No livro Estrutura Social e Formas de Consciência: a determinação social do método, o autor István Mészáros discorre sobre os postulados da “unidade” e da “universalidade”, e numa crítica a Filosofia da história de Hegel, desmistifica a ideia de que “a vontade geral ideal deveria também ser a vontade empiricamente geral”. Para Mészáros, o limite da interpretação hegeliana dos princípios do liberalismo no Estado moderno, era justamente o de pensar “os conflitos, as agitações e os tumultos” como elementos que teriam de ser resolvidos pela “história futura”.
Pensei nesse pequeno e denso ponto da obra de Mészáros, para entender os “conflitos, as agitações e os tumultos”, entre esquerda e Felipe Neto. É sabido que o influenciador digital, no passado recente, não teve a mesma envergadura política de crítica ao governo Bolsonaro. Todavia, isso não o coloca num lugar cristalizado. A isenção, omissão e até conivência com o atual Governo tem sido revista não só pelo youtuber, mas por muitos e muitas brasileiras, por isso rememorar o apoio e/ou isenção desses sujeitos e sujeitas faz parte do processo ético e político de qualquer projeto societário compromissado com a transformação societária.
Toda mudança social ocorre também de forma simultânea pela autocrítica, a partir das experiências concretas dos/as sujeitos/as. Por isso seja Felipe ou o vizinho da rua, a crítica pública e coletiva é sempre necessária, porque o arrependimento individualizado de nada nos serve. Se Felipe Neto não entendeu que uma parte da esquerda o criticou, ele também não compreendeu que o fato de estar fazendo oposição ao Governo Bolsonaro, não o coloca em situação de isenção. Muitos falam que não é a hora de criticá-lo, porque o mesmo cumpri um papel de enfrentamento, bem como possui 40 milhões de seguidores e seguidoras, em que boa parte é constituída por público jovem. Pensando em eleições, em adesão do segmento juvenil via Felipe Neto, a esquerda parece esquecer que o papel de um influenciador/a é muito distinto de um/a revolucionário/a. Felipe tem milhões de seguidores/as, mas é prematuro imaginar que a sua atuação política possa alterar substancialmente o cenário atual.
Preocupa-me a condução isolada e autônoma de Felipe Neto com sua bandeira progressista. Ninguém está contra os seus posicionamentos em relação ao Governo, pelo contrário, mas não podemos cair no erro de transformar a política dentro desse quadro de combate ao fascismo, “em mero instrumento de grosseira manipulação completamente desprovido de qualquer plano global e de uma finalidade própria”, como bem nos disse Mészáros.
Felipe Neto tem 4 grandes empresas digitais: Netolab, inStudios, Play9 e Vigia de preços. Na play9 conta com nada mais nada menos que Marcos Vinicius Freire (ex-diretor do comitê olímpico do Brasil) com um dos sócios, o outro é um ex-diretor executivo de esportes da Globo. Já o site Vigia de Preços tem absolutamente tudo comprável. De minha parte não há nada contra Felipe Neto ser YouTube e ganhar milhões em seguidores e capital, o problema é ele “levantar” a bandeira progressista sem nenhuma articulação direta com esse segmento.
Em uma de suas postagens, Felipe Neto fala em “simpatia” e “isolamento” da esquerda, e diz que “esperava ver ataques da direita, mas pessoas da esquerda desencavando vídeos de ANOS pra tentar impedir que eu ajude contra o bolsonarismo? Bizarro”. Não precisamos avançar muito na análise de discurso para compreendermos a pontualidade de Felipe na questão, ao mesmo tempo, se autoriza a dicotomizar os que são “simpáticos” dos que são “isolados”, essa pseudo-aliança no curso da nossa história já nos custou, inúmeras vezes, cara demais.
Por isso, o cuidado reside na falsa ideia de que Felipe Neto é um aliado imediato, pois não é. Está a traçar uma linha de longo prazo, assentada no mecanismo de mercado, na liberdade de concentração de capital, que requer sanidade institucional (e controle social não democrático) do Estado, que no Governo Bolsonaro está sob o risco de extinção.
Entender a aliança imediata com Felipe Neto e a sua popularidade – que foge à capacidade partidária da esquerda hoje no Brasil – implica retirar o véu das ilusões, e apreender que seu apoio aos grupos progressistas contra o fascismo entrará mais adiante no que Mészáros nos alertou: na conciliação do inconciliável. A crítica de Mészáros à obra de Hegel nos dá elementos concretos para avistarmos que a nossa “unidade” de hoje não estabelece um pacto de “universalidade” para o amanhã, e isso implica “apoio” com críticas ao influenciador.
Se assim como nós, Felipe Neto vê a saída à esquerda, que ele olhe para nossas pautas, nossas reivindicações e entenda que mesmo tendo uma popularidade e projeção vigorosa, a nossa luta não está restrita ao engano de que dependemos mais dele do que o inverso, porque na luta contra o fascismo a ideia de “unidade” se faz justamente pelo fato de isoladamente nada ser possível. Pensar que estamos a depender do influenciador e, por isso, não podemos lançar críticas é um erro de interpretação do método, porque não estamos a reduzir nossa análise ao simplismo da tomada “política do Estado capitalista como único meio necessário para a instauração da ordem hegemonia do trabalho como alternativa à ordem da reprodução social do capital. O nosso desafio histórico efetivo consiste em ir além do capital no sentido mais pleno do termo, como bem nos legou István Mészáros.”
Sabendo disso, ao longo prazo, a nossa tarefa é entender que primeiro se vence o fascismo, e Felipe sabiamente já tomou nota disso, mas depois dentro do restabelecimento institucional da ordem burguesa seguiremos a disputar dentro da velha ordem, em que os nossos problemas do tempo presente serão resolvidos pela “história futura”. Eis aí a nossa contradição. Reconhecê-la é imprescindível.
*Professora Doutorada em Serviço Social pela PUC/RS. Membro do Grupo de Trabalho Feminismos, resistencias y emancipación, do CLACSO.
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