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EDITORIAL

Quanto vale uma vida?

Editorial de 28 de abril de 2020

“Alguns vão morrer? Vão, ué, lamento, é a vida.”
Jair Bolsonaro

Na sociedade em que vivemos, a acumulação capitalista transforma tudo em mercadoria, coloca preço e vende. Nós, os 99%, para poder comprar tudo o que necessitamos para sobreviver, precisamos vender a única mercadoria de que dispomos efetivamente: nossa força de trabalho. Numa economia periférica e dependente, por maior que seja, como a brasileira, a força de trabalho é remunerada sistematicamente abaixo do mínimo necessário para uma sobrevivência digna. Ou seja, a superexploração a que o capitalismo nos submete nos consome – enquanto força de trabalho – com maior intensidade e velocidade. Não é por acaso que a expectativa média de vida no Brasil é menor que nas economias centrais e que a cada ano dezenas de milhares de pessoas sejam assassinadas no país, muitas delas pela própria polícia. Como os relatórios oficiais e de agências não governamentais demonstram ano após ano, a maioria dessas pessoas é jovem, negra (em proporção muito maior que a de negros e negras na população do país) e mora nas periferias e favelas das cidades. A vida da classe trabalhadora parece valer muito pouco por estas bandas.

Nas crises, essa característica se acentua. O saldo dos últimos cinco anos de recessão e estagnação econômica já podia ser medido nos mais de 12 milhões de desempregados e desempregadas registrados pelo IBGE no trimestre que se encerrou em fevereiro de 2020 (fora os quase 5 milhões de “desalentados”, que não procuraram emprego no último período). Ou pelo número de pobres, que em 2018 já era de 52,5 milhões de pessoas, 13,5 milhões entre elas vivendo na pobreza extrema. Tudo isso está piorando, e muito, com extrema velocidade, desde março passado, quando a crise econômica mundial, latente havia algum tempo, explodiu com a emergência da crise sanitária provocada pela pandemia do novo coronavírus.

No início da noite de 27 de abril, quando este texto foi escrito, os dados oficiais indicam que, no mundo, mais de três milhões de pessoas já foram diagnosticadas como infectados pelo sars cov 2 (nome técnico do vírus) e mais de 211 mil já haviam morrido em decorrência da covid19 (nome técnico da doença). A nação mais rica e poderosa do planeta lidera a lista de casos, com mais de um milhão de infectados diagnosticados e cerca de 56.500 mortes. Mas, a desigualdade inerente à lógica do capital lá se manifesta a olho nu. Os bairros e regiões mais pobres são os mais devastados pela doença, o que se manifesta, inclusive, através dos recortes raciais, que se entrelaçam à desigualdade social. Em Chicago, 70% dos mortos por covid19 até o início de abril eram negros e negras, embora representem apenas 29% do total da população da cidade. Em Michigan, a população negra representa 14,1% do total, mas somava 40% entre os mortos. Em Nova Iorque, cidade mais atingida pela doença até aqui, os bairros com maior número de mortes são justamente aqueles de maioria latina e negra.

No Brasil, a tragédia anunciada começa a se confirmar, infelizmente. O Ministério da Saúde anunciou no fim da tarde de 27 de abril um total de 66.501 casos confirmados de pessoas infectadas por coronavírus e 4.543 mortas. Também aqui a doença não atinge “democraticamente” a todos da mesma forma. Na cidade de São Paulo, por exemplo, na área “nobre” da subprefeitura do Butantã, 5% dos casos confirmados resultaram em morte. Na periférica região abrangida pela subprefeitura da Casa Verde, 36% dos diagnosticados faleceram.

