Gabriel Lecznieski Kanaan
Embora o clã olavista troque xingamentos com os militares a todo momento, as diferenças entre os militares e o governo Bolsonaro parecem ser mais de forma do que de conteúdo, sendo as pernas do mesmo corpo. Os militares apoiaram a destruição das condições de estabilidade e legitimidade das instituições – o que possibilitou a ascensão de Bolsonaro – e participaram ativamente da sua campanha eleitoral. Como lembrou Piero Leirner, Bolsonaro lançou sua campanha presidencial um mês depois do segundo turno das eleições de 2014 discursando na formatura da AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), o que fez desde então com o respaldo do alto comando das Forças Armadas. Segundo o artigo do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança institucional (GEDES) escrito por Ana Penido, Suzeley Mathias e Jorge Rodrigues e publicado pelo Instituto Tricontinental, referência para nossa análise, “existe um projeto de poder e um objetivo”, como “passar a limpo acordos feitos na Constituinte”.
As raízes comuns do conservadorismo militar e do olavismo
O núcleo militar é o principal esteio do governo. As Forças Armadas ocupam 8 ministérios e cargos-chave nas secretarias: como aponta João Filho a partir de quadro do Estadão de março de 2019, havia 52 oficiais do Exército, 16 da Marinha e 3 da FAB em cargos logo abaixo ao de Ministro. Ao longo do ano passado, essa presença se ampliou,: segundo levantamento feito em outubro pela Folha, o total de militares em cargos de chefia ou assessoramento chegou a 2500, um aumento de aproximadamente 325 postos em relação ao início de 2019.
Embora os militares disputem essas posições no governo com o clã olavista e travem com eles uma guerra constante no Twitter, as semelhanças entre os dois grupos é maior do que parece. No texto “Bolsonaro e os quartéis”, Pinto argumenta como o núcleo “familiar-ideológico” e o “núcleo militar” têm origem comum no pensamento neoconservador da alt-right (extrema-direita) norte-americana dos anos 1980. Seus ideólogos acreditavam que o politicamente correto e o multiculturalismo eram agendas do marxismo cultural, influenciado pelo pensamento de Lukács, Gramsci e a Escola de Frankfurt, para destruir os valores ocidentais judaico-cristãos. Qualquer semelhança com a guerra santa de Olavo de Carvalho e seus pupilos ao marxismo cultural não parece ser coincidência, afinal, Olavo sempre esteve de olho nas referências da alt-right norte-americana (mora nos EUA desde 2005).
Da mesma forma, como levantou a pesquisa de Pinto, o general Avellar Coutinho, falecido em 2011 e segundo Pinto o guru do núcleo militar, avalia em seu livro “Revolução Gramscista no Ocidente” (2002) que a maior ameaça a ser enfrentada pelas Forças Armadas era o Movimento Comunista Internacional (MCI), que ocupou as escolas, as universidades e os meios de comunicação com o discurso do politicamente correto e com as pautas “identitaristas”, e teria tomado o Estado no Brasil com a eleição de Lula. O discurso deles está visivelmente em consonância com os delírios da face proto-fascista. Segundo Olavo, ele próprio era “grande amigo” de Coutinho. Outro intelectual das Forças Armadas no combate ao marxismo cultural é José Fábrega, que apresentou Gramsci ao general Coutinho (dentre os poucos textos seus disponíveis na internet, está uma palestra em 2001 que inicia polemizando com Carlos Nelson Coutinho). É interessante observar, no entanto, que no início da sua carreira política, Bolsonaro era visto com maus olhos pelo general Coutinho, que o criticou em 1989 dizendo que ele “fazia o jogo das esquerdas”, levando as Forças Armadas ao “descrédito” e “quebrando a coesão interna”. Segundo o Estadão, a reconciliação do alto comando com Bolsonaro foi costurada desde então por outro agente do CIEx, o tenente-coronel João Noronha Neto (figura pouco conhecida, a ser investigada).
Como observou o GEDES, os militares e o bolsonarismo também partilham a crítica ao identitarismo (que consideram dividir a identidade do povo brasileiro) com a alt right norte-americana, o que é também uma convergência com outra base social do bolsonarismo, o conservadorismo pentecostal.
