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BRASIL

A carne do churrasco apodreceu

José Luciano de Queiroz Aires (História/UFCG)*
Reprodução Facebook

Neste sábado, dia 9 de maio de 2020, aconteceria um grande churrasco no Palácio da Alvorada, cujo anfitrião da festa seria nada mais, nada menos, do que o chefe de Estado e de governo brasileiro. A festa teria em torno de trinta convidados, mas a depender do que falou Bolsonaro, podia se estender para até três mil pessoas, pois quem fosse aparecendo na frente da residência oficial vestindo as cores da ideologia do governo, teria lugar garantido na festa.

Não é de hoje que o presidente vem tentando furar todas as recomendações da OMS e do próprio Ministério da Saúde de seu próprio governo em momento mais conflituoso do que a era Teich. Já provocou aglomerações em farmácia, padaria, churrasquinho de rua, hospital de campanha, manifestações políticas, sempre caminhando sem máscara, abraçando e apertando as mãos daqueles que encontram pela frente.  Mais recentemente, compareceu a uma manifestação neofascista na frente do QG do Exército, que pedia o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. Subiu sobre um automóvel e tossiu mais do que discursou.

Nos últimos dias, organizou uma cena digna de um governo genocida. Reuniu ministros e empresários brasileiros e marchou rumo à casa suprema da Justiça brasileira. Detalhe: não avisou aos moradores da corte que faria aquela visita indigesta, pegando o presidente do STF de surpresa que, sem permissão, aparecera nas famosas transmissões ao vivo do clã das fake news. Ao lado do chefe do executivo, estavam centenas de CNPJ “doentes”, agonizando na UTI à espera de um respirador financeiro, justamente no momento em que o país ultrapassava a casa de 9.000 mortes e 135 mil casos, sem contar a subnotificação que joga muito para cima essa estatística.

Contrariando todas as recomendações da ciência e das instituições epidemiológicas, a verdade é que Jair Bolsonaro viveu sempre alterando seu discurso cada vez em um tom mais piorado. Negou a gravidade da pandemia, minimizou a doença chamando de “gripezinha”, afirmou que o “brasileiro teria que ser estudado, pois ele não pega nada”, e jogou seu darwinismo social para cima dos velhos, únicos que podiam contrair e morrer. Receitou cloroquina, disse “que não era coveiro”, quando questionado pela imprensa sobre o número de mortos, naturalizou a morte quando disse “é a vida, todos nós iremos morrer um dia” (…) e que “esse vírus é igual a uma chuva vai molhar 70% de vocês”. Cada vez que o Brasil sobe a curva da morte e o sistema de saúde de alguns estados e municípios apontam seu esgotamento, o presidente da república se supera nas suas pérolas discursivas. As últimas verborragias que saíram de sua boca fascistizante são assustadoras, principalmente, por se tratar daquele que deveria dar exemplo e, minimamente, administrar a crise sanitária com algum grau de humanidade. Contudo, não é o que se ver de um presidente da República quando responde às questões da imprensa em estilo tragicômico: “Eu não sou coveiro tá certo?”, “E dai? Eu lamento. Quer que eu faça o que? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

O mais lamentável ainda é que em torno dessa ideologia da necropolítica haja seguidores fieis, daqueles que são capazes de recepcionarem acriticamente os discursos de Bolsonaro. Até setores da classe trabalhadora acabam caindo nessa esparrela, embutida, ocultada, naturalizada e invertida da ideologia da classe dominante que, a pretexto da defesa do emprego, na verdade está a defender o lucro acima da vida, pois o capitalismo não aceita ficar parado nem por um minuto e como nos ensinou Karl Marx é o trabalho que gera valor. Alguns proletários são até assediados moralmente, como no caso de nossa Campina Grande, onde os aparelhos privados da burguesia não cessam de pressionar a justiça e o executivo para reativarem as atividades econômicas e são capazes de conduzir trabalhadores do comércio a se ajoelharem diante das lojas.

É lamentável que o Covid-19 tenha resolvido visitar o Brasil de Bolsonaro e Paulo Guedes. Um governo que desde o inicio defende o fim de regras de isolamento social para “salvar a economia”, ou seja, os lucros da classe dominante; que oferece uma renda social de duzentos reais para a classe trabalhadora e, sendo pressionado à esquerda, é obrigado a acrescer o valor para seiscentos reais, mesmo assim, atrasando seu pagamento e causando enormes filas diante das agências da Caixa Econômica Federal a fim de receber o valor que possa comprar o pão de cada dia.

Mais grave ainda é que, diante da impossibilidade da realização de greves e manifestações de rua por parte da classe trabalhadora, cujas instituições sindicais, acertadamente, têm respeitado às regras do isolamento social, Paulo Guedes vem negociando com Rodrigo Maia e David Alcolumbre congelamento de salários e progressões funcionais dos servidores públicos, ao mesmo tempo em que aprovam o tal “orçamento de guerra” que permite o tesouro nacional emitir a compra de títulos no mercado financeiro e provocar ainda mais o aumento da dívida pública e o lucro dos banqueiros. Nesse caso, claramente, o governo procura jogar o ônus da crise econômica que, a bem da verdade, já vinha de antes do vírus, sobre as costas da classe trabalhadora, essa maioria que tem acordar e dormir diante do medo morrer, de Covid ou de fome.

