Em algum ponto da Argélia francesa, em algum momento da década de 1940, encontramos Oran, que a despeito da presença do mar e de um constante céu azul, é uma cidade “feia”, sem poesia, bastante diferente daquela Argel cheia de luz onde se passam A Morte Feliz e O Estrangeiro. Adormecida por séculos, “nos móveis e na roupa”[1](…), esperando “pacientemente nos quartos, nos porões, nos lenços e na papelada”[2], eis que ela reaparece em Oran: A Peste. A ira de Deus contra os pecados da humanidade, como prega aos fiéis o padre Paneloux, volta a aterrorizar os corações humanos em pleno século XX.
O primeiro momento é de negação, as pessoas se recusam a aceitar o que cada vez se torna mais evidente. Porém, os cadáveres multiplicando-se pela cidade não deixam mais espaço para dúvidas. Oran é isolada, ninguém entra, ninguém sai (ao menos oficialmente). Mas apesar dos corpos se amontoando pela cidade, os personagens de Camus não se entregam ao desespero, ao contrário. O médico Rieux, mesmo com sua esposa adoecida fora da cidade, se entrega ao trabalho, ao cuidado daqueles que sofrem, quase que deixando seu “eu” de lado, ou melhor, quase que integrando seu “eu” ao de seus concidadãos. Aliás, apesar da peste, as pessoas buscam manter a vida o mais próxima possível da normalidade. Os protagonistas de Camus não se escondem, não se preservam, na verdade, eles se entregam e buscam adaptar-se a nova situação.
Mesmo Rambert, um jornalista que por acaso se encontrava na cidade quando esta foi colocada sob quarentena, que apaixonado, tenta por todas as formas lícitas e ilícitas fugir de Oran para reencontrar seu amor em Paris, quando finalmente consegue subornar a guarda da cidade para sair, resolve ficar. Ficar e ajudar, ficar e entrelaçar seu destino ao de seus novos companheiros.
Ramber disse que tinha refletido que continuava a acreditar no que acreditava, mas que se partisse teria vergonha. Isso perturbaria o seu amor por aquela que tinha deixado. Mas Rieux endireitou-se e disse, com uma voz firme, que aquilo era tolice e que não era vergonha preferir a felicidade.
– Sim – disse Rambert – mas pode haver vergonha em ser feliz sozinho.[3]
Se em a Morte Feliz e O Estrangeiro Camus nos deixa uma sensação de vazio, em A Peste o filósofo parece retomar a reflexão sobre a existência e dessa vez, o que fica não é mais a sensação de vazio e de falta de sentido. O que fica é uma verdadeira declaração de amor à humanidade. Se não existe um sentido sobrenatural, uma moral, uma verdade fora da humanidade, a felicidade pode ser buscada nas relações humanas.
(…) Durante algum tempo, pelo menos, seriam felizes. Sabiam agora que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas vezes, essa qualquer coisa é a ternura humana.
Para todos aqueles, pelo contrário, que se tinham dirigido por cima do homem a qualquer coisa que nem sequer imaginavam, não houvera resposta.
Aliás, os personagens de Camus, mesmo na constante presença da morte, mesmo quando não recorrem à um ente sobrenatural, buscam a felicidade e o sentido na vida ao compartilhar as tristezas e dores dos homens, ao integrarem suas vidas nas que os cercam.
[1] CAMUS. Albert. A peste. Rio de Janeiro: Record, 1981. p. 213.
[2] Idem.
[3] Idem. p 145.
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