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BRASIL

A escola em tempos de “negacionismo” e de COVID-19

José Luis Derisso e Ronaldo Nascimento Mota
pexels.com

A ocorrência da pandemia do COVID-19 e as medidas de afastamento social

A ocorrência da pandemia do COVID-19 e as medidas de afastamento social recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) colocaram no centro da discussão política no Brasil a validade desta recomendação a partir de uma dicotomia entre vida e economia. Nota-se que os fatos mais marcantes relacionados à crise política do governo Bolsonaro, noticiados pela grande mídia entre os meses de março até o final de abril de 2020, relacionaram-se com esta questão. Tomemos três exemplos: as divergências entre o Presidente e seu ministro da saúde, o incitamento à rebeldia contra as medidas de combate à pandemia e, por fim, a mobilização em defesa da intervenção militar que contou com a participação do Presidente.

Bolsonaro combateu desde o primeiro momento as medidas de redução do contato social sob argumentos que mudaram no decorrer da crise sanitária: inicialmente negou a pandemia e depois defendeu a inevitabilidade das mortes. Porém, durante todo o tempo lançou mão do argumento segundo o qual o número de mortes pela fome seria maior do que as ocasionadas diretamente pelo vírus no caso das atividades econômicas não se normalizarem. Até mesmo a suspensão das aulas decretada por governadores estaduais e prefeitos foi questionada e nenhuma campanha informativa sobre a pandemia foi lançada pelo governo federal. Ao contrário, intentou-se uma campanha agressiva contra as medidas dos governadores que foi vetada pelo STF.

Em diferentes graus, existem resistências contra as medidas sanitárias nos quatro cantos do mundo, e o que salta aos olhos é que os governantes resistentes são via de regra identificados com a extrema direita. O que não torna o combate à pandemia uma questão ideológica, porque o que estes governos fazem é defender da forma mais pragmática possível os setores da burguesia estimulados por resultados imediatos,sobretudo os ligados ao comércio.

Os argumentos contra as medidas sanitárias de combate à pandemia negam que a comunidade científica entenda o problema. As proposições alternativas, tais como permitir que o vírus circule para aumentar a imunidade das pessoas, aplicar cloroquina nas pessoas infectadas e até mesmo a utilização de cloro (defendido recente por Donald Trump), são totalmente desprovidas de base científica, mas para uma grande parcela da população leiga tudo não passa de disputa política, e cada um toma posição a partir de suas preferências.

Acerca do negacionismo

A negação da ciência tem como objetivo produzir a dúvida ou a ignorância e é tão utilizada que gerou um estudo chamado de agnotologia (agnotology), termo formado por Robert Proctor, historiador da ciência da Universidade de Stanford. Os ensaios reunidos em Agnotologia mostra que a ignorância é frequentemente mais do que apenas uma falta de conhecimento; também pode ser o resultado de lutas culturais e políticas e isso poderia justificar porque várias formas de conhecimento não ‘emergiram’, ou desapareceram, ou foram retardadas ou negligenciadas por longo tempo, para melhor ou para pior, em vários pontos da história (Proctor & Schiebinger, 2008. Disponível aqui).

Os negacionismos são antigos e via de regra combinam ignorância com uma grande dose de má fé. Em alguns casos, interesses de líderes e instituições religiosas contribuem para afastar as pessoas do acesso ao conhecimento interpondo as escrituras sagradas entre estas e a ciência, criando uma barreira praticamente intransponível. Porém, a questão não se encontra nas crenças religiosas em si, mas na vinculação do negacionismo com interesses de classe, e na atualidade estes vinculam-se aos interesses da burguesia ao defender o capitalismo e combater não apenas o socialismo, mas também quaisquer políticas públicas de atenuação dos males da desigualdade social.

Além daqueles relacionados com a pandemia do COVID-19, existem atualmente outros exemplos don´t know que se manifestam em afirmações tais como: a queima de combustíveis fósseis não interfere no efeito estufa; nazismo e fascismo são socialistas; a escravidão foi um ato civilizatório para o continente africano; a Terra é plana; o mundo criado por Deus constitui um “design inteligente”. “Teses” que se sustentam bem menos em argumentos de afirmação do que na atribuição de supostas intencionalidades de seus contrários, ou seja, teorias da conspiração.

