A crise pandêmica do novo Coronavírus (SARS-CoV-2) situa-nos num cenário de uma recessão que carrega marcas de crises pretéritas. (2) E renova discussões imprescindíveis que questionam a sociabilidade burguesa e suas políticas macroeconômicas neoliberais que, ao longo de 40 anos, destruíram os distintos sistemas de proteção social em todo o mundo.
Sabemos que os/as mais afetados/as pela pandemia são atravessados pela questão étnico-racial, como já publicizada a situação dos/as negros/as nos Estados Unidos. (3) No Brasil tende a ser muito pior. (4) Aqui a questão étnico-racial atinge brutalmente também os povos indígenas (5), que se agrava com o avanço da fronteira agrícola para as reservas ambientais com o incentivo da grilagem pelo próprio Presidente da República (6). Este que possui, em sua necropolítica, (7) aspectos do social-darwinismo, característica do fascismo,(8) explícita na indiferença aos mais de 12 mil mortos, e em suas falas toscas de “Não sou coveiro” e o “E, daí?!”.
A marca da história brasileira é a escravidão colonial e o extermínio dos povos originários, permanecendo em nossa memória e luta cotidiana. Estas atrocidades compuseram e, ainda, estruturam todo o tecido social e a própria dinâmica da acumulação capitalista, garantindo a opressão violenta do povo negro na exploração da sua força de trabalho e na sua permanente criminalização.
A abolição da escravidão, no dia 13 de maio de 1888, retirou a legalidade da escravidão de negros/as no Brasil, mas os/as condicionaram a mais dura miséria e/ou à escravidão clandestina. (9) A mercantilização da força de trabalho, (10) nesses 132 anos, carrega as marcas da escravidão colonial compondo a heteronomia econômica e cultural do capitalismo dependente. (11)
O trabalho escravo contemporâneo (TEC) é reflexo dessa mercantilização da força de trabalho tal como Florestan Fernandes apreendeu na modernização do arcaico e na arcaização do moderno, com traços da servidão por dívida, ora com o uso da coerção física, e a própria precarização contemporânea das condições do trabalho assalariado, que pioram as condições já existentes, como a jornada exaustiva e a degradância.
Nestes 25 anos, mais de 54 mil pessoas foram resgatadas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel.
Apesar de constituído como crime desde o Código Penal Brasileiro de 1940, no artigo 149, o Governo Brasileiro só foi reconhecer a existência do TEC em 1995, apesar das diversas denúncias desde 1970. Nestes 25 anos, mais de 54 mil pessoas foram resgatadas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel. (12) Houve, também, a expansão da política de combate ao TEC e a valorização da política dos direitos humanos, a qual busca assegurar a “dignidade” positivada na Constituição Federal de 1988.(13) Construiu-se um conjunto de políticas e instrumentos jurídicos para a repressão a este crime, levando o país a um dos melhores sistemas de combate ao TEC no mundo. (14)
Ao mesmo tempo, os governos de conciliação do PT priorizaram “políticas focalizadas de alívio da fome e da miséria em detrimento de um sistema de proteção social universal”. (15) Estrutura que não impede a permanência do “ciclo do trabalho escravo”. (16) Portanto, a base para assegurar a “dignidade” do/no trabalho foi gradativamente esfacelada com a política macroeconômica neoliberal. (17) Neste contexto, as políticas de geração de emprego e renda mistificaram o trabalho “autônomo” e precário em empreendedorismo.(18) E as últimas contrarreformas trabalhistas, no governo Temer, consolidaram as perdas de mais direitos, por meio das negociações coletivas, como: a ampliação das jornadas de trabalho com redução do tempo de descanso e a alteração do enquadramento do grau de insalubridade. Além da terceirização irrestrita. (19)
Antes da aprovação das contrarreformas, notava-se a deterioração das condições de trabalho. Cerca de 90% das pessoas resgatadas nos dez maiores flagrantes de TEC, entre 2010 e 2014, eram terceirizadas. (20)
As contrarreformas trabalhistas reverberam em perdas significativas para as classes trabalhadoras ao ampliar a naturalização de condições desumanas de exploração da força de trabalho. A característica antissocial da burguesia brasileira, relacionada à forma de expropriação do trabalho e à exportação de excedente econômico, eleva-se exponencialmente. A superexploração da força de trabalho (21) evidencia-se nas jornadas exaustivas, que consomem o fundo de vida do/a trabalhador/a, expressas nos adoecimentos físicos e mentais irreversíveis e acidentes de trabalho. (22)
