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BRASIL

Por que Bolsonaro idolatra torturadores?

Frederico Costa*
Jarbas Araújo/Alepe

Monumento Tortura Nunca Mais, em Recife, PE.

A tortura é quase tão antiga quanto a humanidade. Com o surgimento das classes sociais, passou a ser um instrumento constante de repressão, opressão e exploração. A prática de tortura era comum em todas as antigas civilizações da Ásia, África e Europa, inclusive na América Pré-colombiana. Entre os romanos, a tortura era legalizada.

Na Idade Média, a Inquisição católica possuía regulamento com detalhes sobre diversos recursos para extrair confissões dos acusados pelos Tribunais do Santo Ofício. Devido ao humanismo iluminista e ao processo de revoluções burguesas, em especial, a Revolução Francesa, a tortura foi condenada e abolida, pelo menos formalmente, na Europa. Com o colonialismo, a tortura foi utilizada como instrumento de dominação.

No século XX, foi generalizada por fascistas e nazistas e, também, por stalinistas na União Soviética contra dissidentes. Com a Guerra Fria entre países imperialistas e Estados operários, voltou a ser utilizada “cientificamente” por órgãos policiais e serviços de inteligência dos Estados Unidos e países europeus, além dos órgãos de repressão de nações atrasadas.

Apesar da condenação figurar na Declaração Universal dos Direitos, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, as denúncias vêm crescendo no ritmo das guerras étnicas, golpes de Estado e crises econômicas.

No Brasil, a tortura faz parte da própria história. O escravismo colonial, que só terminou no final do século XIX, institucionalizou a prática da tortura como forma de controle social. A Abolição não a extinguiu. Passou a patrimônio comum das delegacias polícias em todo o país. Nos tempos de exceção, como o Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1985), passou a arma de luta política contra opositores, sempre acompanhada de um típico produto nacional, o “pau-de-arara”.

A ditadura militar, enaltecida como um passado mítico pela ideologia bolsonarista, a aplicou amplamente contra presos políticos indefesos e indefesas: nas masmorras dos DOI-CODIs, centros militares e Deops de São Paulo. A tortura política é forma grotesca de alienação que busca destruir a integridade do indivíduo.O psicanalista Hélio Pellegrino assim a analisa, em texto clássico:

A tortura política em nenhum caso é mero procedimento técnico, crispação de urgência numa corrida contra o tempo, destinada à coleta fulminante de informações. Expressão tenebrosa da patologia de todo um sistema social e político, ela visa à destruição do sujeito humano, na essência de sua carnalidade mais concreta […] a tortura busca, à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente […] Através da tortura, o corpo se torna nosso inimigo, e nos persegue. É este o modelo básico no qual se apoia a ação de qualquer torturador […] A tortura destrói a totalidade constituída por corpo e mente, ao mesmo tempo que joga o corpo contra nós, sob forma de um adversário do qual não podemos fugir, a não ser pela morte. A tortura transforma nosso corpo – aquilo que temos de mais íntimo – em nosso torturador, aliado aos miseráveis que nos torturam […] O corpo, na tortura, nos acua, para que nos neguemos enquanto sujeitos humanos, fiéis aos valores que compõem nosso sistema de crenças. Ele se volta contra nós, na medida em que exige de nós uma capitulação que, uma vez consumada, nos degradaria […] Ao quebrar-se frente à tortura, o torturado consuma – e assume – uma cisão que lhe rouba o uso e o gozo pacíficos do seu corpo. A ausência de sofrimento corporal, ao preço da confissão que lhe foi extorquida, lhe custa a amargura de sentir-se traidor, traído pelo próprio corpo […] quando vitoriosa, opera no sentido de transformar sua vítima numa desgraçada – e degradada – espectadora de sua própria ruína […] o torturado não pode falar, embora esta seja uma exigência quase sobre-humana. Sua não-fala, ou a fala do despistamento, constituem, na tortura, o discurso do herói […] Se o torturado não fala, pode morrer fisicamente. Se fala, e confessa, sucumbe a uma discórdia fundamental e morre como pessoa […] O torturador, este não tem saída nenhuma. Quando consegue êxito – e esta é a sua melhor hipótese -, o torturador, à semelhança da hiena, passa a alimentar-se de um cadáver. A confissão do torturado significa o seu assassinato enquanto pessoa. O torturador vitorioso tem, portanto, nas garras e nos dentes, os despojos massacrados de um sujeito humano. Ele vive da morte – e na morte [1].

Bolsonaro e seus adeptos idolatram o Coronel Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o DOI-CODI do II Exército, torturador condenado. Depois de participar de manifestações neofascistas contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, no domingo (3/5),o presidente recebeu, como “herói”, na segunda-feira (4/5), o tenente-coronel da reserva Sebastião Curió Rodrigues de Moura. “Curió”, segundo a Comissão Nacional da Verdade, teve atuação direta em execuções, sequestros, prisões ilegais, tortura e desaparecimento de pessoas. Na quinta-feira (7/5), a Secretária Especial da Cultura, Regina Duarte, minimizou a ditadura militar, as torturas e as mortes pelo novo coronavírus, chegando a cantarolar a música “Pra Frente Brasil”, usada politicamente no governo do general Emilio Garrastazu Médici (1969-1974).

Tal enaltecimento da ditadura militar com seus métodos de repressão e tortura é comum não só aos membros do governo de extrema direita de Bolsonaro, mas também é hegemônica em sua base parlamentar, nas forças armadas, nas polícias militares e civis estaduais, no clero das igrejas pentecostais e neopentecostais, em movimentos  neofascistas (monarquista, integralista, “Endireita Brasil”, Movimento Brasil Conservador, supremacistas brancos, católicos tradicionalistas entre outros).

De fato, a principal corrente do neofascismo brasileiro, ou seja o bolsonarismo, é um amálgama de posições díspares (monarquismo, liberalismo, corporativismo fascista, neonazismo, defensores da ditadura militar, olavismo) que possuem pontos de convergências: destruição das organizações do movimento operário-popular, restrição das conquistas democráticas, aumento da superexploração do trabalho, racismo, opressão da mulher, lgbtfobia. Essa plataforma, para ser implementada, exige um aumento exponencial do nível de repressão contra as massas trabalhadoras. Por isso, a defesa de torturadores e da herança maldita da ditadura militar.

* Frederico Costa é professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisa do Movimento Operário (IMO).

Nota:

[1] PELLEGRINO, Hélio. A burrice do demônio. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1989, p. 19-21.