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MUNDO

Quando os mercados de petróleo se tornaram virais

Adam Hanieh

Traduzido por Wilma Olmo

As dimensões ecológicas do COVID-19 tornaram-se cada vez mais proeminentes em muitas discussões recentes, com várias contribuições importantes explorando a pandemia em relação ao agronegócio capitalista, perda generalizada da biodiversidade e destruição de ecossistemas naturais. No entanto, há um elemento adicional na “ecologia” do COVID-19 que merece muito mais atenção: as maneiras pelas quais a pandemia crescente se cruza e está agindo simultaneamente para acelerar um choque profundo na indústria de combustíveis fósseis. Os mercados globais de petróleo estão passando por uma transformação sem precedentes como resultado desse choque, e, embora trajetórias de longo prazo permaneçam abertas, esse momento sem dúvida moldará a política do petróleo – e as perspectivas de mitigação da mudança climática – nas próximas décadas.

Com os países que representam mais de 90% do PIB global presos sob alguma forma de bloqueio e o fechamento simultâneo de grandes áreas de produção, transporte, indústria e varejo global – a demanda por petróleo e derivados caiu para mínimos históricos. De fato, foi estimado que a redução no uso de automóveis nos EUA levou a uma queda surpreendente de 5% na demanda global de petróleo – quase o mesmo que se toda a Europa, África e Oriente Médio parassem de andar de carros simultaneamente. O diretor executivo da Associação Internacional de Energia, Fatih Birol, estimou em 25 de março, que a demanda global de petróleo poderia cair cerca de 20 milhões de barris por dia, uma previsão que agora foi revisada para 30 milhões de barris por dia. Essa queda no uso mundial de energia é incomparável em velocidade e profundidade, superando todas as outras grandes crises do século passado – incluindo a Depressão de 1929 e a crise financeira global de 2008.

E assim como a demanda de energia está em queda livre, o suprimento mundial de petróleo parece aumentar significativamente após um anúncio no início de março de que a Rússia e a Arábia Saudita removeriam os limites dos níveis de produção de petróleo. Combinada com os efeitos da pandemia, essa ‘Guerra do Petróleo’ levou os preços globais do petróleo a mínimos de várias décadas e deixou os produtores correndo para encontrar espaço de armazenamento em terra e mar para o petróleo, em vez de vendê-lo com prejuízo. Com o armazenamento global se aproximando rapidamente da capacidade total, algumas empresas comercializadoras de petróleo estão pagando para que os seus óleos sejam retirados de suas instalações. Todos esses fatores levaram os analistas a prever um número recorde de falências entre as empresas de petróleo para 2020, uma possibilidade que pode pôr em risco uma série de importantes bancos e instituições financeiras de uma maneira que lembra 2008.

Mas o que esse choque extremo nos mercados de energia pode significar para o futuro da indústria de combustíveis fósseis e as possibilidades de acabar com a dependência do petróleo? Alguns comentaristas especularam que tudo isso poderia ser uma boa notícia no contexto da calamidade do COVID-19 – a pandemia poderia “matar a indústria do petróleo e ajudar a salvar o clima”, como uma manchete no jornal Guardian exclamou em 1º de abril , com o desaparecimento de muitos pequenos produtores de petróleo e o enfraquecimento de grandes petrolíferas, como Exxon Mobil, Royal Dutch Shell e BP, nos aproximando de uma transição para o desuso de combustíveis fósseis. No entanto, esses cenários otimistas tendem a abstrair-se das realidades de um capitalismo de catástrofe que está inexoravelmente ligado à extração e exploração de combustíveis fósseis e que tem profundamente incorporado o ‘Big Oil’ em todas as facetas de nossas vidas. Como todos os momentos de mudanças bruscas, o caminho final que tomaremos dessas múltiplas crises que se cruzam – uma queda nos preços do petróleo, uma forte crise econômica e uma pandemia de vírus – dependerá de nossas capacidades para construir alternativas políticas eficazes para o Capital Fóssil. Precisamos prestar muita atenção aos possíveis vencedores e perdedores que possam surgir a partir deste momento atual, e ser cautelosos em equiparar o colapso temporário (embora grave) de uma economia baseada no petróleo com o desaparecimento do próprio sistema.