Neste caminho, existe uma linha tênue entre o TEC e as condições atuais de exploração da força de trabalho. (23) Por isso os esforços da Bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia) no Congresso brasileiro para retroceder a caracterização do TEC dada pela lei nº10.803/2003. (24)
Os dados do Ministério Público do Trabalho, de 2003 até 2018, demonstram que 73% dos/as resgatados/as eram de trabalho agropecuário em geral (25) e a maioria possuía até o 5º ano incompleto (39%) ou era analfabeta (31%). (26)
Em 2019, foram 1054 pessoas resgatadas do TEC e o setor agropecuário ainda registra o maior número, com 62% dos casos: na produção de carvão vegetal, no cultivo de café e milho e na criação de bovinos para corte. Em áreas urbanas, 37,8% das pessoas foram resgatadas na confecção de roupas, na construção civil, nos serviços domésticos e ambulantes. (27) Cabe salientar, que 43% da “lista suja do trabalho escravo” de 2018 é preenchida pelo agronegócio e, entre 2003 e 2014, foi um dos maiores responsáveis na utilização do TEC, com praticamente 80% dos/as resgatados/as em lavouras, plantação de cana, desmatamento e pecuária. (28)
Os dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia reiteram os determinantes étnico-raciais na nossa divisão social do trabalho. Porque, entre 2016 e 2018, a cada cinco resgatados do TEC quatro são homens negros, de um total de 3.365, dos 2.400 resgatados/as que receberam o auxílio de seguro-desemprego, 82% são negros/as (29) . Dentre os/as negros/as (30) estão principalmente homens (91%), jovens de 15 a 29 anos (40%) e nascidos no Nordeste (46%).
Apesar dos dados oficiais, oriundos dos resgates, indicarem que o TEC atinge majoritariamente os homens, a pesquisa recente da OIT, em parceria com o Governo do Maranhão, UFMA e UFMG, aponta que o número de mulheres pode ser bem maior. A amostragem da pesquisa revela que 36,5% das mulheres, no estado do Maranhão, já foram submetidas a condições de TEC. Seriam as “ocupações” na vida privada da “família tradicional brasileira” os responsáveis por esta invisibilidade?
Por isso, resgatamos Fernandes. Em sua obra “O significado do protesto negro”, demonstra a análise sobre a mercantilização da força de trabalho no pós-abolição, que “como regra, o homem [negro] era mais facilmente contemplado com o ‘trabalho sujo’, com o ‘trabalho arriscado’ e com o ‘trabalho mal pago’; e a mulher [negra] mantinha a tradição de doméstica, da prática dos dois papéis (o de trabalhar e o de satisfazer o apetite sexual do patrão ou do filho-famílias) e da prostituição como alternativa”. (31)
As mulheres negras são maioria nos serviços domésticos, nos quais temos desde casos da famosa “adoção”, na qual a menina migra do interior e torna-se escrava da família.
As mulheres negras são maioria nos serviços domésticos (32), nos quais temos desde casos da famosa “adoção”(33), na qual a menina migra do interior e torna-se escrava da família. Até casos de “contrato de trabalho” como empregada doméstica (34), em que são condicionadas à escravidão contemporânea. Em sua maioria, são humilhadas e, em casos mais extremos, torturadas. (35)
Não à toa que no Rio de Janeiro entre as primeiras vítimas de Covid-19 foi uma empregada doméstica, que trabalhava há mais de 10 anos numa residência no Alto Leblon (36) e muitas ainda permanecem servindo às famílias neste período de isolamento social. (37) Atuando como escravas na reprodução social de diversas famílias, as mulheres negras também são maioria na linha de frente nas equipes multiprofissionais no enfrentamento da atual pandemia, que sofrem com a falta de condições de trabalho. (38)
Esses dados demonstram como as medidas político-econômicas pós-abolição consolidaram o lugar dos/as negros/as na divisão social do trabalho e, dessa maneira, sua subalternidade e criminalização nas fileiras da superpopulação relativa, refletindo uma divisão sócio-sexual e étnico-racial do trabalho.
Desde o Golpe parlamentar, (39) engendra-se uma agenda ultraneoliberal com um viés autoritário e reacionário, e um caminho de aprofundamento da escravidão contemporânea abraçada, sem a menor cerimônia, pela burguesia antinacional e antissocial.