As falas dos generais contemporâneos refletem essas teorias da extrema-direita, embora muitos ainda insistam em ver as Forças Armadas como moderadoras. Como Pinto levantou, Villas Boas afirmou, em entrevista a Roberto D’Avila em março de 2018, que com o advento do “politicamente correto (…) quanto mais ambientalismo mais dano ambiental, quanto mais preocupação racial mais preconceito, quanto mais gênero mais preconceito”. O general da reserva Luiz Eduardo Paiva, em programa da GloboNews de setembro de 2018, comentou que o PT estava “implementando no país uma revolução silenciosa que é a revolução Gramscista”. E Augusto Heleno disse na GloboNews em janeiro de 2019 que “nós beiramos o socialismo, até tentamos com o Foro de São Paulo”.
Os militares e o globalismo
No entanto, segundo Pinto, Avellar Coutinho avaliava que a globalização neoliberal foi positiva, demarcando uma diferença com a alt right norte-americana e com o clã Bolsonaro. O recente documento “Crise do COVID-19: estratégias de transição para a normalidade”, lançado pelo Centro de Estudos Estratégicos do Exército no início de abril de 2020, defende a importância dos organismos multilaterais, o que pode ter sido um dos motivos que gerou atritos com o Bolsonaro e levou o documento a ser tirado do ar.
Por outro lado, há setores militares que endossam a cruzada contra os globalistas. Augusto Heleno, quando era o Comandante da Amazônia em 2008, combateu a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, acusando as ONGs que defendiam a demarcação de serem mecanismos de intervenção estrangeira – o que reafirma até hoje. O comandante anterior tinha sido Santa Rosa, afastado em 2007 justamente por atritos com as ONGs. Logo após a eleição de Bolsonaro, Santa Rosa (quando ainda era secretário da Secretaria de Assuntos Estratégicos) lançou o “projeto Barão do Rio Branco”, com o objetivo de ocupar ocupar a Amazônia para afastar a “campanha globalista” que “relativiza a soberania na Amazônia” usando como instrumentos as “ONGs, a população indígena, quilombola e os ambientalistas”. Segundo a apresentação do projeto, os paradigmas do “indigenismo”, do “quilombolismo” e do “ambientalismo” são entraves a serem eliminados. Há, portanto, uma aproximação desse grupo de militares à campanha olavista anti-globalista, e portanto, um distanciamento das teses do general Coutinho. Tais elementos apontam, portanto, para possíveis fissuras nas Forças Armadas sobre o globalismo.
Disputas entre militares e olavistas no governo
Tendo tanto em comum, os militares apoiaram Bolsonaro almejando compartilhar o poder e decidir o essencial através do GSI de Heleno e da vice-presidência de Mourão. Muitas análises apontam que logo no início do governo ocorreu uma “reversão de expectativas”, quando constaram que o “cavalão”, como era conhecido Bolsonaro na academia, era indomável. Por outro lado, é improvável que os militares não esperassem tal conduta de uma figura que conheciam muito bem, e que escolheram como representante justamente pelo seu potencial de operar como um para-raios: enquanto Bolsonaro gera o caos, as Forças Armadas trazem a ordem, fantasiando-se de bombeiros para apagar os incêndios causados pelo presidente.
Como disseram Rejane Hoeveler e Danilo George, os filhos 01, 02 e 03 “estão em guerra permanente contra todos”. Da mesma forma que Luís Bonaparte, atacam até o papa: Carlos já insinuou que ele é comunista e o próprio Bolsonaro atacou os comentários do papa sobre a Amazônia. Mas, ao contrário do aspirante a imperador da França, que sempre louvava as Forças Armadas, lançam fogo até contra os militares. Recentemente, o 02 Carlos atacou Mourão por se reunir com o governador do PCdoB Flávio Dino, insinuando que estavam se movimentando para formar uma junta militar e limitar o poder do presidente. Os ataques do 02 a Mourão não são de hoje: para dar só mais um exemplo, em abril do ano passado Carlos criticou Mourão depois que o general disse que a oposição a Maduro não deveria pegar em armas (destacando outra divergência da familícia com os militares acerca da invasão da Venezuela).
Os filhos 02 e 03 seguem os ensinamentos de Olavo, que desde o início do governo diz com todas as letras que Mourão conspira pela cadeira do presidente: ele já chamou Mourão de “idiota” com “mentalidade golpista”. Segundo levantamento do Correio Braziliense, dos 287 posts de Olavo no Twitter nas duas primeiras semanas daquele mês, 77 (27%) são críticos a Mourão e a militares de forma geral”. No mês seguinte, Villas Bôas devolveu a acusação, dizendo que Olavo era uma “pessoa doente” que “passou do ponto”, e “se arvora com mandato para tutelar o presidente”.
