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TEORIA

Coronavírus e o freio de emergência: a radicalidade da crise socioecológica

João Pedro Mesquita e Luísa de Novelli, de São Paulo, SP
Ana shvets / Pexels

Marx, desde o início de sua obra, já chamava atenção para um processo extremamente danoso à experiência da vida humana em sociedade: a alienação do trabalho[1]. Fruto desse processo que se deu ao longo do desenvolvimento do modo de produção capitalista, vivemos nossas vidas cotidianas de maneira desconectada da natureza. O produto do nosso trabalho, que só é possível porque a natureza fornece os recursos necessários para realizá-lo, se torna estranho a nós — por um lado porque não nos pertence mais (mas ao capitalista), por outro porque perde o sentido de atender às nossas necessidades autênticas. Em vez disso, o produto do nosso trabalho, privadamente apropriado, ganha vida própria e um sentido muito mais perverso: ele reproduz a própria relação de dominação à qual nós, enquanto trabalhadores, estamos submetidos.

Marx vai muito além em suas reflexões, mas o que queremos chamar atenção aqui é muito simples: alienados, perdemos de vista a íntima relação que existe entre nós e a natureza, entre a produção que sustenta nossa sociedade e as condições necessárias para a existência dessa produção. Salvo raras exceções, não somos mais capazes de identificar que tudo aquilo que fazemos diariamente para produzir e reproduzir nosso modo de vida depende da relação que estabelecemos direta e indiretamente com a natureza — essa coisa que parece tão distante de nós, embora nós sejamos sua expressão. Na realidade, sociedade e natureza estão visceralmente conectadas uma à outra, constituindo aquilo que Marx chamou de sociometabolismo. O próprio trabalho foi definido por ele em termos metabólicos, como aquele que media, regula e controla o metabolismo do homem com a natureza[2]. E que, alienado, se perdeu.

E por que todo esse papo?

Porque esse distanciamento se expressa não só quando se impõe um ritmo de produção que desrespeita os limites naturais do planeta ou quando achamos perfeitamente normal que a exploração dos recursos naturais seja orientada pela lógica do lucro ao invés de critérios que sejam racionais. Ele se expressa também quando nos tornamos incapazes de perceber a conexão entre essa relação predatória com a natureza e a emergência de problemas bastante concretos, como hoje é o coronavírus e a crise econômico-sanitária dele derivada.

Se trata de uma dupla insensibilidade: não enxergamos nem o nosso impacto na natureza nem o impacto dela sobre nós. Mesmo que hoje esses impactos, sobretudo os negativos, sejam mais evidentes do que nunca.

Pois é: embora a possibilidade de um vírus que infecta animais silvestres mutar e saltar de seu hospedeiro original para um hospedeiro humano não dependa exatamente de nós, a maneira como alteramos irracionalmente o ambiente e aumentamos a proximidade entre populações humanas e esses agentes patogênicos potencializa o perigo. Sabidamente, a emergência de zoonoses é positivamente afetada pelo aumento da frequência do contato humano com seus possíveis vetores, e uma maneira bastante conhecida de se aumentar esse contato é destruindo os habitats onde vivem os reservatórios virais[3]. Isso mesmo: uma das consequências “invisíveis” do desmatamento é aumentar as chances do surgimento de novas zoonoses. Já sabemos disso, mas continuamos expandindo nossas fronteiras urbanas e agrícolas de maneira desorganizada e inconsequente.

Curiosamente, estudos científicos já haviam nos alertado sobre o perigo: não só sobre como o desmatamento poderia levar ao surgimento de zoonoses (assim, em abstrato), mas especificamente sobre como diversas espécies de morcegos são reservatórios de coronavírus iminentemente perigosos aos humanos[4] — até porque anos atrás já tínhamos visto o surgimento da MERS e da SARS e tido uma amostra do estrago que poderia ser causado. Nada muito diferente da normalidade: os alertas são dados e, embora cada vez mais preocupantes, sistematicamente ignorados.

Vejamos o que ocorre, por exemplo, no Brasil. Por um lado, o governo federal, com sua inépcia e ignorância, catalisa o desastre humanitário provocado pelo coronavírus. Por outro, continua tapando os olhos para a devastação da Amazônia, que tem sido registrada em ritmo crescente. Os alertas de desmatamento registrados pelo Inpe em março deste ano cresceram 30% em relação ao mesmo mês do ano passado, depois de um aumento de 25% em fevereiro e 52% em janeiro[5]. Isso significa o pior primeiro trimestre dos últimos 5 anos. Enquanto isso, o Ibama e o ICMBio seguem sendo entusiasticamente desmontados pelo governo federal, que prioriza em sua agenda propostas absurdas como a MP 910[6] (apelidada de MP da Grilagem) que, resumidamente, premia grileiros que ocuparam ilegalmente terras públicas de até 2500 hectares, anistiando-os e os presenteando com as terras roubadas.