Oriente Médio, Rússia e Petróleo dos EUA

Há uma longa e complexa história por trás da ascensão de um capitalismo global centrado no petróleo. Esta história abrange o deslocamento do carvão por petróleo e gás no início do século 20, a ascensão dos produtores de petróleo do Oriente Médio (liderados pela Arábia Saudita) durante o período pós-guerra, numerosas guerras e revoluções, enormes flutuações nos preços globais do petróleo nas décadas de 1970 e 1980, e grandes mudanças na estrutura da indústria global de petróleo. É importante ressaltar que essa história também está centralmente ligada à forma como as finanças globais se desenvolveram no período pós-guerra – um fato frequentemente omitido em narrativas que se concentram demais no petróleo como uma mercadoria física (commodity). Os fluxos dos chamados “petrodólares” foram essenciais para o surgimento de novos mercados financeiros (como os Euro mercados) a partir da década de 1960, a ascensão da dominância financeira anglo-americana e os padrões de dependência da dívida que continuam a marcar as relações entre os países do Norte e do Sul. Em suma, o petróleo passou a permear todos os aspectos do capitalismo global por volta do final do século XX.

A partir do início dos anos 2000, os preços mundiais do petróleo subiram de forma constante devido à crescente demanda global associada à ascensão da China. Os preços caíram acentuadamente em 2008 com a crise econômica global, mas logo retomaram sua trajetória ascendente e chegaram a um pico de cerca de US$ 114 / barril em meados de 2014. Esse foi um benefício financeiro para a maioria dos exportadores de petróleo do Oriente Médio (e trouxe grandes consequências para a dinâmica política de toda a região do Oriente Médio), mas o período prolongado de aumento de preços também beneficiou produtores marginais em outras partes do mundo. Mais significativamente, os investimentos no desenvolvimento dos chamados suprimentos “não convencionais” de petróleo e gás – reservas difíceis e significativamente mais caras de extrair do que os combustíveis fósseis convencionais – foram fortemente incentivados durante esse período prolongado de altos preços do petróleo.

De particular relevância aqui é o xisto dos EUA, o petróleo bruto mantido em xisto ou em arenito de baixa permeabilidade e que normalmente é extraído através da fratura da rocha por líquido pressurizado (daí o termo “perfuração”). Existem várias maneiras de calcular o custo de equilíbrio da produção de xisto, e esse número muda dependendo do campo petrolífero específico e dos custos predominantes de tecnologia, mão-de-obra, impostos e assim por diante – mas um número amplamente citado é que a maioria dos produtores de xisto dos EUA exigem um preço de US$ 45 ou mais para obter lucro. Por outro lado, o petróleo saudita tem um custo de produção em torno de US$ 4 por barril e o petróleo russo em torno de US$ 10/barril. Essas comparações precisam ser interpretadas com cuidado, pois a Arábia Saudita e a Rússia não são empresas e dependem muito das receitas de petróleo e gás para atender às suas necessidades orçamentárias – nesse sentido, o ‘preço de equilíbrio’ do petróleo para esses estados é muito mais alto e flutuam de acordo com os níveis de gastos do governo. No entanto, não há dúvida de que os preços consistentemente altos do petróleo durante a maior parte das duas primeiras décadas do novo milênio ajudaram a atrair grandes investimentos no desenvolvimento de campos de xisto e impulsionaram melhorias significativas nas tecnologias de extração para esses suprimentos não convencionais.

Obviamente, esse foi um desastre ecológico e social sem mitigação, que se apoiou fundamentalmente no desdobramento repetido da violência apoiada pelo Estado contra populações indígenas nos EUA (e no Canadá), a fim de abrir caminho para rotas de oleodutos e outras infraestruturas. Mas o resultado foi um crescimento impressionante na produção doméstica de petróleo nos EUA. Entre 2009 e 2014, a produção de óleo de xisto dos EUA triplicou, levando os Estados Unidos ao topo do ranking mundial de produtores de petróleo. Notavelmente, os EUA se tornaram um ‘exportador líquido’ de petróleo no início de 2011 e ultrapassaram a Arábia Saudita para se tornar o maior produtor mundial em 2013 – uma posição que manteve até hoje e muito distante das previsões de pânico de ‘dependência energética’ que havia marcado debates políticos nos EUA nos primeiros anos do novo milênio.

