A meu ver, a questão central do artigo de Mourão é a possibilidade de abrir-se no Brasil uma situação pré-revolucionária. Já no início do texto, ele aponta para o xis do problema, quando afirma que a pandemia da Covid-19 é uma questão que apresenta diversos significados: de saúde, social, econômica e “pode ser de segurança”. Provavelmente, há aí uma elipse, omitindo o autor o adjetivo “nacional”, conforme os preceitos ideológicos que orientam a formação dos oficiais brasileiros. Mais adiante, ele se refere ao “estrago institucional que vinha ocorrendo, mas agora atingiu as raias da insensatez, está levando o País ao caos”.
As preocupações contrarrevolucionárias preventivas com a ordem e a segurança nacional impregnam esse governo militarista em todos os seus setores e desde o início. Uma expressiva manifestação deste traço foi o pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro diante das massivas manifestações contra o governo do presidente Sebastián Piñera e suas medidas neoliberais, registradas no Chile no segundo semestre de 2019: “Conversei com o ministro de Defesa sobre a possibilidade de ter movimentos como tivemos no passado, parecidos com o que está acontecendo no Chile, e, logicamente, essa conversa, ele leva a seus comandantes. E a gente se prepara para usar o artigo 142 [da Constituição], que é pela manutenção da lei e da ordem (…)”. Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro acusou o senador Humberto Costa (PT-CE) “de estimular as massas [brasileiras] para o confronto” ao publicar mensagens em defesa dos protestos no país andino.
A conjuntura política brasileira atual tem com a chilena um traço em comum: uma situação econômico-social que rebaixa de maneira dramática as condições de vida da esmagadora maioria da população. É bem razoável conjecturar que estão dadas condições objetivas para ocorrer uma rebelião de massas no Brasil, e há muitas experiências históricas que dão conta da rapidez com que isso pode acontecer. Até mesmo o presidente Jair Bolsonaro, impactado pela situação chilena, percebeu isso, provavelmente por ter notícia das condições de vida dos setores mais pobres da nossa sociedade, junto aos quais obteve boa parte dos votos que o elegeram.
Em seu artigo, o vice-presidente dá a entender que vê um Estado politicamente forte e livre de óbices à ação contrarrevolucionária como o elemento central de enfrentamento da crise. É este, a meu juízo, o sentido das colocações que faz sobre a questão do federalismo, retomando uma discussão que permeia a nossa história política desde a Assembleia Nacional Constituinte de 1891. O objetivo deste recuo no tempo parece ser o de legitimar a tese da necessidade de defesa dos poderes do Estado em face de questões políticas relativas à segurança nacional. O governo tem se orientado por esta perspectiva, inclusive na área econômica, o que desnuda o sentido político das medidas (ainda que avaras) de concessão de auxílio emergencial aos trabalhadores: amenizar a situação de miserabilidade que pode se generalizar dentre o imenso contingente de desempregados e despossuídos em geral. É às disputas entre os poderes da República e entre o Executivo federal e o eixo-estados-municípios que o artigo do general Mourão se refere quando tenta resgatar as considerações dos “pais da pátria” estadunidenses em torno das prerrogativas do governo central em um sistema federativo. Haveria muito que dizer, do ponto de vista teórico e histórico, sobre a viagem do general no tempo, mas o mais importante, agora, é perceber que a digressão visa dar substância à mensagem política relativa à conjuntura.
O vice-chefe do Executivo parece ter escrito o artigo como um recado a dois destinatários coletivos.
O vice-chefe do Executivo parece ter escrito o artigo como um recado a dois destinatários coletivos. O primeiro grupo seria o das direções dos demais poderes constitucionais (Legislativo e Judiciário), governadores, prefeitos, mídia (principalmente a Rede Globo, é claro), empresários (este é, certamente, um dos significados das inciativas “filantrópicas” de segmentos empresariais em face do impacto da pandemia sobre os trabalhadores, tanto formais quanto informais, empregados ou desempregados), dirigentes de entidades com poder de influenciar as massas, como os institutos de pesquisa, inclusive científica etc. O recado parece ser: se não fizerem frente ampla com o governo federal, contribuirão para a abertura de uma crise pré-revolucionária.
O segundo grupo destinatário seria a alta hierarquia militar. Para este, o recado seria o de que as Forças Armadas deverão estar unidas em torno da governabilidade, isto é, da defesa da lei e da ordem. Pode-se perceber, subjacente às considerações do artigo, a prioridade conferida à estabilidade do governo, mas também à sua eficácia. O general é, provavelmente, um dos muitos militares leitores do cientista político Samuel P. Huntington, que, em livro publicado em 1968, escreveu nas primeiras linhas: “A distinção política mais importante entre os países se refere não à sua forma de governo, mas ao seu grau de governo. As diferenças entre democracia e ditadura são menores que as existentes entre os países cuja política compreende consenso, comunidade, legitimidade, organização, eficiência, estabilidade e os países cuja política é deficiente nessas qualidades”. [1]
Pode-se depreender do artigo que o general vice-presidente prega a sustentação do presidente da República até o ponto em que as suas próprias idiossincrasias rebaixem perigosamente o “grau de governo” do país. Quanto a este tópico, a estratégia política do presidente Jair Bolsonaro, nutrindo-se de cadáveres precoces de auxiliares por ele mesmo nomeados (o caso mais recente é o de mais um ministro da Saúde) e sangrando as instituições democráticas de “peso e contrapeso”, deve ser vista pelo vice-presidente como um óbice à concretização dos objetivos contrarrevolucionários da hierarquia militar. Ela impede a execução do planejamento político, alicerce de qualquer estratégia que se pretenda vitoriosa, como ensinam os manuais da Escola Superior de Guerra.
Há indicações de que o presidente Jair Bolsonaro, de um lado, e o conjunto de oficiais generais do governo e, possivelmente, o núcleo estratégico do Estado, de outro, se orientam por perspectivas estratégicas diferentes. Estes últimos têm recursos de informação para saber que, na hipótese de a crise desandar em uma situação pré-revolucionária, o Estado já dispõe dos recursos jurídico-político-militares-policiais para enfrentá-la, restando conseguir a unidade entre as Forças Armadas (FFAA), Legislativo, Judiciário e governadores em torno da repressão. Entretanto, na hipótese de a crise derivar para um levante das forças da extrema-direita, apoiado nos setores sociais identificadas com o bolsonarismo e na forma de operações milicianas, marchas violentas contra os trabalhadores, forças políticas de esquerda e representantes da oposição conservadora não bolsonarista etc., fica uma incógnita quanto ao tipo de reação possível: a ver como se comportariam as Forças Armadas e a oposição liberal. Em ambas as hipóteses, contudo, não seria improvável um cenário com um banho de sangue promovido pela extrema-direita militarizada, diante do qual as FFAA se recolham olimpicamente aos quarteis, como aconteceu recentemente na Bolívia.
Desde ontem, encontram-se na mídia interpretações do artigo assinado pelo general Mourão que o entendem como uma pesada manifestação de apoio incondicional ao governo de Jair Bolsonaro. As considerações que fiz acima me situam em outra perspectiva. Tendo a vê-lo como um alerta contrarrevolucionário preventivo às forças supostamente detentoras de recursos para evitar a mudança de qualidade da crise, que ela deixe de ser, apenas, de saúde, social, econômica e se torne, também, de segurança – segurança nacional, bem entendido.
* Professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Notas:
[1] HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas Sociedades em Mudança. Trad. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro, Forense-Universitária; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 13.
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