Isso não é muito diferente do que ocorre no mundo como um todo: enquanto se tenta lidar desastradamente com a crise de dimensões devastadoras que se apresenta, como se ela tivesse caído do céu tal qual uma punição divina, mantém-se a mesma postura negligente diante daquilo que pode tê-la causado e que, mantida a postura, continuará causando crises de dimensões cada vez maiores. Paralelamente, a crise climática bate na nossa porta, mas fingimos que não escutamos. Quando ela se abater sobre nós, também agiremos como se fosse uma grande surpresa? Fingiremos que os eventos não terão nenhuma relação com a maneira como nos relacionamos com a natureza? Que o modo destrutivo como nos organizamos em sociedade não terá nada a ver com eles?

A mortalidade cerca de 10 vezes maior registrada na periferia de São Paulo[7] é didática: tais crises não incidem sobre a “humanidade” de maneira homogênea. Existe uma delimitação de classe muito clara que determina quem serão os mais penalizados. No caso da crise climática, a perversidade é ainda maior, já que quem causa o problema[8] e quem concentra os ganhos da exploração desenfreada e irresponsável da natureza também tem uma delimitação de classe muito clara. Os ganhos se concentram nas mãos da grande burguesia e dos países centrais do capitalismo, já os custos (caríssimos) são desigualmente distribuídos de maneira inversa: pesam sobre a classe trabalhadora e os países periféricos do sistema.

Outro aspecto trazido à tona pelo coronavírus é o do trabalho reprodutivo[9] que, desde sempre, é jogado sobre as mulheres, especialmente as pobres, pretas e periféricas, que além de executarem um trabalho não remunerado para manterem suas próprias famílias, repetem esse trabalho de forma extremamente precarizada em outras. Não é nem um pouco chocante atestar que, tanto com a crise do coronavírus quanto com o colapso ecológico que ganha contornos cada vez mais dramáticos, as mulheres são e serão especialmente afetadas. Justamente elas, que já cumprem cotidianamente um trabalho do qual o Capital depende para sobreviver (afinal, sem o trabalho reprodutivo não há trabalho produtivo) sem nem ver a cor dos trilhões de dólares[10] que geram todos os anos. São duplamente, às vezes triplamente, exploradas. O trabalho das enfermeiras, por exemplo, é uma extensão do trabalho reprodutivo; não espanta que 87% das pessoas que ocupam cargos relacionados à enfermagem no Brasil sejam mulheres[11], que, depois da jornada extenuante de trabalho arriscando a própria vida por falta de equipamentos básicos de segurança, precisam trabalhar em suas casas cuidando de suas famílias.

A crise ecológica é um sintoma nítido de uma crise do capitalismo moderno que é múltipla, sobredeterminada pelo avanço da mercantilização da vida social e da natureza em sua totalidade. Quando falamos em captar a sua radicalidade, falamos justamente em expor quais são suas raízes mais profundas. Uma vez expostas, entenderemos que a lógica e a organização do modo de produção capitalista estão imersas em uma série de contradições. Isso que chamamos de colapso ecológico é resultado de uma contradição insolúvel no interior do sistema: o seu desenvolvimento, que depende de um crescimento virtualmente infinito, é incompatível com os limites do mundo real — mas não sem antes deteriorar brutalmente as condições ecológicas que são fundamentais para a manutenção da vida no planeta. Do mesmo modo, o aprofundamento da exploração dos trabalhadores movido pelo imperativo da acumulação privada de riqueza, deteriora brutalmente suas condições materiais e imediatas de vida. É um desastre completo e anunciado. É um desastre ecológico e também um desastre social. E nem poderia ser diferente: como já reiteramos, a vida humana em sociedade guarda uma íntima relação com a natureza.

