Desde que retornou dos Estados Unidos, com uma comitiva de mais de 2º pessoas infectadas e, apesar das recomendações de isolamento, participou em 15 de março de um ato reacionário contra o congresso nacional, Bolsonaro só fez radicalizar sua postura. Mesmo diante de todas as evidências da gravidade da situação, fez diversos pronunciamentos contrários às medidas de isolamento, compareceu e divulgou outros atos ainda mais radicalizados e golpistas, se enfrentou e demitiu os dois ministros mais populares do governo, criou fortes atritos com o poder judiciário e o legislativo, enfrenta grande oposição dos maiores conglomerados de mídia empresarial do país e viu seus índices de popularidade caírem ao longo dos últimos 50 dias.
Ainda assim, as dezenas de pedidos de impeachment no congresso não saem da gaveta do presidente da Câmara e as declarações mais genocidas e golpistas de Bolsonaro motivam no máximo “notas de repúdio”. Enquanto isso, nas ruas, a doença, o desemprego e a miséria avançam a passos largos, num clima de crescente quebra do isolamento social, que configura a efetivação da linha negacionista de Bolsonaro, mesmo diante das pilhas de cadáveres nos necrotérios. Por que ele consegue, apesar de tudo, efetivar sua proposta genocida? Por que não caiu, mesmo sendo a única autoridade superior de um Estado com grande população a adotar um discurso negacionista?
Este artigo apresenta uma hipótese central para explicar isso: por enquanto, por mais crises políticas que estejam ocorrendo e por maior que seja a perda de apoio popular de Bolsonaro, ele ainda tem o suporte da burguesia instalada no Brasil.
Capitalismo e dominação burguesa no Brasil
O Brasil é uma economia capitalista dependente. Os capitais aqui instalados possuem a especificidade de alimentar a acumulação local, mas também remeter valor para as economias centrais, dada sua dependência de investimento externo, de um comércio internacional desigual, de tecnologias desenvolvidas alhures, etc. Mas, o valor, sabemos desde Marx, é gerado pela exploração da força de trabalho. Assim, para além das formas de ampliação “relativa” e “absoluta” da mais-valia, aqui se torna regra a sub-remuneração (salários na média inferiores ao necessário para reprodução regular da força de trabalho), uma forma de superexploração, cuja consequência é o “consumo” mais rápido da mercadoria força de trabalho pelo capital.[1]
Desde o golpe de 2016, com o objetivo de aprofundar e acelerar a política de austeridade (com a qual Dilma se mostrava comprometida, mas não podia executar na dimensão que exigiam), visando a retirada de direitos da classe trabalhadora e a transferência do fundo público para o setor privado, a burguesia brasileira abandonou qualquer possibilidade de apoio a uma política de conciliação de classes. Para derrubar Dilma, financiaram e fomentaram politicamente movimentos e mobilizações de setores médios, levando às ruas uma nova base de massas, que se apresentou contra a corrupção e contra “a política”, a qual nos anos seguintes seria ganha pelo bolsonarismo neofascista. Embora Bolsonaro não fosse exatamente o “plano A” da burguesia, não foi dos mais constrangidos o apoio que o capitão renegado recebeu de amplas parcelas do empresariado.
O recurso a figuras autoritárias e a regimes de exceção não é uma novidade na dominação burguesa por aqui. Florestan Fernandes nos ensinou que a burguesia, no capitalismo dependente, atua permanentemente de forma contrarrevolucionária, para reprimir preventivamente qualquer ameaça mais séria à ordem que possa partir da classe trabalhadora. Daí sua predileção histórica pelas formas autocráticas de poder. Em um de seus estudos sobre a ditadura militar, Fernandes identificou, entre as diferentes “faces” do regime, aquela propriamente fascista (expressa na política de extermínio da oposição de esquerda). Ao tratar dessa face fascista, o sociólogo a explicou em função de necessidades “ultrarrepressivas e da institucionalização da opressão sistemática”, sem o que “seria impossível o próprio capitalismo selvagem e a manutenção da ordem, pois os assalariados e os setores pobres se revoltariam”. Ou seja, a dimensão fascista da ditadura se relacionava justamente ao controle da classe trabalhadora, diante da necessidade de ampliar a (super)exploração sobre a força de trabalho.[2]
O neofascismo de Bolsonaro encontrou apoio e espaço para crescer e chegar ao governo porque o grande capital pretende administrar violentamente a radicalização da miséria decorrente da superexploração. Mas, através dele, também cimentam algum grau de hegemonia, principalmente em torno a uma fração degenerada pequeno burguesa e assalariada média. A crise em curso leva aos limites essa lógica política explosiva. Expõe também a pulsão de morte que orienta a ação do fascista na presidência.