Um exemplo de teoria da conspiração que salta aos olhos é a chamada “ideologia de gênero” que teria sido elaborada pelos comunistas, a partir da crítica cultural de Gramsci ao capitalismo, com o fim de destruir a religião e a família. A tese capenga consiste em distorcer a teoria de Marx e Engels que concebe a família patriarcal como resultante do surgimento da propriedade privada, dizendo o contrário: que os marxistas acreditam que a família (não a patriarcal, mas genericamente) é a base da propriedade privada e que destruindo a primeira destroem a segunda. O argumento religioso que sustenta tal teoria da conspiração é de que o “Mal” intenta contra a obra divina pois “a família patriarcal, a propriedade privada e a sociedade dividida em classes de indivíduos desiguais constituem obras do criador” (DERISSO, 2016, p.10. Disponível aqui  ).

A produção de conhecimentos e sua transmissão às futuras gerações constituem um fenômeno exclusivamente humano que se desenvolve a partir do fato (não natural) do homem (ser genérico) produzir seus meios de vida por meio do trabalho. O que levou Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, a afirmarem que o primeiro ato, ou fato, histórico teria sido a produção de um instrumento, marcando assim o caráter histórico de todas as relações sociais, e o conhecimento dessa história uma memória social que somente pode ser preservada pela intermitente atividade de transmissão. Esta atividade é justamente o que chamamos de educação, e a partir da qual a humanidade consagra uma linha ascendente, mas nunca linear, de produção de autonomia. Autonomia que constitui um processo que se desenvolve a partir do momento em que os seres humanos transpõem as barreiras naturais e transformam a natureza em segunda natureza, criando assim uma natureza humanizada que tem como centro o ser humano convertido em ser social.

Resistir à descaracterização da Escola restabelecendo seu caráter socializador

Os grandes pensadores renascentistas e iluministas do período de formação da moderna sociedade burguesa cultivaram uma honesta ilusão de que por meio do conhecimento a sociedade humana se aprimoraria e se tornaria cada vez mais autônoma e atribuíram à instituição escolar a vocação de socializar os conhecimentos elaborados no âmbito das ciências, da filosofia e das artes. No entanto, a classe burguesa transforma as ciências em meros instrumentos técnicos e a filosofia e a arte em instrumentos ideológicos.

Nesse cenário, a escola tende a tornar-se cada vez mais reprodutora ideológica e formadora de mão de obra (ou “capital humano”, para usar a linguagem floreada da pedagogia tecnicista). Para cumprir o objetivo de aparelhamento da Escola pela burguesia, os cursos de formação dos professores têm alterado seus currículos ressaltando que é mais importante a forma do que o conteúdo que o aluno deveria efetivamente aprender (Duarte, 2001. Disponível aqui ).

Na perspectiva das orientações pedagógicas hegemônicas, que Newton Duarte caracteriza criticamente como pedagogias do “aprender a aprender”, apresenta-se como objetivo primeiro desenvolver habilidades e competências para a vida, negligenciando e por vezes até negando a importância dos conhecimentos elaborados. A pedagogia das competências constitui-se atualmente num instrumento que induz a escola a um esvaziamento de sua finalidade de ensinar.

As expectativas que o Estado e as classes dominantes alimentam com relação à educação escolar é da formação de um cidadão pacífico e ordeiro, preparado exclusivamente para concorrer no mercado de trabalho, negando a democratização do conhecimento e a possibilidade de que por meio deste os trabalhadores orientem sua luta pela superação do capitalismo. (DERISSO, 2010. Disponível aqui). Porém, a vontade da burguesia não cria uma realidade absoluta: a escola não é uma instituição reprodutora da ideologia burguesa por excelência, mas sim uma instituição contraditória: sua vocação é socializadora do conhecimento, mas a burguesia, por meio do Estado, desvirtua o seu caráter. Neste sentido, os socialistas devem se bater para que a escola seja amplamente democrática, não apenas na gestão dos recursos que devem sempre provir do Estado, mas possibilitando aos filhos dos trabalhadores o acesso ao conhecimento superior, os saberes elaborados mais avançados, rompendo assim com os limites que o Estado impõe aos professores (as) e às escolas.

O ato educativo deve ser pleno, na perspectiva que Dermeval Saviani o definiu para sustentar a necessidade de se elaborar uma Pedagogia Histórico-Crítica: “a educação é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2003, p. 07). Ou seja, educar é humanizar. E para tanto é necessário que os professores, ao mesmo tempo em que lutem por melhores condições de vida e de trabalho, defendam a instituição escolar a partir do que lhe é precípuo: democratizar o acesso ao saber socialmente produzido e elevar o espírito às suas máximas potencialidades.

 

*Ronaldo Nascimento Mota é Professor da Rede Estadual e Conselheiro da APEOESP/ São Carlos-SP
José Luis Derisso é  Professor da Pedagogia e da pós-graduação em Educação na UNIOESTE/ Cascavel-PR.

 

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Conheça a publicação do COLEMARX, da UFRJ, sobre Ensino a Distância e pandemia