Neste período de crise humanitária, a intervenção do governo Bolsonarista, fascista e “patriótico-entreguista”(40), se resume a um valor não satisfatório de transferência de renda que expõem milhares de pessoas aglomeradas à contaminação (41), em filas intermináveis, para o acesso ao auxílio emergencial. Temos, portanto, o cenário catastrófico ideal para aumentar as possibilidades de submissão dos/as trabalhadores/as às condições da extrema precarização que é a escravidão contemporânea, assim como um extermínio em massa dos setores mais espoliados das classes trabalhadoras.
Cabe a nós a análise radical da estrutura social e a luta para sua transformação.
NOTAS
1 Assistente social e professora da Escola de Serviço Social da UFF.
2 Sobre isto ver o artigo de Chesnais, François. La economía mundial al principio de la gran recesión Covid-19 .
In: Herramienta, no28, abril de 2020. Disponível em: http://herramienta.com.ar/articulo.php?id=3168 Acesso em 25 de abril de 2020.
3 Sobre isto ver: https://www.nytimes.com/2020/04/08/climate/coronavirus-pollution-race.html. Acesso em 9 de abril de 2020.
4 Verifique em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/11/coronavirus-e-mais-letal-entre-negros-no-brasil-a
pontam-dados-do-ministerio-da-saude.ghtml Acesso em 11 de abril de 2020.
5 Ver: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52030530 Acesso em 25 de abril de 2020.
6 Sobre a MP 910/2019, conhecida como a MP da grilagem ver a reportagem: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/bolsonaro-anistia-grilagem-freia-novas-areas-indigenas-e-estacio
na-reforma-agraria.shtml
7 Ver o editorial: https://esquerdaonline.com.br/2020/05/07/bolsonaro-semeia-a-morte-os-trabalhadores-lutam-pela-vida/
8 Löwy. Michael. “Gripezinha” o neofascista Bolsonaro diante da epidemia In:TOSTES, Anjuli; FILHO, Hugo Melo (orgs.). Quarentena: reflexões sobre a pandemia e depois. Bauru/SP: Canal 6, 2020, p.149.
9 Ver NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Processo de um racismo mascarado. 3aed. São Paulo: Perspectivas, 2016.
10 Sugiro ver MATTOS, Marcelo Badaró. “Recuando no tempo e avançando na análise: novas questões para os estudos sobre a formação da classe trabalhadora no Brasil”. IN: GOLDMACHER, Marcela et al (orgs.) Faces do trabalho: escravizados e livres. Niterói/RJ: EDUFF, 2010.
11 Ver FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. 5a ed. São Paulo: Globo, 2006.
12 Para mais informações ver: https://sinait.org.br/mobile/default/noticia-view id=16791%2Fem+24+anos+de+atuacao%2C+grupo+especial+de+fiscalizacao+movel+e+simbolo+do+enfrentamento+ao+trabalho+escravo
13 Políticas de “ajuste fiscal” e contrarreformas que caminham na direção oposta aos artigos 1o, 3o e 170 da Constituição de 1988 na garantia da “dignidade” do trabalho.
14 OIT, Pesquisa Mensurando o Trabalho Escravo Contemporâneo no Estado do Maranhão – 2017, OIT Brasil, 2018.
15 SOARES, Marcela. Como erradicar o trabalho escravo no Brasil? Notas a propósito do relatório da ONU Brasiliana: Journal for Brazilian Studies. 2013;2(2):, p. 179. Disponível em: https://doaj.org/toc/2245-4373 16 O “ciclo do trabalho escravo contemporâneo” faz parte da campanha educativa da ONG Repórter Brasil “Escravo, nem pensar”, disponível em: http://escravonempensar.org.br/biblioteca/4548/ Acesso em maio de 2020.
17 ANTUNES, Ricardo. O privilégio da Servidão. São Paulo, Boitempo, 2018.
18 SOARES, Marcela. País dos megaeventos e da violação dos direitos trabalhistas e humanos. In: FIGUEIRA et al (orgs). Discussões contemporâneas sobre trabalho escravo: teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.
19 Sobre isso ver: KREIN, José Dari et al. (Orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas, SP : Curt Nimuendajú, 2019.