De que outra forma poderíamos explicar o escárnio de um presidente que, na data em que o país anunciava mais de 9.000 mortes pela coivd-19, comunicava à imprensa que organizaria no fim de semana um churrasco para amigos na residência oficial. Não se tratando de um estória de terror, mas da vida real de pessoas que perderam seus entes queridos, ou temem pela morte dos que lutam contra a doença, nos hospitais abarrotados de um sistema de saúde colapsado, que tipo de personagem poderia celebrar a morte dessa forma senão a encarnação grotesca de um genocida fascista?
Eles e nós
Voltando então às perguntas lançadas na introdução deste texto, todas as indicações até aqui são de que, apesar das crises políticas sucessivas, Bolsonaro se agarra à cadeira presidencial graças a três frentes de apoio: a) mobilizações de suas bases mais radicalizadas, em “carreatas da morte” pela “abertura da economia” e atos ao estilo “coronafest” contra o regime democrático que mantém acesa a chama neofascista e alimentam o projeto golpista; b) os militares no governo que, tratados como “bombeiros” de crises pela grande imprensa, até aqui discordaram no máximo da forma, mas apoiaram substantivamente todo o conteúdo da política incendiária de Bolsonaro; c) o suporte das mais variadas frações burguesas, que julgo ser o fiel da balança para explicar a questão.
Através de alguns dos principais conglomerados de mídia no país e de diversos porta-vozes de interesses burgueses no parlamento, observamos a elevação do tom de crítica e oposição ao governo Bolsonaro. Porém, apesar dessas vozes dissonantes entre o coro da classe dominante, até aqui tem predominado uma sólida unidade entre as diversas frações da burguesia em torno de um programa de ação durante a crise: aproveitar a “janela de oportunidades” para avançar ainda mais na retirada de direitos da classe trabalhadora, estabelecendo novas bases legais para uma inacreditável elevação do patamar da superexploração; garantir o máximo de transferência do fundo público, especialmente para o setor financeiro, em nome da garantia de condições de crédito e auxílio às empresas; assegurar que os gastos extraordinários do Estado, dispendidos durante a pandemia, sejam depois revertidos por um retorno à lógica austericida do “ajuste fiscal”; e limitar o alcance das medidas de distanciamento social, mantendo o máximo possível de empresas abertas, ao qualquer custo de vidas humanas (afinal, nas condições estruturais da superexploração, o capitalismo dependente está desde sempre acostumado a consumir mais rapidamente a mercadoria força de trabalho).
É esse o sentido da teatral “marcha sobre o supremo”, de Bolsonaro com dirigentes entidades representativas do grande capital industrial, em 7 de maio, com o discurso de “salvamento dos CNPJ”. Como diversos estudos de especialistas engajados em acompanhar o posicionamento das entidades empresariais nesta conjuntura estão demonstrando, até aqui, em nome da unidade em torno desse programa econômico, a burguesia mantém seu apoio ao governo.[3]
É certo que as dimensões inéditas desta crise podem levar a giros relativamente rápidos, especialmente depois que as “garantias” ao lucro estiverem todas votadas pelo congresso e sancionadas pela BIC do presidente. A alta constante do dólar, a fuga de capitais, a condição de pária no mundo que o Brasil passa a assumir sendo um epicentro da pandemia dirigido por um governo negacionista, tudo isso pode levar o grande capital, particularmente sua fração mais internacionalizada, a optar por dispensar o capitão.
