Na última terça-feira (28), fui entrevistado pelo Dias, jornalista e músico de Porto Alegre, que nos trouxe uma visão muito sensível sobre a forma como o coronavírus atinge a população negra. Resolvi postar o trabalho dele na minha coluna, pois a mídia corporativa gaúcha ignora a condição periférica. O momento em que a doença começa a atingir os mais pobres coincide com o start dos governos para o relaxamento do isolamento social. Uma sincronia cruel! É preciso denunciar antes que a tragédia aconteça, levar informação para que lutemos por transformação, esse é o papel da mídia negra e independente!
Por Matheus Dias Lourenço*
Desde o final do mês de fevereiro de 2020, o Brasil se tornou mais um país com registros de casos da COVID-19. O primeiro caso foi de um homem idoso que chegava da Itália e aterrissou em São Paulo. De lá para cá, já são 71.886 casos confirmados, registrando 5.017 óbitos, segundo o Ministério da Saúde (dados de hoje, 28).
Entretanto, a população que mais vem sofrendo os reflexos da pandemia é a negra. Conforme dados divulgados no dia 20.04, também pelo Ministério da Saúde, pretos e pardos formam o segundo grupo étnico a contabilizarem mais falecimentos pelo novo coronavírus, ficando atrás apenas dos brancos( INFOGRAM: https://infogram.com/obitos-covid-19-brasil-1h7k23xzl0ov2xr ).
Qualitativamente, a COVID-19 tem sido mais letal com os negros e pobres do que com os brancos e a elite. Isso se exemplifica no estudo divulgado pela Prefeitura Municipal de São Paulo (SP), publicado no dia 17 deste mês, que avaliou, também, a incidência do vírus na cidade. O bairro Morumbi, um dos mais ricos, apresentava 297 casos confirmados e 7 óbitos. Já na Brasilândia, bairro periférico, o número de casos confirmados era de 89, mas o de mortes chegava a 54. Uma semana depois, no dia de ontem, a prefeitura de SP divulgou um novo estudo, onde a Brasilândia aparecia registrando 89 mortes.
“As condições sociais aprofundam o grau de letalidade do coronavírus. Isso aconteceu nos Estados Unidos também, onde a população negra é minoria, mas morreu proporcionalmente mais do que a população branca. Historicamente, essa condição fez com que mais negros estivessem no grupo de risco, o que ocorre aqui no Brasil também, e, estando em condições mais precárias de trabalho, são os últimos a deixar de trabalhar ou são aqueles que não param de trabalhar, ficando mais expostos ao risco”, define o historiador Matheus Gomes (28), de Porto Alegre — RS.
Outro fator determinante para esta maior letalidade é que os negros são a maioria dentro dos grupos de risco. Conforme o Ministério da Saúde, a hipertensão atinge mais a população negra, por exemplo. E deve-se levar em consideração que ela é considerada um agravante no desenvolvimento de um quadro com maior gravidade da COVID-19.
“E, infelizmente, a precisão dessa informação é difícil porque têm muitos óbitos que não estão sendo registrados a cor da pessoa. E isso é uma forma de reforçar um discurso de que ‘ah, o coronavírus é igual pra todo mundo’. Tu esconder os dados referentes à questão racial é um problema grave, precisamos de transparência nesse sentido”, completa Matheus.
De acordo com o Ministério da Saúde, no estudo com recorte racial, divulgado no dia 20 de abril, até aquele momento, 31,7% dos óbitos não possuíam o registro de variável racial (INFOGRAM: https://infogram.com/obitos-sem-raca-1hxr4zqqmj8q4yo ).
Além disso, negros são, também, um a cada quatro hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Novamente, os brancos registram o maior número de hospitalizações pela mesma patologia (INFOGRAM: https://infogram.com/obitos2-covid-19-no-brasil-1h0r6rgr88772ek).
Manda quem pode
Diversos são os fatores que implicam na disparidade dos números qualitativos do novo coronavírus com relação à população negra e periférica. Para o historiador, estamos vivendo uma espécie de “darwinismo social”, onde vai sobreviver quem é mais forte — socioeconomicamente. “Isso aí é um elemento que agrava a forma de como a epidemia se abate nas populações mais pobres. Porque as elites têm mais informações hoje sobre o que pode acontecer”, relata Matheus.
De encontro ao pensamento exposto acima, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, desde a última semana vem estudando e compactuando com a ideia de “distanciamento controlado”, para amenizar os efeitos negativos que a pandemia trouxe para a economia não só do Estado, mas do mundo.