Sabemos que esses números são apenas a ponta do iceberg da crise sanitária, cujas reais dimensões parece difícil dimensionar, dada a gigantesca subnotificação, reconhecida até mesmo pelas autoridades públicas. Alguns dados permitem ter uma vaga ideia do quão mais grave é a crise. O próprio Ministério da Saúde informa que na última semana, havia cerca de 11.000 pessoas hospitalizadas por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARG). No mesmo período do ano passado, havia menos de 2.000 internações por este motivo. Das cerca de 8.000 internações para as quais há informações, no mesmo período, 1.336 foram confirmadas como resultantes da covid19, apenas três como decorrentes de influenza A ou B e 34 por outros motivos. 6.714 entre essas pessoas internadas, tinham seus casos ainda em investigação. O Brasil está entre os países com menor taxa de realização de testes para diagnosticar a doença. A realização de testes em massa e a garantia de uma estrutura para processar esses testes é uma exigência central neste momento.

Outro indicador parcial das subnotificações é o número de mortos. O caso mais noticiado é o da cidade de Manaus, onde a média de enterros antes da pandemia era de 30 por dia. Na última semana essa média foi superior a 100 enterros/dia, alcançando 140 no domingo, 26 de abril. É um indicador parcial porque certamente entre essas pessoas enterradas havia mais que os 10 casos confirmados da doença, porém o aumento não significa apenas o crescimento das mortes por covid19, mas também o aumento de falecimentos por outras doenças, mortes que em muitos casos poderiam ser evitadas, se o sistema de saúde pública da cidade já não houvesse entrado em colapso.

O colapso da saúde pública

Desde março, quando governadores e prefeitos por todo o país iniciaram as medidas de isolamento social, com diferenças significativas de lugar para lugar, vínhamos sendo alertados pelos cientistas e pela maioria das autoridades da área de saúde, de que caso a doença se espalhasse muito rápido, a estrutura do Sistema Único de Saúde não daria conta de atender ao crescimento exponencial da demanda. Assim, filas de doentes em estado grave, aguardando leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) para serem transferidos, como já estamos vendo em vários estados, se somam a cada vez mais pessoas que morrem em casa ou aguardando o atendimento primário por diversos problemas de saúde, porque demoram a procurar o sistema, cientes de sua superlotação ou temerosos de contrair uma doença que não tem certeza de já possuir. Chegamos já ao ponto em que a Associação de Medicina Intensiva, que reúne os médicos que trabalham em UTI, publicou na semana passada um protocolo para orientar a escolha de quais pacientes devem ser encaminhados a leitos de UTI nas situações (como as que já vivemos) em que há mais vítimas necessitando muito desses leitos do que vagas disponíveis. Ou seja, já foram divulgadas as regras para escolher quem não terá chance de sobreviver porque faltam equipamentos.

Uma das maiores conquistas das lutas sociais da década de 1980, o Sistema Único de Saúde tem sido, como tantas outras conquistas daquela época, duramente atacado nos últimos tempos. Os cortes de gastos públicos, redundando em fechamento de leitos, unidades e programas; a terceirização da gestão de unidades de saúde; a desvalorização dos profissionais; o sucateamento, em suma, do sistema, já vem cobrando a fatura, agora muito elevada, em vidas humanas.

A disponibilidade de leitos de UTI, indispensáveis para pacientes mais graves da covid19, é um bom indicador desse desmonte do SUS. A OMS recomenda a disponibilidade de 1 a 3 leitos de UTI para cada 10.000 habitantes. No Brasil como um todo havia no início do ano cerca de 47.000 leitos desse tipo, o que significa 2,13 por 10 mil habitantes. Próximo ao recomendado, embora a demanda com a covid19 seja estimada em 2,4/10 mil. Porém, esses leitos estavam distribuídos meio a meio entre os setores público e privado. Acontece que 75% da população só tem acesso ao SUS, que no país como um todo apresenta 1,04 leitos de UTI por 10 mil habitantes, mas distribuídos desigualmente no território. Por exemplo, há 1,19/10 mil em São Paulo (pouco, como vemos) e apenas 0,33/10 mil no Amapá. Dezessete entre os 27 estados estão abaixo de 1 leito de UTI por 10 mil habitantes. Para piorar, 80% das regiões de saúde no Brasil não contavam com um leito sequer de UTI em março.

