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Especiais

A encruzilhada climática que a pandemia revela

Eduardo Sá Barreto
Markus Spiske / Pexels

“Não há planeta B”

Desde que a pandemia da Covid-19 começou a paralisar uma série de atividades econômicas importantes, notícias e avaliações sobre seus impactos ecológicos começaram a circular. Os primeiros efeitos foram vistos na superficial regeneração da paisagem urbana, com o céu ficando mais azul, o ar mais limpo, a água mais cristalina, animais circulando nas ruas etc. Em seguida, começamos a ver projeções de redução das emissões de gases de efeito estufa em 2020. Inicialmente, redução de 1,5%; corrigida depois para 4% e agora para 8%.[1]

Naturalmente, não é preciso demonstrar que essa redução vem a um custo humano, social e econômico imenso, fruto da interrupção forçada da circulação de pessoas e mercadorias pelo mundo. O que talvez exija demonstração mais cuidadosa é o fato de que não é concebível obter as reduções preconizadas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC sem sacrifícios de magnitude semelhante. Vamos aos termos do problema.

A primeira coisa que devemos chamar à atenção é que uma redução isolada das emissões globais em nada altera as nossas chances de evitar uma catástrofe social provocada pelo colapso climático. Em seus dois últimos grandes relatórios (2018 e 2019), o IPCC indica a necessidade de reduzirmos as emissões em aproximadamente 50%, até 2030. Para que o leitor tenha a dimensão do desafio, se repetíssemos essa redução prevista de 8%, em todos os próximos 10 anos, atingiríamos o corte de 50% exatamente em 2030.

Nossos problemas, no entanto, não param por aí. O mesmo IPCC trata a meta de 2030 como uma espécie de primeiro check-point, uma conquista de passagem, rumo ao objetivo realmente necessário: alcançar emissões nulas até 2050.[2] Mas se diminuirmos as emissões globais de gases de efeito estufa em 8%, todos os anos, pelos próximos 30 anos, chegaremos em 2050 com um nível de emissões globais de 4,5 bilhões de toneladas de CO2 equivalente. Um nível certamente bastante diferente de zero.

Nem mesmo os mais otimistas imaginariam que fôssemos capazes de zerar as emissões brutas. A aposta do IPCC é, já desde de seu grande relatório de 2014[3], mobilizar tecnologia de geoengenharia para extrair ativamente da atmosfera ao menos tanto gases de efeito estufa quanto lá colocamos. Ou seja, simultaneamente ao sucesso de três décadas ininterruptas de corte das emissões em 8%, teríamos que chegar a 2050 com a capacidade tecnológica de capturar e armazenar 4,5 bilhões de toneladas de CO2 anualmente.

Para colocar esse número em perspectiva, o mesmo IPCC estima que toda a vegetação do mundo e todos os oceanos absorvam anualmente pouco mais de 4 bilhões de toneladas de CO2. Grosso modo, nossa tecnologia deveria então simplesmente dobrar a capacidade de captura de carbono do planeta.

O que normalmente se esquece quando as características virtuosas de novas tecnologias são levantadas é que todas elas, sem nenhuma exceção significativa, entram em cena patenteadas. Ou seja, protegidas por direitos de propriedade que evitam ou encarecem sua ampla difusão. Por isso, a quarta questão é a seguinte: se é que já existem – ou podem vir a existir – tecnologias tecnicamente capazes de nos auxiliar nas diversas frentes de adaptação que precisaremos, a urgência de nossa situação exige que elas sejam empregadas de modo abrangente e acelerado. Isso, por sua vez, exige pôr abaixo o sistema de propriedade intelectual, que existe apenas para garantir lucros extraordinários aos pioneiros das mais novas bugigangas (úteis ou não).

Em segundo lugar, a maior parcela de tudo aquilo que emitimos – pouco mais de um terço do total – tem origem na produção de energia. Uma descarbonização radical da matriz energética mundial é, portanto, incontornável. Reservas comprovadas de petróleo, carvão e gás natural devem permanecer inexploradas. Evidentemente, muito mais do que uma questão puramente técnica, o que está aqui envolvido é uma luta encarniçada contra um dos setores mais poderosos do capitalismo contemporâneo.

O mero estímulo às fontes renováveis não chega nem perto de ser suficiente. O impulso à proliferação dessas fontes nas últimas décadas foi extraordinário e, ainda assim, não foi capaz de deslocar os combustíveis fósseis da matriz energética mundial, que em 1990 correspondiam a 81,19% de toda a energia produzida e em 2017 correspondiam a 81,21%.[4]

Além disso – e essa é a terceira questão – as reservas ainda não exploradas circulam como trilhões de dólares em ativos financeiros nos mercados de futuros e as próprias corporações têm seu valor determinado em parte pelo que ainda está debaixo da terra. Desafiar os combustíveis fósseis, portanto, não envolve apenas a luta contra grandes petroleiras e afins. Envolve encarar de frente todo o setor financeiro, todos os seus atores diretos e todos os políticos profissionais em sua folha de pagamento.