OPEP+ e a guerra de preços do petróleo em 2020

No entanto, o enorme aumento nos estoques mundiais de petróleo que resultou dessa produção adicional dos EUA – juntamente com uma moderação da demanda de energia chinesa, uma economia global em expansão e o movimento para um maior uso de fontes de energia renováveis – provocou um fim abrupto no período de altos preços globais do petróleo em meados de 2014. O preço do Brent caiu 70% até 2015, chegando a atingir cerca de US $ 30 / barril no início de 2016. Essa foi a maior queda nos preços do petróleo em três décadas. Com os EUA experimentando seu primeiro declínio na produção anual de petróleo desde 2008, muitas empresas menores e altamente alavancadas fracassaram – em 2015, a Administração de Informação Energética (EIA) estimou que as perdas combinadas dos principais produtores onshore (em terra) de capital aberto atingiram impressionantes e assombrosos US$ 67 bilhões.

Os produtores de petróleo dos EUA não foram os únicos atingidos pela trajetória de preços de 2014-2016. Todos os principais exportadores de petróleo enfrentaram crescentes déficits orçamentários e hemorragias em suas reservas – incluindo a Arábia Saudita, que queimava mais de um terço de suas reservas externas entre o pico do preço do petróleo em 2014 e o final de 2016. Diante dessas crescentes pressões fiscais, dois dos principais produtores de petróleo do mundo, Rússia e Arábia Saudita, tomaram medidas para fortalecer os preços globais do petróleo por meio de uma série de cortes coordenados na produção. Essa aliança de facto foi formalizada em um pacto mútuo, denominado OPEP+, que foi estabelecido entre a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e 11 países não membros da OPEP em dezembro de 2016. Até sua revelação no início de março deste ano, a OPEP+ provou ser bem-sucedida em manter o preço do petróleo dentro de uma faixa estreita de cerca de US$ 50 a US$ 80.

Para as empresas petrolíferas americanas – que não estavam vinculadas a nenhum desses acordos internacionais – a OPEP+ mostrou-se extremamente fortuita. Após a queda nos preços de 2015, houve uma onda de consolidações e falências na indústria petrolífera dos EUA, e a estabilização dos preços relativamente altos do petróleo serviu para revigorar a exploração e produção doméstica de petróleo. De fato, em janeiro de 2020, a produção diária de petróleo dos EUA chegaria a mais de 12,7 milhões de barris, um aumento de quase 45% desde dezembro de 2016 e menos de 5 milhões de barris / dia em 2008. Esses números demonstram claramente que, enquanto a maioria dos principais países produtores de petróleo do mundo procurava limitar seus níveis de produção alinhados com a OPEP+, as empresas de petróleo dos EUA ficaram essencialmente livres para aumentar seus níveis de produção sem impedimentos. Como Keith Johnson observou na Política Externa em 27 de março, “Nenhum país adicionou mais petróleo ao excesso global nos últimos anos do que os Estados Unidos – e, apesar da recente queda nos preços do petróleo, os produtores dos EUA ainda estão aumentando a produção“.

No entanto, em 6 de março deste ano, a aliança da OPEP+ foi rompida espetacularmente depois que a Rússia rejeitou uma chamada pela OPEP visando reduzir a produção global de petróleo em mais 1,5 milhão de barris / dia. A Rússia não apenas rejeitou a chamada da OPEP, mas também anunciou que não iria mais cumprir o acordo inicial de dezembro de 2016. Essa decisão provocou um rápido contra-ataque saudita realizado em 8 de março – um anúncio bombástico de que o Reino Saudita também não estava mais comprometido com os limites negociados de produção e procuraria aumentar seu suprimento de petróleo para 12,3 milhões de barris / dia em abril (acima dos 9,7 milhões de barris / dia em março) e, em seguida, aumentar sua capacidade de produção para 13 milhões de barris / dia o mais rápido possível. Com a perspectiva de vários milhões de barris adicionais de suprimento diário prestes a atingir os mercados mundiais de petróleo, o preço do petróleo Brent, principal referência internacional, caiu mais de 30% no espaço de 48 horas. As bolsas de valores globais também caíram, com o Dow Jones Industrial Average (Média Industrial) caindo um recorde de 2000 pontos em 9 de março, a maior perda diária de todos os tempos.

O gatilho preciso da decisão da Rússia e da Arábia Saudita de se afastarem da OPEP+ permanece obscuro. Alguns observadores especulam que a Rússia possa estar tentando retaliar as sanções americanas que foram impostas à maior companhia petrolífera russa, a Rosneft, em fevereiro. Outros afirmam que a decisão da Rússia precisa ser entendida no contexto de sua própria política interna, com Putin buscando cultivar apoio entre as elites russas estreitamente ligadas à indústria do petróleo e que há muito se opõem à OPEP+. Outros analistas descreveram as ações da Rússia e da Arábia Saudita como um “golpe de mestre da teoria dos jogos”, o que ambos os países estavam antecipando completamente antes dos anúncios de março.

Independentemente dos fatores conjunturais imediatos, o motivo estratégico de longo prazo por trás da decisão russa e saudita está claro. Por vários anos, os dois países viram os produtores de petróleo dos EUA, sem impedimentos por quaisquer limites à produção, continuarem a ganhar participação de mercado às suas custas. Ao ameaçar inundar o mundo com mais petróleo (e aqui, as ações da Arábia Saudita são particularmente decisivas, devido à sua capacidade única de aumentar rapidamente a capacidade de produção), o preço do petróleo cairia significativamente. A Arábia Saudita e a Rússia precisariam suportar o impacto dos baixos preços do petróleo por vários anos; Enquanto isso, os produtores americanos de alto custo seriam colocados contra a parede.

Uma guerra de preços do petróleo encontra a COVID-19

No entanto, nos dias que se seguiram a esse choque maciço de oferta nos mercados globais de petróleo, tornou-se rapidamente evidente que um golpe muito maior nos preços do petróleo estava se aproximando como resultado da expansão crescente do COVID-19 fora da China. Para os produtores de petróleo, o tsunami de destruição da demanda aumentou bastante os efeitos dos anúncios sauditas e russos e levou os preços do petróleo a níveis de um dígito. Em 29 de março, a cotação da commodity do tipo West Texas Intermediate (WTI), referência no mercado americano, havia caído mais de 60% desde o início do ano, caindo abaixo de US $ 20 / barril, seu nível mais baixo em 18 anos. O preço do petróleo Brent , preço de referência no mundo, caiu para US $ 23,03 / barril, o menor desde 2002. É importante ressaltar que esses preços de referência geralmente não refletem o preço real que um barril de petróleo custa no mercado físico – com empresas comercializadoras (traders) relatando alguns tipos de venda de petróleo por apenas US $ 8 / barril. Em meio a previsões de US $ 10 / barril, as empresas de petróleo começaram a reduzir seus gastos em novas explorações, construção de plataformas e gastos de capital.

Diante desses preços extremamente baixos, os produtores de petróleo têm se esforçado para armazenar seu petróleo na esperança de obter lucro quando os preços subirem em algum momento no futuro. O problema, no entanto, é que o espaço de armazenamento é muito limitado (principalmente em terra) e há custos técnicos e logísticos associados ao transporte de petróleo para onde possa ser guardado com segurança. Os analistas estimaram que cerca de três quartos da capacidade de armazenamento do mundo já é utilizada e que esses limites serão alcançados até o final de maio. Em meados de março, as principais empresas de oleodutos nos EUA estavam preocupadas com o fato de os produtores de petróleo tentar usar sua infraestrutura para armazenar petróleo em vez de transferi-lo para outro lugar, e assim começaram a insistir em um comprovante de recebimento final antes de aceitarem qualquer novo petróleo. E como é caro fechar ou interromper temporariamente os poços de petróleo (e os arrendamentos de terras às vezes contêm cláusulas que exigem produção contínua), as empresas de petróleo podem preferir doar seu produto a interromper o trabalho; de fato, em meados de março, as empresas comercializadoras estavam nos leilões fazendo lances pelo Wyoming Asphalt Sour (usado principalmente para produzir betume) a US$ 0,19 negativos por barril. Os preços negativos significam que os produtores estão pagando para que os seus óleos sejam retirados – algo que nunca aconteceu desde que os contratos futuros de petróleo começaram a ser negociados em 1983. Isso aconteceu porque os investidores começaram uma corrida para vender os contratos, porque ninguém quer receber a entrega física, já que a capacidade de armazenamento nos Estados Unidos está chegando ao limite. 

Tudo isso apresenta pressões enormes em toda a cadeia de valor do petróleo, desde produtores de petróleo bruto (empresas e países) até refino e indústria petroquímica. As falências firmes e o fechamento de poços de petróleo são quase certos nas semanas imediatas e provavelmente serão concentrados entre os produtores que dependem de preços relativamente altos do petróleo, por exemplo, Empresas americanas e canadenses ativas na produção de areias betuminosas e xisto. De fato, esse prognóstico foi confirmado na Pesquisa Mensal de Março do Federal Reserve de Dallas sobre Petróleo e Gás, onde os entrevistados da indústria comentaram que a perspectiva de “a indústria nacional de petróleo e gás nunca foi tão sombria” – essa foi “uma tempestade perfeita” e “o pior restabelecimento de preços de energia em toda uma vida”.

Petróleo e finanças

Mas o mapeamento das trajetórias potenciais desse acidente causado por uma pandemia requer um exame mais detalhado das ligações entre a indústria do petróleo e a economia em geral. Crucial aqui é a profunda interconexão entre empresas relacionadas à energia e mercado financeiro, mais evidente nos EUA, onde as empresas de energia se tornaram extremamente alavancadas nos últimos anos. Grande parte da emissão de dívida por essas empresas – não apenas produtores de petróleo bruto, mas também empresas de serviços dos campos de petróleo, refinarias e outras empresas de “atividades de refino”, tais como empresas de oleodutos – foram classificadas como empresas abaixo do grau de investimento. Surpreendentemente, as empresas de energia têm sido as maiores emissoras de títulos especulativos de alto risco (junk bonds) nos EUA durante 10 dos últimos 11 anos e agora compõem mais de 11% de todo o mercado de títulos especulativos de alto risco dos EUA. O problema é agravado pela quantidade muito significativa de dívida sem garantia (dívida que não é suportada por nenhuma garantia) das empresas de energia dos EUA; esse número superou os níveis de dívida garantida pela primeira vez em 2016, atingindo US$ 70 bilhões em dezembro de 2019, acima dos meros US$ 1 bilhão em 2015.

Com a enorme queda da demanda na esteira do COVID-19 – amplificada pela decisão Rússia/Arábia Saudita de aumentar os níveis de produção – muitas empresas relacionadas à energia enfrentam um iminente rebaixamento de suas classificações financeiras. O UBS Group estimou em 16 de março que até US $ 140 bilhões em títulos emitidos por empresas de energia dos EUA correm o risco de se tornarem ‘fallen angels’ (‘anjos caídos’)1 – ou seja, o risco de perderem seu status de grau de investimento. Como essa dívida é rebaixada para o território títulos especulativos de alto risco (junk bonds), o aumento da oferta agirá para baixar os preços dos títulos e, ao mesmo tempo, aumentar seus rendimentos (os juros pagos pelo título, que se movem inversamente ao preço no caso de títulos). Uma possível consequência é uma crise de liquidez, na qual as empresas de energia não apenas enfrente grande dificuldade em encontrar compradores para suas dívidas – uma questão crítica, pois muitos devem renegociar suas dívidas ao longo de 2020 – mas também são obrigadas a pagar taxas de juros muito mais altas por seus títulos.

