De um Hamilton a outro: tragédia e farsa do federalismo burguês

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Hegel disse, “em algum lugar”, que alguns fatos históricos costumam ocorrer por duas vezes, no que foi por Marx complementado com a célebre sentença: “na primeira como tragédia, na segunda, como farsa”. Eis que numa pandêmica e cinzenta manhã de quinta-feira, nosso vice-presidente Hamilton, hoje declarado federalista, e que suponho não ter lido Hegel nem gostar muito de Marx, resolve publicar um artigo para o qual parece ter ido buscar inspiração no seu homônimo norte-americano de outrora, o major-general Hamilton.

Com seus colegas do “The Federalist”, o Hamilton de lá – o primeiro, o original, o trágico – enxergava na exacerbação do poder do Executivo federal a solução ideal para dar conta da insatisfação social que parecia se espalhar pelos estados da federação em meio ao empobrecimento e endividamento dos setores populares. Com a Convenção da Filadélfia em 1787 – pouco mais de uma década antes de Bonaparte (o primeiro, o original, o trágico) assestar, no 18 de Brumário, o golpe que poria fim à crise do Diretório – Hamilton e os seus lograram reformar a constituição original (os Artigos da Confederação, de 1777) e, sob pretexto de “conter a anarquia”, concederam mais força à Presidência da República, que então teria como primeiro ocupante um militar, o general George Washington. Normativo e com fortes inclinações bonapartistas, o segundo Hamilton, embora cite Madison, esposa na verdade o ideário do seu homônimo, o qual, como se sabe, em sua marcha centralizadora enfrentou o próprio Madison, seu antigo aliado no “The Federalist”, mas que, pouco após promulgada a “nova” constituição, passou a posições mais favoráveis à autonomia dos estados.

Sim, é verdade que enquanto o primeiro Hamilton, subordinado a um vitorioso general, teve como adversários homens do porte de Thomas Jefferson e de Madison, o segundo, subordinado a um covarde capitão, bate-se com gente como Witzel e Dória, mas cada tempo e cada burguesia parecem ter os representantes politicos que merecem. Para além das diferenças e semelhanças entre as perucas e tintas capilares dos personagens, a questão hoje é saber se o Hamilton de cá – o segundo, o falso, o farsante -, também muito amigo de Washington, terá êxito em suas investidas centralizadoras e autoritárias, tal qual teve o Hamilton de lá, autor das palavras abaixo: