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BRASIL

Coronavírus e o oportunismo neoliberal

Bruno Santos de Moraes*, de Catalão, GO
Creative Commons

O debate sobre os efeitos econômicos após o surgimento do coronavírus tem caminhado em paralelo com a preocupação mundial em relação aos milhares de mortos em decorrência do vírus. Sobre o primeiro ponto, ao meu ver a mídia global está expondo de forma contundente uma retórica falaciosa que não demonstra a verdadeira causa da crise econômica que começou a assolar o mundo – que é a incoerência de um sistema econômico dominante que, após a década de 70 do século passado, intensificou processos de financeirização e globalização (neoliberalismo ou capitalismo financeiro) que são os verdadeiros responsáveis pela atual fragilidade do sistema (crises econômicas) e pela brutal desigualdade de renda crescente.

O coronavírus, que por muito tempo será erroneamente descrito como causador da recessão desta década de 20, foi para o neoliberalismo um oportuno estopim para a correção de preços da bolha financeira gigante que já era esperada a estourar, e deu uma sobrevida ao sistema que estava vendo ganhar espaço propostas alternativas, inclusive em potências como os EUA. A dita sobrevida não se deve somente pelo fato da verdadeira causa desta recessão ser omitida, mas também pela perspicácia do sistema de oferecer alguns “ganhos marginais” à sociedade decorrentes de efeitos da crise sanitária e, com isso, minar por mais um tempo as ameaças à hegemonia da classe dominante que detém a maior parte da riqueza mundial.

A estrutura do sistema capitalista como é hoje tem seu formato idealizado após uma grave tensão econômica na década de 1970 do século XX, ocorrendo uma guinada nas políticas econômicas mundiais liderada principalmente por símbolos neoliberais como Margaret Thatcher e Ronald Reagan, no sentido de uma economia de mercado com fronteiras abertas de comércio e de capital, e com um grande processo de desregulamentação em todos os campos – mas principalmente no mercado financeira. Ambos os fatores tinham a estratégia clara de proteger os interesses das classes com renda mais alta. Agora, aproximadamente 40 anos depois, o que é um intervalo relativamente pequeno na história da humanidade, conseguimos ver claramente dois efeitos nefastos para a sociedade após a disseminação – às vezes forçada – e intensificação dessa estratégia para a maioria dos países do globo.

Excesso de financeirização

O primeiro refere-se ao excesso de financeirização após as desregulamentações, permitindo que bancos, fundos de investimento e seguradoras criassem, principalmente depois dos anos 2000, sofisticados produtos financeiros (títulos de securitização e derivativos) altamente rentáveis devido à sistemática de criação de dinheiro fora do processo produtivo (comercialização de “papéis lastreados em papéis”) que, ao fim, acabam gerando excedentes fictícios na economia. Esse fator retroalimenta um ciclo vicioso: na busca incessante por maiores rendimentos, o capital vai de encontro a esses produtos do mercado financeiro porque são mais rentáveis que o investimento no setor produtivo, o que obriga os governos a baixarem as taxas de juros básicas para estimular o investimento produtivo (que gera empregos). Contudo, baixas taxas de juros significam crédito mais barato, que ao fim retroalimenta os investidores que alocam novamente no mercado financeiro via alavancagem (maximizam rentabilidade através de endividamento).

Esses fatores são os responsáveis por uma fragilidade sistêmica na economia (Duménil & Lévy, 2014), onde os excedentes fictícios são rapidamente pulverizados a qualquer sinal de ameaça aos capitais dos investidores, como um castelo de cartas, impactando de forma irresponsável o investimento produtivo. Além disso, privilegia rendimentos de capital, aumentando a desigualdade de renda na medida em que a classe pobre não tem acesso a esses produtos financeiros pela falta de poupança. Como comprovação prática dos processos de financeirização, há o crescimento constante da lucratividade das instituições financeiras (bancos comerciais e de investimento, seguradoras) e a importância que está tendo a rubrica de Resultado Financeiro nos demonstrativos de resultados das grandes empresas (que também aplicam nesses produtos financeiros), seja em momentos de bonança, seja em momentos de recessão.

O segundo efeito das políticas neoliberais pós-década de 70 é o excesso de globalização após a abertura das fronteiras mundiais, não impondo regras à flutuação de capitais no mundo, possibilitando a criação de grandes conglomerados financeiros que detém poder suficiente para influenciar as políticas estatais em benefício próprio (o que também explica porque grandes fortunas não são sobretaxadas até hoje), dirimindo a quantidade de ferramentas endógenas de controle macroeconômico por parte dos governos, sejam eles de países desenvolvidos ou países periféricos. Além disso, pelo fato de não haver políticas que possam enraizar o investimento, o capital pode deixar uma determinada localidade sem se preocupar com consequências na comunidade em que se fixa – isto vale tanto para o capital produtivo, como por exemplo uma filial norte-americana fechando fábricas em países periféricos, como para o capital financeiro, que levando aplicações para outros países desvaloriza a moeda local sem se interessar pelos efeitos que pode acarretar.

Desigualdade

A intensificação desses dois efeitos, além de alimentar uma desigualdade de renda crescente, provocou, não somente a crise do subprime de 2008, mas também o cenário de “tempestade perfeita” que estava sendo formado na economia, com previsão de estouro de outra bolha financeira – quando o preço de uma ativo fica muito maior do que realmente vale – justo no ano de 2020. Nouriel Roubini, economista que ficou famoso ao prever a crise do subprime, publicou um artigo ao final de 2018 e expôs, à época, alguns fatores que caracterizavam uma próxima recessão, como: a insustentabilidade das políticas de estímulo fiscal feitas nos EUA no pós-crash de 2008; superaquecimento da economia norte americana com a inflação subindo acima da meta; perigo de inflação também em outras economias do mundo, forçando os Bancos Centrais a também fazer ajustes monetários; disputa comercial entre EUA e China, com protecionismo como arma; alta taxa de alavancagem dos EUA, provando que Wall Street não aprendeu (ou não quer aprender) com o crash de 2008, já que os motivos desta próxima recessão seriam similares às daquele ano; crise política nos EUA, com indicativo de abertura de processo de impeachment contra o atual presidente Donald Trump. Contudo, o fator mais preocupante da nova recessão prevista, segundo ele, é que os governos no mundo não seriam capazes de fornecer ajuda financeira como feito em 2008, dado o alto nível da dívida pública dos países – o que poderia tornar esta nova recessão muito mais intensa e duradoura.

Assim, nos últimos anos, mas principalmente em 2019, a intensificação desse modelo econômico gerou diversos protestos em massa contra sistemas políticos, contra classe dominante e contra desigualdade social, de gênero e de raça. Chile, Hong Kong, França, Argélia, Líbano são exemplos. Surgem sem liderança específica nem organização, mas com a mesma crítica: todos estão fartos do capitalismo deixado a seus instintos, onde não há benefício social para a grande maioria da população mundial. Paralelo aos protestos surgem, então, lideranças políticas que manifestam os mesmos interesses, até mesmo nos EUA com Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, que têm tido cada vez mais voz principalmente entre a juventude estadunidense com o discurso de um “socialismo democrático e mais brando”. Ademais, é crescente o interesse de jovens no mundo todo sobre as vertentes econômicas heterodoxas, como socialismo e comunismo (principalmente o comunismo chinês), já que o neoliberalismo não os representa.

É nesse cenário, de intensificação das políticas neoliberais, proximidade de uma recessão econômica pior que a de 2008, aumento de protestos em massa contra as mazelas do sistema e, por consequência, crescimento do interesse em vertentes alternativas da economia, que surge o Coronavírus, e rapidamente tomou a frente de todos os problemas supracitados, com o indispensável auxílio da mídia mundial, que adota como verdade absoluta os preceitos neoliberais desde sua idealização, contribuindo também para a predominância inquestionável da bibliografia ortodoxa clássica em jornais, sites e no ensino nas universidades, minando os debates necessários a que a população deveria ter acesso.

Mas, diante de tudo isso, por que acredito na sobrevida do neoliberalismo pós-coronavírus se é justamente em momentos de crise que há maior instabilidade no sistema, podendo haver até rupturas estruturais? Elenco quatro fatores principais.

Externalidades positivas do home office

O isolamento social impôs repentinamente home office a boa parte da população mundial. Provavelmente a tendência se manterá, tendo em vista que esse modelo de trabalho em casa vai permitir amenizar problemas importantes da sociedade moderna que estavam colocando em xeque o sistema econômico vigente e gerando insatisfação generalizada na sociedade. São eles: a) poluição, com menor necessidade de deslocamento para o trabalho haverá menor emissão de CO²; b) mobilidade urbana, com menos pessoas se deslocando, as vias de acesso tornam-se mais rápidas àqueles que realmente necessitam se deslocar. c) Stress no trabalho, com a maior tranquilidade e qualidade de vida do trabalho em casa, poderá diminuir o índice de problemas psicológicos modernos como stress e burn out decorrentes de cargas de trabalho intensas nas empresas. Do lado do empresário, o home office poderá intensificar no mundo a flexibilização de leis trabalhistas (e salários) com o efeito de redução de despesa com folha, assim como reduzir a jornada de trabalho tradicional.