Citando as palavras de Matheus Gomes, esta pandemia, assim como outras dos séculos XIX e XX, vem sendo tratada sob o olhar ideário da política. Com pensamentos reacionários e ideias conservadoras, muitos governantes do Brasil têm colocado em pauta o embate entre salvar a economia e salvar vidas.
Aqui, no Rio Grande do Sul, por exemplo, a vontade de salvar a economia vai vencendo. Ontem (27), vereadores de Porto Alegre (POA) aprovaram uma lei que redefine as atividades que podem funcionar durante o isolamento social. Bares e restaurantes poderão abrir as portas novamente caso o prefeito da capital, Nelson Marchezan Jr., sancione o pedido. Essa decisão vai impactar diretamente a vida de quem faz a engrenagem girar: os proletários, moradores, majoritariamente, das periferias.
“Não há nem um aspecto cultural ou racial que explica o porquê que o Brasil tem dificuldade hoje de fazer um isolamento social. É sim uma pressão por acumulação de riqueza, uma pressão por botar os lucros acima das vidas. Essa é a nossa história, né!? E dentro dessa perspectiva, o negro sempre foi o trabalhador no nosso país”, complementa o historiador.
Outro fator determinante na disparidade dos números de óbitos e hospitalizações da população negra e periférica por coronavírus são as condições de vida desta população. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Regional (referentes a 2018), metade da população brasileira não tem acesso à rede de esgoto.
“Eu acho que esse processo que a gente tá vivendo agora acelera o conteúdo regressivo das transformações que o país já tava vivendo, de ampliação da pobreza, do desemprego, da restrição de direitos trabalhistas… quem não pode parar de trabalhar, quem não tem o direito sequer de lavar as mãos”, finaliza Matheus.
Obedece como consegue
“Na sexta-feira (24), minha mãe saiu pra trabalhar às 06h e não tinha água. Eu passei o dia inteiro em casa sem água. Quando ela chegou (em casa), ali pelas 19h30, ainda não tinha voltado a água. Daí na TV a gente vê as pessoas dizendo: “chega em casa e toma banho pra desinfectar”, mas se não tem água nem para tomar banho, como ela vai se desinfectar?”.
O relato acima é da estudante de jornalismo Tamires Rodrigues (23). Atualmente, ela mora no Loteamento da Auxiliadora, também conhecido como bairro Rincão da Madalena, no município de Gravataí, região metropolitana de POA.
Conforme Tamires, o problema da falta de água no bairro dela é constante: “no verão passado a gente ficou uma semana sem água. Foi a pior situação. Porque a gente já tinha ficado até três dias sem água, mas dessa vez foi uma semana. E eles só vieram com o caminhão pipa um dia antes da água voltar”.
Na residência, mora apenas ela e sua mãe, mas ela nos disse que a situação é ainda mais grave com os vizinhos que possuem a casa mais cheia. “Na minha vizinha, moram oito pessoas na casa, como ela vai conseguir juntar água pra todo mundo? É bem complicado”, relata a estudante.
A principal recomendação dos órgãos de saúde no combate ao novo coronavírus é a lavagem das mãos com água e sabão. Para Tamires, a falta de água compromete bastante a higiene recomendada. Ela acredita que o fato de ter que pegar um recipiente nas mãos para só após lavá-las faz com que o hábito não seja tão eficaz como seria se tivesse água diariamente saindo das torneiras.
“Minha mãe criou uma paranoia e ela junta muita água. Aqui em casa tem muitos litros de água guardados”, disse a futura jornalista. Segundo ela, há uma grande caixa d’água do bairro que a própria Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), empresa fornecedora de água, confirmou nunca terem ativado. A estudante ainda finalizou dizendo que tem consciência que muitas pessoas do bairro dela não conseguem guardar água por diversos motivos.
Ainda que seja um direito, grande parte da população brasileira não possui acesso à água de qualidade. Além disso, cerca de 18,8% da população ainda não possui acesso à água, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Regional (2018). De acordo com o estudo, a população com pouco ou nenhum acesso à água encontra-se nas localizações mais marginalizadas (INFOGRAM :https://infogram.com/pop-sem-acesso-a-agua-1h7g6kdd9qeo4oy ).