Por isso, é urgente e fundamental que todos os leitos de UTI do país estejam à disposição de toda a população, o que exige que os governantes organizem uma fila única, sob controle do SUS, para uso dos leitos públicos e privados.

Sabemos que a pandemia não passará rápido e que o déficit do sistema é estrutural, portanto, nos cabe também exigir que todas as estruturas de saúde que estão sendo montadas agora para atender emergencialmente a pandemia revertam em novos leitos permanentes no SUS, com garantia de elevação dos investimentos públicos no sistema. Centros de pesquisa científica que estão na linha de frente da pesquisa sobre a doença e formas de tratamento, como a FIOCRUZ e as Universidades Públicas, também precisam de ampliação das verbas públicas para desenvolver seu trabalho. Por isso, exige-se a revogação da Emenda Constitucional 95 que congelou os gastos públicos.

Outra questão fundamental é a garantia das condições de trabalho para o conjunto dos profissionais de saúde em todas as etapas do sistema, do atendimento primário às UTI. A falta de equipamentos de proteção individual (EPI), jornadas excessivas, exposição de profissionais dos grupos de risco e atrasos salariais são inadmissíveis. Seu resultado é a morte desses profissionais que estão lutando para salvar vidas. Apenas no Rio de Janeiro, o Sindicato dos Médicos denuncia que oito médicos já morreram e o órgão de classe dos profissionais de enfermagem informa que contabiliza 12 mortos. É preciso continuar pressionando os governos pela garantia de distribuição de EPI em quantidade e qualidade adequadas e o respeito as direitos trabalhistas e às condições de trabalho de profissionais de saúdeProfissionais de todas as atividades essenciais também devem ter direito a essas garantias.

Garantir as condições sociais para o isolamento e impedir uma catástrofe maior

Por fim, as pressões empresariais pela retomada da atividade econômica dos setores mais atingidos pelas medidas de isolamento social e a postura genocida do governo Bolsonaro, empurrando as pessoas para as ruas, têm resultado em uma diminuição progressiva do percentual daquelas que se mantém em casa. Em meio ao desastre social anunciado pela crise econômica e diante da necessidade de isolamento social para evitar a propagação acelerada da doença e o colapso do sistema de saúde, a burguesia brasileira age para manter o máximo de atividades abertas e para retirar ainda mais direitos da classe trabalhadora. Mesmo as insuficientes medidas sociais, como a extensão do seguro desemprego e o auxílio emergencial de R$600,00 por três meses aprovado pelo Congresso, estão sendo administrados de maneira perversamente burocrática pelo governo, de forma a ampliar o caos de aglomerações em filas nos escritórios da Receita Federal e nas agências da Caixa Econômica. As primeiras semanas do empresário do ramo da saúde Nelson Teich à frente do ministério confirmam que ele veio para garantir a linha de Bolsonaro e os interesses do capital.

O controle do ritmo de manifestação da doença exige mais, não menos, medidas de isolamento social, o que só pode ser garantido com a ampliação dos auxílios sociais emergenciais e o fim da burocracia para seu recebimento. Assim como com a revogação das medidas que retiram direitos de trabalhadores e trabalhadoras e o fechamento das atividades não essenciais pelo tempo que for necessário do ponto de vista sanitário.

A burguesia brasileira sempre tratou a força de trabalho como uma mercadoria descartável. Agora, tem a seu serviço um presidente neofascista como Bolsonaro, que manifesta o mais puro espírito genocida. Nada podemos esperar deles. Só a classe trabalhadora poderá defender um programa e construir uma frente capaz de derrotar Bolsonaro e sua pulsão de morte. Só ela avalia o quanto as vidas de cada um dos seus e cada uma das suas não têm preço e saberá lutar por todas elas.

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