Institucionalização de políticas de Renda Básica a nível mundial

Conceitualmente, a Renda Básica é “uma renda regular paga em dinheiro a todos os membros de uma sociedade, independentemente da renda de outras fontes e sem restrições” (Van Parijs & Vanderborght, 2018, p. 28). Essa proposta vem ganhando espaço na mídia e na política, sendo aclamada como uma política que tem adeptos tanto liberais quanto daqueles de esquerda. Agora, com a pandemia declarada e a certeza de uma grave recessão, o debate está cada vez mais em vias de se tornar realidade a nível mundial, não porque repentinamente o mundo se tornou mais solidário, mas para evitar desordem em massa dado a calamidade que a recessão pode causar. Se efetivada, essa política também tem suas externalidades positivas que podem minar algumas críticas evidentes do neoliberalismo, como: a) permitir mais dignidade principalmente àqueles na extrema pobreza, fornecendo poder de compra para que não falte itens básicos às famílias (como alimentação e moradia); b) simplificação e desburocratização do Estado em prol de uma política social, na medida em que a Renda Básica pode substituir boa parte dos projetos administrados pelo poder estatal, diminuindo a necessidade de fiscalização e administração de diversas políticas públicas destinadas a diversos fins; c) inserir a África no mapa de consumo mundial, elevando o poder de compra desta nação que possui uma enorme demanda por produtos básicos.

Aumento da vigilância social por meios tecnológicos

O israelense Yuval Harari (autor do livro “Sapiens – Uma breve história da humanidade”), recentemente publicou um artigo interessante sobre a privacidade versus a possível normalização e intensificação da vigilância social por meios tecnológicos no pós-pandemia. A tecnologia tem auxiliado muito no combate ao Coronavírus: drones, robôs em hospitais, telemedicina, inteligência artificial e ciência de dados. Contudo, como não é de se surpreender, a tecnologia sempre tem duas faces, e a consequência disto é que, apesar da vigilância virtual conseguir conter uma maior disseminação do vírus, é alto o risco de autoritarismo e maior manipulação social (left wing or right wing) com essa arma poderosa (tecnologia de dados) e essa poderosa justificativa (saúde pública), que pode ser facilmente utilizada para controlar a população e cercear manifestações (presenciais ou digitais) críticas ao sistema, sabotando a democracia de forma legalizada.

Pressão social por mais empatia por parte dos mais ricos

Com a pandemia, vemos um movimento crescente de filantropia e empatia por parte de empresas, bancos e milionários no sentido de conter os efeitos da recessão. Doações milionárias, serviços antes pagos disponibilizados gratuitamente, empresas preocupadas com o lado humano de seus colaboradores, cooperativismo entre as corporações. Aqui no Brasil, por exemplo, um grupo de empresas está coordenando um manifesto chamado “Não Demita!”, comprometendo-se a não cortar postos de trabalho durante o período previsto do isolamento social no país (meses de abril e maio). Essas ações não surgem de forma espontânea por parte das empresas, mas sim para evitar boicotes generalizados na internet que possam manchar as marcas em meio a um caos em que os sentimentos estão à flor da pele, e qualquer movimento impensado por parte das empresas e instituições pode provocar a falência.

Somente com os quatro fatores acima já seria presumível imaginar que, após os efeitos catastróficos da pandemia e da recessão atuais, teremos uma qualidade de vida mais generalizada. Menos poluição, mobilidade espacial mais eficiente, maior tempo com a família e menor tempo no trânsito, diminuição (ou até exclusão) de pessoas na extrema pobreza – problemas que estavam cada vez mais alarmantes e sendo questionados com manifestações populares ao redor do mundo. Contudo, apesar desses “ganhos marginais” (importantes, mas marginais em relação ao total de riqueza no mundo), não está sendo questionada nesta recessão a essência do sistema econômico vigente, diferentemente do que aconteceu na crise do subprime em 2008 quando foi discutido medidas regulatórios aos capitais. Essa essência diz respeito ao excesso de financeirização e excesso de globalização instituídos pelas políticas neoliberais, e a incoerência de um sistema em que o indivíduo, quando “vende” sua força de trabalho, é explorado (o capitalista procura pagar o mínimo possível), mas quando este mesmo indivíduo participa do mercado consumidor, é importante para gastar sua renda nos produtos produzidos pelo mesmo capitalista. Neste sentido é que o termo “sobrevida” se adequa, porque esse sistema, devido a suas contradições internas, não é sustentável se não alterar sua essência.