“Quando falta água, minha mãe liga pra lá (Corsan) pra fazer o registro e eles sempre dizem que não tem faltado água na região”, disse Tamires. Indagamos a Corsan sobre a falta de água no dia 24 deste mês, relatada acima, e eles nos disseram que único registro de falta d’água foi no dia 23.04, em decorrência da falta de energia elétrica na estação de bombeamento, e que no restante do mês de abril não houve desabastecimento. Entretanto, a estudante nos confirmou que o desabastecimento ocorreu nos dias 23 e 24 de abril e que há duas semanas, mais ou menos, também houve falta d’água, dessa vez por três horas.
Para o historiador Matheus Gomes, problemas como o da Tamires já são antigos: “são décadas no Brasil de descaso com a pesquisa científica, com a estruturação da saúde pública, com a resolução de problemas básicos como saneamento, água encanada pra população, condições de moradia adequada. Isso não acontece do nada. É uma política pensada e estruturada já há muito tempo”, respondeu quando indagado sobre a responsabilidade do cenário sócio-político-econômico na vulnerabilidade periférica.
De mãos atadas, possível consequência
Caso fique doente, Tamires é uma entre os milhares de brasileiros que necessitam do Sistema Único de Saúde, o SUS. Segundo a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 67% dos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS (Sistema Único de Saúde) são negros. E este é mais um dado que implica diretamente na correlação entre o novo coronavírus e a vulnerabilidade da população negra e periférica.
Um sistema de saúde de qualidade faz total diferença no tratamento e combate de epidemias como a da COVID-19. Na região onde mora a estudante, há um posto público de saúde para atender os bairros do entorno. Segundo ela, são três médicos que dividem as tarefas entre três bairros: cada médico cuida de um. Se a população gravataiense (segundo o último censo IBGE) fosse dividida igualitariamente por todos os bairros do município, para termos uma noção, cada médico cuidaria de, em média, 3.654 pacientes.
Conforme nos disse Tamires, quando é um caso mais grave de saúde, os médicos do posto costumam encaminhar os pacientes pro hospital do município, o Dom João Becker. Atualmente, há uma estrutura móvel de hospital de campanha em combate ao novo coronavírus no estacionamento do Becker (como é conhecido). Com essa nova estrutura somada à outra destinada à triagem, junto ao Pronto Atendimento 24h, o município terá 40 novos leitos.
Com o devido foco no combate à COVID-19, outros surtos e doenças acabam ficando em segundo plano, gerando subnotificações. “Acho importante a gente lembrar que nas periferias do Brasil, nos últimos anos, a gente já teve vários processos de epidemias… zika vírus, a dengue… e agora a gente tá vendo essas doenças, inclusive, se agravarem, né?! Nós temos um dado do Rio Grande do Sul, por exemplo, que o número de mortes e internações por SRAG em 2020 já cresceu mais de 500%”, disse Matheus Gomes.
Em tempos de isolamento, consciência social
Integrando a vanguarda da solidariedade em Porto Alegre, Matheus Gomes vê a coletividade como um braço importante desse corpo que é a periferia da cidade. Articulado com amigos, ele distribui alimentos pelas vilas desde o início da quarentena, pois, para ele, ainda que seja difícil, precisamos acreditar. Acreditar e construir coletivamente uma saída.
“É o momento da gente lutar nas periferias pra estender a nossa rede de solidariedade, porque é um aspecto muito necessário nesse momento. Fazer com que essa solidariedade nos ajude a desenvolver mais consciência social, auto organização também, pra que a gente consiga, além de arrecadar alimento, de ajudar com quem tá com dificuldade de saúde, lutar pra que as nossas condições de vida melhorem à longo prazo. Nós precisamos acreditar nos pressupostos científicos que tão sendo apresentados sobre a doença. Combater toda aquela ideia de achar que ‘aqui não vai pegar’, que ‘não é sério’… é algo muito sério, sim. Acreditar nessas informações é fundamental. E compreender que nós precisamos estar unidos pra construir uma saída dessa crise a partir das nossas necessidades, as necessidades do povo tem que estar em primeiro lugar, pra que a gente possa intervir nesse processo. Os governos falam em reduzir distanciamento social olhando só pra demanda dos empresários. Nós temos que fazer com que as demandas da população sejam colocadas em primeiro lugar nesse processo”, finalizou.
* Publicado originalmente na página do autor no Medium:
https://medium.com/@mdiasl/covid-19-a-luz-sob-a-desigualdade-social-e4f3274caf91
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