O resultado líquido, sem dúvida, será um aumento acentuado de falências entre essas empresas de energia dos EUA entre 2020 e 2021. De fato, a primeira dessas vítimas ocorreu em 1º de abril com a apresentação do “Chapter 11” (Capítulo 11)2 pela Whiting Petroluem, a maior empresa de petróleo independente em Dakota do Norte. (o segundo maior estado produtor de petróleo dos EUA). Whiting possuía mais de US$ 2,8 bilhões em dívidas em seus livros contábeis, mas apenas alguns dias antes do depósito do “Chapter 11” (Capítulo 11), seus executivos seniores concederam a si próprios US$ 14,6 milhões em bônus, com o CEO da empresa saindo com um pagamento imediato de US $ 6,4 milhões – muito mais afortunados do que um terço da força de trabalho da empresa que havia sido demitida em julho passado. Whiting é quase certamente a primeira de uma nova onda de falências de empresas de energia; de fato, a Rystad Energy estimou em 3 de abril que, se o petróleo continuar em torno de US$ 20 / barril, mais de 500 empresas terão que receber suporte via “Chapter 11” entre 2020 e 2121, o maior número dessas solicitações de suporte na história moderna.

Tais padrões podem desestabilizar seriamente outras partes do sistema financeiro. Fundos de pensão, seguradoras, bancos e outras instituições financeiras mantêm grandes quantidades de dívida de energia e podem ser colocados em risco caso aconteça uma grande onda de inadimplência corporativa – os bancos regionais menores dos EUA, em particular, estão fortemente expostos ao setor de petróleo e gás. Nos últimos anos, também foi observada a prática generalizada de securitizar empréstimos corporativos altamente alavancados – ou seja, o agrupamento de um grande número de empréstimos corporativos de risco que são vendidos como títulos conhecidos como Obrigações de Empréstimos Garantidos (CLOs). Embora seja difícil desagregar os CLOs por setor ou determinar com precisão quem os detém, uma onda de inadimplência entre as empresas de petróleo e gás poderia afetar em um efeito cascata os mercados financeiros da mesma maneira que ocorreu com os títulos lastreados em hipotecas em 2008. Tais interdependências com os mercados financeiros obviamente não são exclusivas da indústria de combustíveis fósseis. No entanto, esse setor se destaca de maneira particularmente acentuada entre as possíveis minas terrestres espalhadas pelos mercados financeiros atualmente. Níveis muito altos de dívida não garantida, predominância de categorias de junk bonds e dívidas em aberto e o choque extremo apresentado pela queda nos preços do petróleo – tudo isso combina para tornar esse setor um candidato provável à propagação de estresse financeiro severo em outras partes da economia global (muito parecido com o setor imobiliário em 2008-2009).

Vencedores, perdedores… e o clima

É certo que todas as partes da indústria de combustíveis fósseis enfrentarão uma grave crise durante o restante deste ano e até 2021 – mas o que isso pode significar para o nosso futuro ecológico? Infelizmente – a menos que o capital fóssil possa ser efetivamente desafiado agora – um cenário provável é que uma onda significativa de falências no setor de energia acelere realmente a centralização adicional do controle pelas maiores empresas de petróleo. A “Big Oil” – Exxon, Shell, BP e um punhado de outros – está muito mais bem posicionado para sobreviver a esta crise do que outros pequenos produtores. Elas tendem a ser empresas verticalmente integradas, ou seja, são ativas em toda a cadeia de valor de energia, incluindo refino, e, portanto, terão algumas de suas perdas na produção de petróleo compensadas pelo menor custo de insumos para suas operações a jusante. Como empresas verdadeiramente globais, elas têm reservas e ativos distribuídos em todo o mundo, não apenas nos campos de xisto de custo mais alto dos EUA.

Financeiramente, essas empresas também tendem a ter riqueza ou recursos financeiros extensos e suas perspectivas estão profundamente entrelaçadas com mercados financeiros mais amplos (incluindo fundos de pensão) – no Reino Unido, por exemplo, a BP e a Shell representam um notável 1/5 de todos os dividendos da FTSE.