Em maio, concretizaram-se os primeiros atritos entre os militares e o núcleo familiar-ideológico quando Marco Aurélio Vieira foi exonerado do cargo de secretário especial de Esporte por divergências dele com o então Ministro da Cidadania Osmar Terra. Foi o 1º militar a cair.
Em junho de 2019, Bolsonaro demitiu Santos Cruz da Secretaria de Governo por pressão de Olavo de Carvalho. Foi o 2º a cair, mas o primeiro general.
Dentre as fissuras entre o núcleo militar e o núcleo “ideológico” do setor rural, destaca-se a demissão, em junho, do general Franklimberg de Freitas da presidência da Funai por Bolsonaro (foi o 3º a cair), a pedido do seu conselheiro Nabhan Garcia, Secretário do Ministério da Agricultura e apelidado de “Olavo do campo”.
O 4º a cair foi fruto de uma crítica às privatizações. Bolsonaro acusou Juarez Cunha de agir como sindicalista ao criticar a privatização dos Correios e o demitiu em junho de 2019.
Nabhan repetiu a pressão em outubro e Bolsonaro exonerou o general João Carlos Jesus Corrêa (o 5º a cair) da presidência do Incra, passando por cima da ministra da Agricultura, Tereza Cristina. Jesus Corrêa caiu disparando que havia “organizações criminosas no Incra”, e seu auxiliar Marco dos Santos – coronel que caiu junto com Jesus e outros três coronéis – acusou Nabhan de fazer parte de “facções” que “operam dentro do Incra movidas por interesses corruptos”. Tal acusação deixa transparecer indícios de conflitos entre forças organizadas e hierárquicas com forças difusas, policiais ou milicianas. A fala de Jesus também reforça o foco dos militares no discurso das Forças Armadas como força moralizante de combate à corrupção. Outro elemento que aponta para esse foco é a crítica de Santos Cruz em janeiro de 2020 a Bolsonaro por ter se afastado do combate à corrupção, pólo de críticas que tende a se intensificar com a saída de Moro.
E em novembro, o 6º a desembarcar foi Santa Rosa, que pediu demissão da chefia da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), subordinada à Secretaria da Presidência de Jorge Oliveira, por divergências com o secretário. Como Oliveira é policial militar e intimamente ligado à familícia, é possível que um dos elementos do desentendimento esteja relacionado a atritos entre os dois pois o general Santa Rosa estava sob o comando de um mero policial militar (na hierarquia, as polícias estão subordinadas às FFAA). Como a saída de Jesus Corrêa também sugere, uma das contradições da ocupação em massa do governo pelos militares é que em certos casos, patentes mais altas ficarão subordinadas a patentes mais baixas de acordo com os cargos no governo. Tal análise é central para compreendermos a relação dos militares com o baixo escalão do Exército, as polícias e as milícias, a base social fundamental da familícia Bolsonaro, que faremos no texto “Autocráticos e protofascistas”.
A partir da conjuntura aberta pela pandemia, os militares se reposicionaram, reconquistando posições. A nomeação de Braga Netto para a Casa Civil dia 14 de fevereiro de 2020 foi um salto “qualitativo” na relação, e simbolizou uma aproximação ainda maior dos militares e Bolsonaro. No mesmo dia, o núcleo militar ganhou outra posição quando Bolsonaro nomeou o vice-almirante da Marinha Flávio Augusto Viana Rocha à Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). Com o movimento, a secretaria assumiu a primazia sobre a assessoria de política externa, subordinando o assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais Filipe Martins, número 1 do olavismo no governo, ao comando da SAE. O vice-almirante que assumiu a SAE reconquistou a posição que havia sido perdida com a saída de Santa Rosa em novembro de 2019, o qual havia sido substituído pelo administrador Bruno de Souza.
Dessa forma, os filhos e Olavo cumprem a função de ataque preventivo aos militares, com o consentimento do presidente, enquanto, ao mesmo tempo, cobram uma postura mais agressiva dos militares: em dezembro de 2019, para dar apenas um exemplo, Olavo clamou para que fechassem os partidos. Os militares parecem utilizar a estratégia de apagar alguns incêndios, atiçando outros. Mas, se houve hesitações de alguns, com o “foda-se” de Heleno ao Congresso soltaram as amarras e zarparam com a correnteza bolsonarista. Mesmo sem saber se haverá retorno.
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