Marx certa vez se referiu às revoluções como o trem da história. Walter Benjamin ousou discordar: a revolução é a humanidade puxando o freio de emergência. De uma forma ou de outra, é urgente mudarmos completamente de direção, ou esses trilhos de ferro nos levarão ao abismo. O coronavírus e os seus desdobramentos políticos grotescos (salvar os bancos, não as vidas humanas) são sintomas, um aviso que não se manifesta sozinho: a tragédia é cotidiana, já era assim antes dele e, depois dele, talvez seja de maneira ainda mais perturbadora, afinal se engana quem acredita que a crise atual é uma luz no fim do túnel que nos levará a uma sociedade mais razoável. Pelo contrário, essa luz é a locomotiva vindo na nossa direção. Se não quisermos ser atropelados, precisaremos intervir. Sob a pena de que a luta diária pela sobrevivência que se impõe hoje sobre a maioria da humanidade nunca tenha fim.

O que precisamos, portanto, para nos livrar dessa crise que não é pontual, mas estrutural, é de uma nova forma de nos relacionarmos com a natureza que respeite o sociometabolismo. Não eu ou você individualmente, mas a nossa sociedade como um todo. Ela precisa ser radicalmente transformada se não quisermos lidar com novos “coronavírus” e, muito pior, com a crise climática de dimensões monstruosas que se aproxima e que já possui consequências irreversíveis. Precisamos construir, articulado a um novo modo de produção, um novo paradigma de civilização. Essa construção, acredite, não virá dos detentores do poder momentaneamente assustados com a crise; eles não executarão nenhuma mudança radical em nosso benefício. Captada a radicalidade da crise social e ecológica, nós é que teremos que tomar as rédeas da história.

Notas:

[1] Ver, por exemplo, os Manuscritos econômico-filosóficos escritos por Marx em 1844, especialmente o caderno relativo ao trabalho estranhado e propriedade privada (foi consultada a edição publicada em 2004 pela Boitempo Editorial).

[2] Essa definição foi apresenta por Marx n’O Capital. Mais detalhes sobre ela e sobre a noção de sociometabolismo pode ser encontrada no texto A dialética do metabolismo sociológico, de Brett Clark e John Bellamy Foster (publicado em português pela Boitempo Editorial na edição 14 da revista Margem Esquerda).

[3] Sobre essa relação, ver o artigo de Wang e Crameri, de 2014, Emerging zoonotic viral diseases (disponível aqui) e o editorial El factor humano en el surgimiento y resurgimiento de infecciones virales (disponível aqui).

[4] Há uma série de estudos apontando para esse perigo. Recentemente, em 2018, foi publicado o artigo Bats, Coronaviruses, and Deforestation: Toward the Emergence of Novel Infectious Diseases (disponível aqui), que explora justamente a relação entre desmatamento e a possibilidade de vírus da família dos coronavírus “saltarem” de morcegos para humanos. O artigo Distribution of bat-borne viruses and environment patterns, de autoria de Afelt e colaboradores, de 2018, também já explorava a mesma relação (disponível aqui), assim como  o capítulo Bats, bat-borne viruses and environmental changes, de Devaux e colaboradores, publicado no mesmo ano (disponível aqui). Um ano antes, o alerta também já era dado na famosa revista Nature, que publicou a notícia Bats are global reservoir for deadly coronaviruses (disponível aqui). Há também artigos publicados depois do surgimento da Sars-Cov2 que apontam para as mesmas relações mencionadas no texto, como o de Nabi e colaboradores (Preventing bat-born viral outbreaks in future using ecological interventions, disponível aqui) e o de Peters e colaboradores (Understanding the emerging coronavirus: what it means for health security and infection prevention, disponível aqui). Tudo isso é só uma amostra do que pode ser encontrado sobre o assunto na literatura científica da área.

[5] Conforme noticiado, por exemplo, aqui.

[6] Informações oficiais disponíveis aqui.

[7] Conforme noticiado, por exemplo, aqui.

[8] Ver, por exemplo, o relatório da Oxfam de 2015 que aponta que os 10% mais ricos eram responsáveis por metade das emissões de carbono no mundo, enquanto a metade mais pobre emitia apenas 10% do total (noticiado aqui). Ou então a notícia de que 20 petrolíferas são responsáveis por um terço de toda a emissão de carbono no planeta desde 1965 (disponível aqui).

[9] Sobre isso, ver, por exemplo, os diversos textos de Silvia Federici reunidos em O ponto zero da revolução, publicado no Brasil pela Editora Elefante em 2019.

[10] De acordo com dados do relatório da Oxfam Tempo de cuidar (disponível aqui), mulheres e meninas ao redor do mundo, através do seu “trabalho de cuidado não remunerado”, contribuem com pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global.

[11] De acordo com dados colhidos em 2010 pelo Conselho Federal de Enfermagem (disponíveis aqui).