20 Ver https://reporterbrasil.org.br/2014/11/pesquisadores-reunidos-em-sao-paulo-apontam-relacao-entre-trabalho-escravo-e-terceirizacao
21 Mesmo ocorrendo a remuneração equivalente à sua reprodução, se não há a recuperação do seu desgaste físico-psíquico, porque nem sempre tem como haver, consome-se a expectativa de vida dos/as trabalhadores/as.
Vale lembrar que a superexploração da força de trabalho não significa ausência de desenvolvimento de capitalismo no Brasil e tampouco é sinônimo de degradância ou de trabalho escravo contemporâneo. Para maiores esclarecimentos sobre a categoria superexploração da força de trabalho ver Luce, Mathias. Teoria Marxista da Dependência. Problemas e categorias – Uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular. 2018.
22 As notificações de acidentes de trabalho no geral, do período entre 2012 e 2019, atestam uma média de um acidente de trabalho a cada 49 segundos e uma morte decorrente deles a cada três horas e três minutos, como aponta o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho do Ministério Público do Trabalho. https://smartlabbr.org/sst Acesso em setembro de 2019.
23 Sobre isto ver: SOARES, Marcela. “Trabalho escravo contemporâneo” e o avanço da superexploração da força de trabalho: as particularidades periférico-dependentes de Brasil e México. In: FIGUEIRA, Ricardo Rezende et al. (orgs.) Escravidão: moinho de gentes no século XXI. Rio de Janeiro: Mauad X. 2019.
24 No artigo 149 do Código Penal Brasileiro a Lei no10.803 adicionou a tipificação, no qual são elementos que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho, jornada exaustiva, trabalho forçado e servidão por dívida. Estes elementos podem vir juntos ou isoladamente.
25 O governo ao investir e manter uma política de estímulo e apoio à expansão das “commodities”, com o agronegócio, promove a reprimarização da nossa economia como estratégia de desenvolvimento, mantendo inalteradas as contradições que conformam a nossa questão agrária como, também, garante o retrocesso social. (SOARES, 2013. p.178).
26 https://smartlabbr.org/trabalhoescravo/localidade/0?dimensao=perfilCasosTrabalhoEscravo. Acesso em janeiro de 2020.
27 https://sit.trabalho.gov.br/radar/. Acesso em 13 de maio de 2020.
28 https://www.brasildefato.com.br/2018/04/12/43-das-novas-empresas-da-lista-suja-do-trabalho-escravo-sao-do-agronegocio/ Acesso em maio de 2018.
29 Para mais esclarecimentos, acesse: https://reporterbrasil.org.br/2019/11/negros-sao-82-dos-resgatados-do-trabalho-escravo-no-brasil/ Acesso em janeiro de 2020.
30 Os dados consideram negros como o conjunto de pretos e pardos assim como consideram o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em suas pesquisas nacionais.
31 FERNANDES, Florestan. . O significado do protesto negro. São Paulo: Cortez.1989, p. 58.
32 “As mulheres negras estão sobrerrepresentadas no trabalho doméstico – são 57,6% dos trabalhadores nesta posição “.IPEA, Dossiê mulheres negras, 2013, p.121.
ttp://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_dossie_mulheres_negras.pdf
33 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/06/07/justica-condena-trabalho-escravo.htm
34 https://reporterbrasil.org.br/2017/07/domesticas-das-filipinas-sao-escravizadas-em-sao-paulo/
35 https://www.conjur.com.br/2013-jul-24/mulher-condenada-torturar-escravizar-empregada-domestica
36 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51982465
37 https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/04/22/conoravirus-no-brasil-39-dos-patroes-dispensaram-diaristas-sem-pagamento-durante-pandemia.htm
38 https://www.brasildefato.com.br/2020/05/12/na-linha-de-frente-e-atras-das-mascaras-enfermeiras-lutam-contra-covid-19
39 Sobre o Golpe Parlamentar, que incidiu no impeachment da Presidente Dilma Rousseff em 2016, veja Demier
https://esquerdaonline.com.br/2018/04/06/os-sentidos-de-uma-prisao-lula-democracia-e-as-pessoas-na-sala-de-j
antar/
40 Sobre isto ver: https://www.brasildefato.com.br/2019/10/26/temos-forcas-armadas-para-defender-os-interesses-dos-eua-aponta-pesquisador/ Acesso em 04 de novembro de 2019.
41 Os dados do Dataprev indicam que dos 96,9 milhões de CPFs analisados até agora pelo órgão, 50,5 milhões
(52,1%) são elegíveis para ter o valor do auxílio emergencial.
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