Certos de que esta crise econômica não deve ter como resultado a alteração da essência do sistema pelo fato da causa real ser omitida e pelos ganhos marginais, teremos então, mais cedo ou mais tarde, um contrapeso nas externalidades positivas pós-pandemia dos quatro fatores citados. O primeiro exemplo disso é o caso da renda básica. Essa proposta, quando olhada individualmente, realmente é uma boa alternativa para procurar superar no próprio sistema capitalista as mazelas que ele gera, principalmente para aumentar a dignidade e poder de compra daqueles na extrema pobreza. Contudo, dentro de um contexto em que o capitalismo financeiro permaneça dominante e protegido pelo Estado, a manutenção da essência do sistema permitiria a continuação da criação de dinheiro fictício através da financeirização, sendo, então, a Renda Básica uma solução somente paliativa do sistema, paradoxalmente podendo até ter um incentivo inverso e subsidiar a precarização do trabalho e a economia informal (Wright, 2019, p. 144), contribuindo mais ainda para a acumulação de capital das classes de renda alta. Além disso, com uma renda básica há um risco de as sociedades serem estimuladas ao consumismo (aquisição produtos supérfluos), mesmo em comunidades mais pobres, sendo que o ideal é a formação de uma sociedade consciente e cooperativa, não consumista.

Outra consequência é a manutenção quase que compulsória das baixas taxas de juros básicas nos países. Medidas contra crises econômicas como disponibilizar liquidez (crédito barato), na verdade beneficia mais investidores e às próprias instituições financeiras do que trabalhadores e a população em geral, alimentando o ciclo vicioso da financeirização. Isto é um problema que está na estrutura do sistema, e que alimentará bolhas financeiras de forma sucessiva. Como não é de se surpreender, os efeitos maiores das bolhas recaem sobre a grande maioria da população, com perda de empregos, endividamento, falta de renda para sobreviver.

Há ainda uma complicação a nível de classe social se considerarmos juntas as duas consequências acima. Estratégias comerciais de aplicações financeiras milagrosas estão cada vez mais atingindo a classe média, sedenta por melhores ganhos financeiros, sem alternativa na renda fixa devidos as baixas taxas de juros, sem preparo técnico e emocional para investimentos (“dinheiro sai dos impacientes para os pacientes”, como diria Warren Buffet) e tendo que competir com a enormidade de robôs que hoje operam no mercado financeiro. Com as bolhas econômicas sucessivas, essas características podem ocasionar uma perda de poupança da classe média no mercado financeiro. Assim, esta provável perda de poupança da classe média mais propensa a risco somada aos fatores de flexibilização salarial para o home office (diminuição da renda média), e a Renda Básica, podem convergir a classe média e a classe pobre em uma única classe, intermediária entre elas, achatando a população para uma camada social unificada (agora de forma evidente) em que não irá faltar itens básicos de sobrevivência, mas será cada vez mais impedida a ascender para a classe superior – seja via tecnologias que estão substituindo empregos e alocando a classe trabalhadora para postos precarizados, seja via controle social com um autoritarismo digital que irá cercear manifestações populares.

As tendências autodestrutivas do sistema estão cada vez mais evidentes, mas a população está sendo induzida a não enxergar a verdade, ludibriada pela mídia, recebendo benefícios em doses homeopáticas toda vez que a indignação chega a estimular as massas a ir às ruas ou toda vez que uma grande crise aparece, e carente de lideranças, haja visto que é crescente o nacionalismo com interesses econômicos em meio a problemas globais. Permanecendo a essência do neoliberalismo, somada à evolução tecnológica do sistema financeiro e às rivalidades geopolíticas, os ciclos temporais das crises econômicas serão reduzidos, com novos solavancos na economia mundial sendo sucessivos e com cada vez maior impacto. Quem sabe na próxima crise a verdade apareça e instigue a população a questionar a essência do sistema. Nesta crise o Coronavírus apareceu como uma “cortina de fumaça” e a oportunidade se foi. Se haverá uma próxima oportunidade em breve? Obvio.

Referências

BREGMAN, R. Utopia para realistas. Rio de Janeiro: Sextante, 2018.

DUMÉNIL, G.; LÉVY, D. A crise do neoliberalismo. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

WRIGHT, E. O. Como ser anticapitalista no século XXI? 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

ROUBINI, N. “Is the next financial crisis already brewing?” Financial Times, 2018.

VAN PARIJS, P.; VANDERBORGHT, Y. Renda básica: uma proposta radical para uma sociedade livre e uma economia sã. São Paulo: Cortez, 2018.

HARARI, Y. N. Yuval “Noah Harari: the world after coronavirus“. Financial Times, 2020.

* Bacharel em Economia pela Univ. Federal de Uberlândia