O Clube Militar é uma associação de direito privado sem fins lucrativos, fundada em 1887, e atua como uma espécie de porta-voz dos interesses dos militares brasileiros. Ao longo da história do Brasil, tomou incisivos posicionamentos públicos quando de eventos de grande magnitude. Podemos citar, como exemplo, o posicionamento abertamente abolicionista de oficiais do Clube em relação a escravidão no Brasil, posicionamento este bastante influenciado por ideais positivistas que permeavam o Exército. Também tiveram papel importante na Proclamação da República e na campanha “O petróleo é nosso”, defendendo o monopólio do petróleo e a criação da Petrobras. No entanto, quando do golpe de 1964, o Clube Militar se posiciona abertamente contra a democracia [1], postura que se acentuou no último período. É inegável que as Forças Armadas sempre tiveram papel ativo na política nacional e que o Clube Militar tem sido um porta-voz dos militares, se configurando em muitos momentos como um refúgio do golpismo.
Dado este preâmbulo, voltemos nossa atenção a um ocorrido de grande importância desta última semana. No dia 7 de maio, fomos surpreendidos por uma nota de repúdio de autoria do General de Divisão Eduardo José Barbosa, atual presidente do Clube Militar, sucedendo Mourão, que se afastou para a campanha com Bolsonaro. A referida nota critica a recente decisão do ministro Celso de Mello quanto ao inquérito que apura as acusações do ex-ministro Sergio Moro sobre a escandalosa tentativa de interferência política por parte de Jair Bolsonaro no comando da Polícia Federal. De acordo com a decisão do decano do STF, os ministros Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Walter Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) devem ser ouvidos, uma vez que estes três ministros foram citados por Moro como eventuais testemunhas de ameaças feitas por Bolsonaro caso Moro não aceitasse a mudança de comando na PF.
A tal Nota de Repúdio é uma mistura de hipocrisia com acusações infundadas e deve ser duramente combatida por todos.
No segundo de seus seis parágrafos, o Sr. Barbosa desfere acusações levianas ao afirmar que os comentários no despacho de Celso de Mello são “utilizados tão somente para demonstrar seu ódio pelo governo federal e pelos militares”. Que moral tem o Sr. Barbosa para fazer tais acusações? Ele parece ter esquecido que seu Clube apoiou publicamente as manifestações golpistas de 15 de março, cujos principais alvos eram o Congresso e o STF. E que reivindica o golpe militar de 1964.
No próximo parágrafo, critica-se a publicidade que foi dada às investigações pelo despacho, principalmente em se tratando de autoridades públicas. Ora, onde estava o Sr. Barbosa quando Moro, ainda em 2016, ilegalmente divulgou uma conversa entre Lula e Dilma após a determinação de interrupção do grampo?
Seguindo a nota, no quarto parágrafo, critica-se a forma como os referidos ministros foram arrolados para depor, como se estes estivessem sendo considerados “bandidos da pior espécie”. Novamente lhe pergunto, Sr. Barbosa, onde estava tamanha indignação quando Lula, também em 2016, foi levado para prestar depoimento sob condução coercitiva, sendo que ele sequer havia sido intimado previamente? Neste caso, Lula não foi tratado como “bandido da pior espécie”?
O sexto e último parágrafo da nota fecha com chave de ouro, o qual começa fazendo uma linda defesa da democracia e da harmonia entre os Três Poderes. Afirma-se, em seguida, que “Assim, quando vemos manifestações [por parte da população], cada vez com maior frequência, contestando a atuação de qualquer um dos poderes da República, não se pode dizer que esses movimentos são antidemocráticos.” Qual é o conteúdo de tais manifestações, Sr. Barbosa? Por acaso não se tratam de atos reivindicando o fechamento do Congresso e do STF? Não são manifestações pedindo um “democrático” AI-5? Tais atos podem ser considerados democráticos? Omite-se ainda completamente o contexto em que tais manifestações são realizadas. Omite-se o fato de estarmos passando por uma pandemia brutal e que tais manifestações aumentam a velocidade de contágio do COVID-19.
“Podemos, sim, afirmar que existem engrenagens do sistema que estão atuando fora do contexto democrático.” Neste ponto, não há como discordar. Há sim engrenagens que estão atuando fora do contexto democrático, sendo a maior delas o próprio presidente Jair Bolsonaro, que comparece em manifestações com caráter nitidamente golpista em plena pandemia, e a terrível conivência que seu Clube tem demonstrado com os atos de um presidente que constantemente brinca com a vida de milhões de brasileiros.
Pergunto-lhe francamente, caro Sr. Barbosa, por que não houve nota de repúdio quando Bolsonaro homenageou o torturador Ustra dentro do Congresso Nacional? Ou quando Eduardo Bolsonaro fala em vídeo que, para fechar o STF, basta um soldado e um cabo? Quando ficam evidentes ligações do clã Bolsonaro com milícias? Será que realmente acredita tanto assim na democracia? Se se consideras tão patriótico, por que não repudiou a entrega da Base de Alcântara aos norte-americanos? Ou a fracassada e absurda tentativa de entrega da EMBRAER? A privatização da BR Distribuidora? Por que não repudiou a continência que Bolsonaro prestou à bandeira estadunidense? Será que realmente prezas tanto pela soberania nacional?
A prática é o critério da verdade. Com este histórico, fica difícil levar esta Nota de Repúdio a sério. É preciso apurar todas as investidas do bolsonarismo na PF para que possamos ter a resposta da pergunta: “Quem mandou matar Marielle?”
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