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BRASIL

A crise da pandemia ou a pandemia da crise? Notas preliminares para uma análise da conjuntura

Lucio Ayres Caldas*, Duque de Caxias, RJ
Tânia Rêgo/Agência Brasil

É necessário um exercício de contextualização para se equilibrar no lodaçal em que o debate em torno da pandemia foi pavimentado. A exemplo dos filmes de terror/suspense em que um monstro/assassino/tubarão invade o perfeito funcionamento de uma determinada dinâmica, este agente “forasteiro” é caracterizado como responsável externo pela catástrofe. Este agente, via de regra, tem sua identificação simbólica no espaço social associada aos grupos considerados um “estorvo”, conquanto necessário, para o modo de produção vigente (tais como imigrantes, palestinos e outros, a depender da formação social). Tais grupos, ao passo que invadem e aterrorizam o espaço daqueles capazes de realizar a prodigiosa tarefa de almoçar e jantar diariamente, também são os que cozinham, servem a mesa e lavam a louça.

Até mesmo a esteira da narrativa dos filmes desse campo – que sempre comunicam os sintomas da nossa sociabilidade -, pode fornecer elementos para o entendimento das condições do surgimento de epidemias no seio do nosso sistema de produção e reprodução social dos meios materiais de sobrevida. Somente partindo desta conclusão óbvia, a de que há uma estrutura que comporta e permite essa reprodução das relações de produção, podemos nos debruçar sobre como o surgimento de epidemias encontra condições favoráveis na dinâmica societal vigente.

Na abordagem das epidemias, há duas linhas gerais comumente referidas. Uma delas é interpretada como uma rota indireta, onde as forças produtivas são dirigidas para áreas consideradas “selvagens”. Estas áreas até então distantes ou “virgens” abrigam microrganismos também patogênicos, geralmente vírus, que se encontram dispersos em uma fauna até então distante do contato com a maioria da população.

A segunda linha é a que descreve os aglomerados de populações operárias, via de regra em condições insalubres, desprovidas de saneamento básico e/ou infraestrutura. Nalguns locais, como a meca da construção civil chinesa apontada como o epicentro da atual pandemia, ocorre também o incentivo governamental ao consumo de animais selvagens, no intuito de baratear a alimentação da mão de obra.

Em ambas as linhas supracitadas, uma coisa é inevitável: a reorganização do espaço planetário em função da divisão do trabalho. A produção do espaço e o espaço da produção emergem como dois momentos de um processo que nada tem de neutro. A expansão industrial desloca a criação de animais suscetíveis para áreas de considerável risco de contato com cepas virais até então desconhecidas. A consequência disso é a infecção dos animais comercializados e/ou e de seus criadores, atravessadores e demais trabalhadores que participam diretamente da comercialização e processamento da carne destes animais. Evidentemente, esta dinâmica não está ausente no cenário da agricultura, afinal, o espaço organizado economicamente deve comportar o fluxo das matérias-primas, da mão de obra, das mercadorias (sejam objetos no rigor do termo, plantas, animais ou gente).

A comercialização de terras ocorre em proporções dilatadas, inviabilizando a atividade dos pequenos produtores, forçando-os às práticas consideradas ilegais relacionadas ao extrativismo vegetal, à caça e, também, ao comércio de madeiras. Este deslocamento acaba, portanto, expondo essa parcela marginalizada da população ao contato com patógenos desconhecidos.

No caso da indústria de alimentos, mesmo que o consumidor final não se infecte por meio da ingestão, já que alguns patógenos podem ser destruídos durante o processo de cozimento, a probabilidade aumenta quando o consumidor se dirige aos galpões lotados de animais de diversas espécies para efetuar a compra.

Com efeito, o senso comum, sempre alheio à uma análise minimamente rigorosa dos fatos, recorre ao racismo travestido de crítica cultural da formação social chinesa para narrar os acontecimentos.

Ainda há outros fatores de grande importância na amplificação da propagação do vírus emergente, mas cabe aqui destacar uma importante etapa da produção capitalista: a circulação. Esta etapa, em variadas rotas, culmina na propagação do patógeno em escala mundial através, principalmente, da incrivelmente expansiva malha aérea contemporânea. Uma das mais comuns vias de acesso do que chamamos de pandemia.

Sabe-se que vírus de genoma RNA são muito mais suscetíveis à mutações durante o processo de replicação, e o organismo de alguns animais pode se tornar um verdadeiro laboratório para tal, possibilitando o “salto” interespecífico. No exemplo da gripe suína, os vírus de aves eram excretados na água que os porcos bebiam e, nos porcos, a recombinação ocorrida no genoma dos vírus possibilitou o acesso e a replicação em células de determinados tecidos humanos. No caso do SARS-CoV-2 o processo se distingue devido ao fato de que o seu RNA não é segmentado como o do vírus Influenza (gripe), mas os erros de cópia parecem ter permitido o salto de morcegos para pangolins e então para os humanos.

Somada a esse processo de transferência zoonótica, está a capacidade de transmissão de pessoa a pessoa. Diante disto, as aglomerações representam um perigo crescente, pois a amplitude de caminhos para a evolução do vírus (mudança da taxa genética no decorrer das gerações) se dá num período de tempo mais curto. Isto significa que quanto maior o número de hospedeiros que o vírus encontra, maior a probabilidade de mutação, o que pode (i) gerar variantes mais virulentas e/ou (ii) dificultar a produção de uma vacina eficaz.

Se pressupormos simplesmente que a predisposição para os casos graves está previamente definida na população e que todos vão se infectar e adoecer, devemos ponderar também sobre as condições sociais em que as diferentes classes estão abrigadas. Ademais, as medidas de confinamento e distanciamento social exigidas para evitar o colapso dos sistemas de saúde, por sua vez engendram a paralisação de parte significativa da produção de mercadorias. Este panorama demonstra na conjuntura internacional a fragilidade estrutural da economia política vigente, pois evidencia a interrupção de ciclos interdependentes da produção, gerando crises primeiramente em diversos setores. Ocorre que os diversos setores também não são independentes e se comunicam por cadeias de pagamento, dinâmicas de circulação etc.

Ainda assim, o senso comum investe na explicação ideológica (derivada de uma crença fixa em uma realidade falsa) de que o vírus é como um fator extrínseco causador da crise. Um exemplo emblemático foi dado pelo representante do governo estadunidense, que chegou a referir-se diversas vezes ao SARS-CoV-2 como vírus estrangeiro, antes do aumento da remessa de itens necessários ao combate da pandemia pelo governo chinês. Enquanto isso, a própria dinâmica das relações de produção, – que se mostra cada vez mais inviável (mesmo por administração ou reforma, inclusive a curto prazo), – ao fornecer todas as condições e determinar a instauração da catástrofe, não nos suscita nenhuma questão.

 

* Biólogo, professor da UFRJ e membro do Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa Xerém Biologia (NUMPEX-BIO).