Essa pandemia tem servido para demonstrar alguns fatores importantes que merecem destaque. Primeiro, a importância da defesa do Sistema Único de Saúde que, apesar de contar com pouco recurso orçamentário, se constitui como o importante lugar para o qual acorre a maioria da população que não tem plano de saúde privado. Cada vez mais fica evidente que precisamos defender a bandeira do SUS, pois saúde, educação, previdência e assistência social, jamais deveriam se transformar em mercadorias que alimentem a fome dos grandes empresários. Segundo, estruturalmente, não rompemos com a lógica escravista senhorial da casa grande, na qual as madames e patrões clamam para que a empregada doméstica seja incluída na lista de serviços essenciais durante a pandemia, não importando que ela possa contrair a doença, pois caso venha a óbito existe um exército de reserva em vários corpos feminismos a busca de emprego. Terceiro, que a maioria das mortes tem recorte de classe, gênero e raça, são mulheres, negros, pobres, imigrantes, sem teto, trabalhadores uberizados, moradores das favelas. Parafraseando a grande Elza Soares, “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, eu acrescentaria, a carne do conjunto do proletariado obrigado a continuar vendendo força de trabalho, muitas vezes precarizada, sem falar nos mais de 13 milhões de desempregados. São pessoas que começam por não ter direito à quarentena, alguns por não terem casas, outros por morarem em bairros periféricos que sequer chega água para a tão recomendada higiene constante e tantos outros por continuarem na linha de frente da pandemia na condição precária de trabalho. Por fim, cabe destacar que caiu a máscara do neoliberalismo, pois o que temos visto por todo planeta é a falência dos seus sistemas de saúde. Isso prova o quanto os governos vêm encolhendo cada vez mais, nesses quarenta anos, o orçamento para a saúde pública enquanto na outra ponta o quanto os planos privados de saúde tem se multiplicado. Mas em momentos como esse, até morrer passa por um recorte de classe social, já que pobres não têm lugar garantido em hospitais privados, nem a respiradores em jatinhos. Nesse sentido, precisamos lutar pela revogação da Emenda Constitucional 95, pela taxação das grandes fortunas, pela auditoria da dívida e pela defesa de uma saúde e educação 100% estatais, públicas, gratuitas e de qualidade. Isso é direito, não favor.

O churrasco de Bolsonaro no Alvorada foi cancelado, mas ele já deu o mau exemplo uma vez que algumas pessoas começam a realizar pequenas aglomerações churrasqueiras influenciadas pelo gesto irresponsável do presidente. A prometida festa palaciana sugere algumas observações. Primeiro, o discurso do Messias já se notabilizou por negar a si mesmo, fala uma coisa hoje, desmente amanhã e culpa a imprensa por superinterpretação descontextualizada. Mas sua fala chega bem na sua base bolsonarista, que se mantem fiel ao “mito” que tem a coragem de desafiar a tudo e a todos. Recuar na ideia do churrasco não minimiza o acender das chamas que queimaria a carne da festa. Ele pode até não assar uma bisteca de boi, nem tomar uma cerveja nesse sábado de sol regada à música sertaneja de seus cantores prediletos, mas o churrasco está acontecendo sim, com música fúnebre e carne humana dos leitos hospitalares e cemitérios coletivos. Segundo, enquanto o presidente recua na sua festa macabra, uma cambada de neofascistas acampa na esplanada dos ministérios, ameaçando a invasão do Congresso e do STF, alimentada por esse discurso do presidente Jair Bolsonaro. Violam dois princípios básicos: as recomendações da OMS no tocante ao fique em casa e as liberdades democráticas tão arranhadas nos últimos tempos. Eles estão como verdadeiros vampiros, sedentos pelo sangue dos militantes da esquerda, pois não nos enganemos, nós intelectuais orgânicos dos grupos e classes subalternos também corremos duplo risco de vida, pelo vírus do Covid ou pelo vírus do fascismo.

O churrasco de Bolsonaro no palácio do Alvorada não vai acontecer neste sábado. Faltou bebida, pois festa fascista é regada aos brindes de taças de sangue e o liquido vermelho que corre nas veias humanas estão em profundo desfalque por conta de mais dez mil mortes no Brasil de hoje. Também faltou carne, pois como eles preferem devorar a vida humana acima do lucro, a carne apodreceu e teve de ser enterrada em valas coletivas. Quanto aos artistas prediletos de Bolsonaro que poderiam abrilhantar seu churrasco, continuam em suas casas luxuosas fazendo suas lives e um pouco mais longe da curva da morte. Ao fogo da churrasqueira, aceso sem carne para assar, resta-lhe queimar os artigos da Constituição Federal, conforme bela interpretação humorística de Mauricio Adnet. Mas não nos enganemos, esse fogo não se apagou em cinzas, pois muitas chamas ainda estarão vivas.

Aos que defende a vida acima do lucro, os investimentos do Estado no combate ao Covid-19, incluindo testagem em massa, aquisição de respiradores para todos e equipamentos de proteção para os profissionais de saúde, além da solidariedade de classe com aqueles que se encontram em condições materiais de vida dificílimas, resta invocar o grande Cazuza e cantar com muito orgulho: “Não me convidaram pra essa festa pobre/ que os homens armaram pra me convencer/ a pagar sem ver toda essa droga/ que já vem malhada antes de eu nascer.”

 

*José Luciano de Queiroz Aires é professor de História da Universidade Federal de Campina Grande

 

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