Esse cenário é precisamente o que as principais empresas financeiras esperam ver desdobrado nos próximos 12 a 18 meses. O Goldman Sachs, por exemplo, observou recentemente que, embora a crise atual indubitavelmente “mude o jogo para o setor”, o resultado provável é que “as grandes “Big Oils” consolidarão os melhores ativos do setor e eliminarão os piores … quando o setor emergir dessa crise, haverá menos empresas com maior qualidade de ativos ”. As disputas entre indústrias sobre o apoio do Estado à enferma indústria de xisto nos EUA também refletem esse possível resultado. Aqui, como Justin Mikulka documenta meticulosamente, grandes empresas de petróleo como a Exxon tentaram acelerar o colapso de produtores menores e se opuseram vigorosamente a qualquer apoio estatal à indústria de xisto. Mikulka cita o CEO de uma empresa de xisto, a Pioneer Natural Resources, que disse à CNBC que os esforços para envolver o governo Trump em apoio aos produtores de xisto não estavam indo bem, porque “Tivemos a oposição da Exxon, que controla a API [American Petroleum Institute] e a TXOGA [Texas Oil and Gas Association] … eles preferem que todos os independentes se declarem em falência para que eles possam recolher as sobras”.

Por esse motivo, o momento atual representa um perigo real para as campanhas de justiça climática. Nos EUA, por exemplo, o governo Trump concordou em afrouxar os regulamentos ambientais para usinas de energia, fábricas e outras instalações industriais – essencialmente permitindo que esses poluidores ‘auto monitorem’ seus próprios níveis de poluição, de acordo com um relatório recente no New York Times. Essa nova política foi lançada pela Agência de Proteção Ambiental como parte do enfrentamento da crise do COVID-19, mas também foi uma das principais demandas levantadas pelo American Petroleum Institute em uma carta enviada por esses lobistas do Big Oil à Administração Trump em 20 de março. Não é apenas a indústria de combustíveis fósseis que está tentando usar essa crise para reverter as regulamentações ambientais, grandes bancos e empresas financeiras estão pressionando da mesma forma a relaxar os requisitos de relatórios de mudanças climáticas e a adiar os ‘testes de estresse’ das mudanças climáticas.

Um cenário que vê o enfraquecimento das regulamentações ambientais (já inadequadas) e uma onda de consolidação da indústria em última análise, coloca a Big Oil em uma posição mais forte para capitalizar em um mundo pós-viral. Embora os preços do petróleo estejam hoje em níveis historicamente baixos, eles não permanecerão lá no longo prazo. Uma das consequências críticas da vasta destruição de hoje na demanda por petróleo é que a maioria das principais empresas de petróleo está anunciando cortes selvagens em seus gastos de capital (CAPEX) na exploração e desenvolvimento de projetos. Para as principais empresas de petróleo, esses cortes iniciais foram em média de 20% nas últimas semanas; eles são ainda mais altos no setor de xisto, onde um consultor de energia espera uma queda de 40% nos gastos em 2020. É preciso tempo e despesa consideráveis para reiniciar ou colocar a nova produção de petróleo on-line depois que os projetos são interrompidos ou os poços de petróleo são fechados e, por esse motivo, os efeitos dos cortes de hoje no CAPEX serão sentidos nas restrições de fornecimento por algum tempo no futuro. Isso cria uma forte possibilidade de uma acentuada recuperação nos preços à medida que emergimos dessa crise – um resultado que incentivará uma onda renovada de investimentos e expansão em combustíveis fósseis em todo o mundo (como aconteceu na história recente da produção de xisto nos EUA).

Como isso pode ser refletido para além dos EUA e das fortunas das grandes empresas de petróleo globalmente diversificadas? Aqui também precisamos diferenciar entre os estados produtores de petróleo mais poderosos e outros exportadores de petróleo mais pobres. Não há dúvida de que países como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e outros estados do Golfo certamente sofrerão déficits crescentes e maior pressão sobre os gastos do governo em um período prolongado de baixos preços do petróleo. Esses estados, no entanto, têm níveis relativamente baixos de dívida existente e podem tomar empréstimos com um preço bastante baixo nos mercados internacionais. A estrutura de classes sociais particular do Golfo – uma dependência esmagadora de trabalhadores migrantes temporários que compõem mais de 50% da força de trabalho do Golfo – também significa que qualquer forte contração econômica pode ser parcialmente deslocada através do simples envio de trabalhadores migrantes para casa (como aconteceu em Dubai no pós-crise de 2008). De fato, assim como o possível fortalecimento da ‘Big Oil’ durante essa crise, os estados do Golfo poderiam ver sua posição ainda mais consolidada se os ativos nos países vizinhos se tornassem mais baratos e disponíveis em um mundo pós-viral. Um mercado importante aqui é a Índia, onde as empresas sediadas no Golfo continuam a fazer incursões significativas na expectativa de um boom na demanda futura de energia. Também é importante destacar a inserção estratégica do Golfo nas redes comerciais e financeiras conectadas à China. O petróleo e a petroquímica permanecem essenciais para essas conexões, e trabalhar em projetos-chave nesses setores continua ao longo da crise atual (como a refinaria de Ruwais, em Abu Dhabi, que será a maior planta integrada de refinaria e petroquímica do mundo na conclusão).

