mortos na Grécia antiga para pagarem ao barqueiro Caronte o favor de levá-los para o mundo dos mortos. Moeda que é paga aos bancos com o orçamento público e leva milhares de brasileiros ao mesmo destino dos gregos antigos. Moeda de uma única face dura e cruel de transformar vidas em números.

Qual número vai expressar este momento da nossa história?

No excelente filme Erin Brockovich um simpático rapaz pergunta a bela Julia Roberts seu número, ela irritada lhe pergunta que número? O do seguro social, o do CPF, ou o número de filhos que ela tem?! Qual número vai expressar este momento da nossa história? Será o número de mortes? O de infectados? Ou o número de recursos repassados aos bancos – 1,2 trilhão de reais – já citado como o maior repasse de liquidez da história? Ou ainda o ano de mais um impeachment?

O resgate da história dos Inumeráveis é uma revolta ante a falta de humanidade das autoridades públicas, ante a falta de leitos de UTI. É o grito silencioso dos obituários, das vozes que nunca foram ouvidas. São as palavras de amor dos que ficaram, que devem ser gravadas em nós com revolta esperançosa de que precisamos mudar.

Mudar os números, mudar atitudes e mentes hoje presas neste ciclo de morte dos telejornais por uma visão humanizada, dos nossos mortos, de nosso povo, nossas famílias. Para isto os convido a pensar alternativas no plano político e econômico, não aceitar o sistema posto, a moeda fria. Só a sociedade organizada pode voltar a dar história às pessoas. Precisamos taxar grandes fortunas, precisamos de uma economia solidária e biocentrada, precisamos de políticos comprometidos com estes objetivos. Fora o fascismo.

Viva o Povo Brasileiro!

 

*Professor do Departamento de Engenharia de Biossistemas da USP.

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coronavírus / memória