Em quarto lugar, com pouco menos de ¼ das emissões totais, temos a agricultura e uso da terra em geral. A forte mitigação que precisamos implica, nesse terreno, confrontar os interesses do agronegócio – e nisso estão incluídos, necessariamente, o lucro e a propriedade. A agricultura industrial, a monocultura, o uso massivo de fertilizantes nitrogenados – que emitem óxido nitroso, um gás quase 300 vezes mais potente que o CO2 – o desmatamento, entre outras práticas, deveriam ser submetidos a uma completa reformulação sob controle público e informados pelas melhores prática agroecológicas. Mais uma vez, não se trata de um inimigo de poderes modestos.

Em quarto lugar, mas não menos importante, temos os transportes. Esse é um caso emblemático, porque muitos dos efeitos mais aparentes mencionados no início do texto estão relacionados a esse setor. A baixa circulação de carros nas grandes cidades sob medidas de distanciamento social – ou até de confinamento obrigatório – leva a rápidas melhorias na qualidade do ar urbano. A contração significativa do turismo e o fechamento de fronteiras em diversos países também teve impacto no tráfego aéreo, uma das atividades humanas mais intensivas em emissões de carbono. Essas retrações desarticuladas, improvisadas e temporárias não devem nos servir de modelo. Não é possível imaginar que os transportes, responsáveis por cerca de 14% das emissões totais, apresentem as reduções necessárias sem que certos modais sejam superados – o carro privado individual, o avião etc. – e sem que a lógica privada que opera o transporte público seja extirpada em definitivo.

Por último, é imprescindível que os resultados aqui arrolados sejam alcançados globalmente. De nada adianta que um país qualquer obtenha uma descarbonização expressiva ou completa às custas de “exportar emissões”. Disputas geopolíticas por controle de tecnologias, de recursos minerais, de fronteiras são absolutamente incompatíveis com cenários que garantem ao menos um mínimo de possibilidade de preservação de nossa espécie.

Por essa brevíssima recuperação de alguns poucos pontos centrais, percebemos que é incontornável enfrentar alguns dos mais poderosos pilares do capitalismo atual. E para que não haja dúvidas: se pretendemos evitar nosso próprio desaparecimento, derrota ou vitórias parciais não são uma opção.

Diante de todos esses desafios, é inacreditável que a crista da onda do ecologismo atual seja algo denominado Green New Deal.[5] Para além da opção completamente anacrônica de traçar uma analogia intencional com políticas econômicas de salvamento do capitalismo nos anos 30, o Grande Acordo Verde padece de um problema de origem mais debilitante: pretende fazer avançar toda a agenda disruptiva (comentada nesse texto) na arena parlamentar, por meio de leis. O projeto bastante desidratado apresentado no congresso estadunidense[6] e a versão ainda mais recuada aprovada no parlamento europeu[7] mostram com clareza os limites, há muito conhecidos, dessa estratégia.

Há, é verdade, um apelo difuso e insistente a pressões populares que de alguma forma seriam capazes de redefinir o rol de possibilidades na política institucional. Os desafios com os quais nos defrontamos, contudo, demandam uma mobilização popular com energia verdadeiramente insurrecional, capaz de assumir o comando e o controle coletivo dos rumos que precisam ser tomados. Se ela ainda não está posta, nossa tarefa mais imediata é constituí-la. Superar o capitalismo é o programa mínimo para enfrentar a crise climática que se avizinha.

 

Eduardo Sá Barreto é professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro O Capital na Estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas (Rio de Janeiro, Editora Consequência, 2018)

 

[1] Cf.: https://www.iea.org/reports/global-energy-review-2020

[2] Cf.: https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/sites/2/2019/05/SR15_Chapter2_Low_Res.pdf

[3] Cf.: https://www.ipcc.ch/report/ar5/syr/

[4] Cf.: https://www.iea.org/data-and-statistics?country=WORLD&fuel=Energy%20supply&indicator=Total%20primary%20energy%20supply%20(TPES)%20by%20source

[5] Cf.: ARONOFF, K. et al. A planet to win: why we need a Green New Deal. Londres: Verso, 2019; e KLEIN, N. On fire: the burning case for a Green New Deal. Toronto: Penguin Random House, 2019.

[6] Cf.: https://www.congress.gov/bill/116th-congress/house-resolution/109/text

[7] Cf.: https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/european-green-deal-communication_en.pdf