Outros exportadores de petróleo mais pobres enfrentarão problemas muito mais sérios como resultado da atual queda nos preços do petróleo. Entre eles, Equador, Venezuela e Irã – os dois últimos também com violentas sanções impostas pelos EUA. Estados como a Nigéria – que dependem do petróleo para 57% da receita do governo e mais de 90% das receitas em divisas – encontrarão enormes dificuldades em atender às demandas orçamentárias, um problema que terá consequências mortais no meio da atual pandemia. Da mesma forma, no Iraque, onde as exportações de petróleo representam 90% das receitas do governo e uma grande proporção da população depende do setor público para os salários ou pensões, é difícil ver como será abordado o déficit esperado de financiamento. Os problemas que esses países enfrentam, no entanto, não devem ser atribuídos aos baixos preços do petróleo; em vez disso, os legados duradouros do colonialismo, a destruição causada pelas guerras e ocupações lideradas pelo Ocidente e as relações de dívida e dependência que vinculam esses países aos centros da economia global precisam ser colocadas à frente e antecipadamente para combater essa pandemia. A Nigéria, por exemplo, pode depender do petróleo para uma grande proporção das receitas do governo – mas mais da metade dessas receitas é gasta simplesmente no serviço da dívida externa existente. Qualquer tentativa de ir além da dependência de combustíveis fósseis em nível global deve desafiar essa mistura combustível de petróleo, dívida e finanças.

No momento em que escrevo, fala-se em um possível acordo entre os EUA, Arábia Saudita e Rússia sobre os níveis de produção de petróleo. É improvável que esse acordo tenha um efeito sustentado no preço do petróleo, dada a vasta destruição da demanda que ocorreu nas últimas semanas. Alguns observadores notaram a ironia de ver os principais Republicanos que pediram o desmantelamento da Opep por causa de seu comportamento de cartel, agora exigindo maior conluio de mercado com a Arábia Saudita e a Rússia a respeito dos preços. Certamente não há dúvida de que as crises que se reforçam mutuamente da pandemia de COVID-19 e da crise econômica global estão de fato provocando toda uma gama de realinhamentos políticos inesperados, parceiros peculiares, estranhos e improváveis bem como novas aberturas para mudanças políticas. Mas esse momento também é aquele em que os acordos previamente existentes podem ser refeitos e consolidados de acordo com os interesses dos mais poderosos – enfrentamos o perigo muito real de uma indústria petrolífera encorajada e ressurgente, posicionada cada vez mais centralmente em nossos sistemas políticos e econômicos. Tal eventualidade seria um resultado desastroso para esta pandemia atual.

Adam Hanieh é professor no Departamento de Estudos de Desenvolvimento na SOAS – Escola de Estudos Orientais e Africanos, Universidade de Londres. Muito obrigado a Jeffrey R. Webber pelas sugestões úteis sobre este artigo.

Publicado originalmente em http://links.org.au/when-oil-markets-go-viral

1 Uma empresa do tipo ‘fallen angel’ (anjo caído), no mundo dos investimentos, é um título que recebeu inicialmente uma classificação de grau de investimento, mas que foi reduzido ao status de títulos especulativos de alto risco (junk bonds’). O rebaixamento é causado por uma deterioração da condição financeira do emissor. https://www.investopedia.com/terms/f/fallenangel.asp

2 “Chapter 11” –uma parte da lei nos EUA que trata de falências que protege as empresas de seus credores (= as pessoas a quem elas devem dinheiro), permitindo que tais companhias tenham tempo extra para melhorar seus negócios antes de terem que pagar suas dívidas https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/chapter-11