Ainda assim, na ausência de pressão organizada dos de baixo, a solução se dará mais uma vez pelo alto e, no quadro atual, ela passaria por um reforço do papel dos militares e por alguma articulação com o judiciário (através dos processos criminais em tramitação no STF que podem atingir Bolsonaro). Embora afastando o líder neofascista, uma saída transacionada no andar de cima manteria o recheio autocrática dessa casca democrática oca que reveste o regime político sob o qual vivemos.
Nosso desafio é, portanto, imenso. Trata-se de evitar o apocalipse da perda de vidas, na escala das centenas de milhares, e o flagelo da fome, no rastro de uma crise econômica de dimensões pantagruélicas.
No momento em que este artigo está sendo concluído, em 8 de maio, o número de mortos oficialmente registrados em decorrência da covid-19 chegou a 9.897. O país já está entre os oito com maior número de casos no mundo e é o sexto em número absoluto de mortos pela doença, o segundo em número de mortos nas últimas 24 horas, e isso mesmo tendo em conta a enorme subnotificação, denunciada pelos especialistas, causada por falta de testes, atraso no processamento dos poucos testes feitos e subregistro de casos e mortes suspeitas.
Mas, que forças sociais podem evitar que essa tragédia adquira proporções ainda mais monstruosas, senão a classe trabalhadora e suas organizações? Só elas podem defender um programa da vida contra o lucro, que passa por: condições sociais para uma efetiva quarentena de todos e todas que não executam atividades (realmente) essenciais – garantia de manutenção do emprego com salário para os formalizados e auxílio emergencial para os precarizados, de pelo menos um salário mínimo, pago rapidamente, sem o sadismo mórbido dos aplicativos travados e filas gigantescas nas agências da Caixa; condições de trabalho para quem está na linha de frente do combate à doença, com atenção especial às profissionais e aos profissionais de saúde, com garantia de EPI, remuneração digna e em dia, e condições de trabalho (disponibilidade de equipamentos, insumos, remédios) para salvar vidas; ampliação de verbas para o SUS e para as instituições de ensino e pesquisa públicas, que estão na linha de frente da busca de soluções tecnológicas, terapias, fármacos e vacinas, além do acompanhamento da evolução da pandemia em suas dimensões epidemiológicas e sociais. O que pressupõe a reversão das medidas aprovadas a toque de caixa que retiraram garantias trabalhistas, dos recursos públicos transferidos para “salvamentos de CNPJ” ao invés de vidas humanas, além da regulamentação do imposto sobre grandes fortunas e da taxação sobre lucros e dividendos dos ganhos de capital, bem como da revogação da Emenda Constitucional do teto de gastos, somada à suspensão do pagamento da dívida aos grandes credores, apenas para ficar em alguns pressupostos de uma mudança substantiva do quadro atual.
No Manifesto Comunista, Marx e Engels fizeram uso das alegorias oriundas das estórias de terror para prefigurar uma situação em que a sociedade burguesa “assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou”. Por isso, os dois amigos revolucionários identificaram no proletariado justamente o “coveiro” da burguesia.[4]
Que a classe trabalhadora, diante das valas comuns reais que hoje são abertas para enterrá-la aos milhares, desperte sua potência de revolta e sepulte o governo neofascista do genocida Bolsonaro.
* Professor de História da Universidade Federal Fluminense.
[1] Ruy Mauro Marini, “Dialética da dependência” (1973), In Roberta Traspadini e João Pedro Stédile (orgs.), Ruy Mauro Marini: vida e obra, São Paulo, Expressão Popular, 2005.
[2] Florestan Fernandes, Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”, São Paulo, Hucitec, 1979, p. 43-44.
[3] Exemplos desses estudos podem ser encontrados na série “Andar de Cima”, publicada pelo portal Esquerda Online, https://esquerdaonline.com.br/colunistas/andar-de-cima/
[4] Karl Marx & Friedrich Engels, Manifesto Comunista, São Paulo, Boitempo, 1998, p. 51.
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