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BRASIL

Os fantasmas de 1964 ainda estão à espreita

Matheus Ribeiro, de Belém, PA
Agência Brasil

O coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra , que comandou o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna do 2º Exército em São Paulo (DOI-Codi-SP), entre 1970 e 1974, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade.

Sob o pretexto de ameaça comunista e em nome da segurança nacional, há mais ou menos 56 anos atrás, tinha início o golpe de estado que iria depor o presidente João Goulart (Jango), o qual havia sido democraticamente eleito. Assim teria início o tão temido regime militar, período mais sombrio da história brasileira.

Apesar do cenário político conturbado e da forte oposição ao seu governo, João Goulart conseguiu chegar ao poder em 1961. Durante esse período em que governou o Brasil tentou minimamente manter uma agenda progressista e realizar medidas que favoreciam a população como um todo. Sendo eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), partido fundado por Getúlio Vargas, a política de Jango era voltada principalmente para a implementação de políticas que atendessem as necessidades da classe trabalhadora, sendo o Estado seu principal agente de promoção. Com a tentativa de colocar em pratica as chamadas reformas de base, conjunto de reformas nas áreas tributária, agraria, educacional, urbana, bancária e eleitoral, só fez crescer ainda mais sua impopularidade diante das velhas elites brasileiras, da oposição e do imperialismo norte-americano.

Assim, somado com o medo sem fundamento de uma ameaça comunista traduzida na figura de Goulart e amplificada pela então oposição ao governo, além do apoio de uma parte da população civil nas grandes Marchas da Família com Deus pela Liberdade, passeatas que reuniam milhões e que tinham caráter conservador e anticomunistas de grupos que se colocavam contra as reformas de base que estavam em execução no país, constituíram os fatores que deram base para a realização do golpe de 1964 tendo como protagonista os militares.

Através de atos institucionais, inflou-se os poderes do executivo, ocupado a partir dali e sucessivamente por militares, inaugurando, dessa forma, o regime de exceção que, posteriormente, vai dar margem para perseguições políticas, fechamento do congresso nacional, capacidade de legislar do poder executivo, além de aval para torturar, exilar e matar sem pudores opositores ou quem ousasse questioná-lo. Esse regime de horror se permearia até 1985 depois de anos de crimes e abusos cometidos sob o comando de uma instituição que deveria zelar pela ordem, mas que instaurou o caos.

Vimos na última semana, a realização de passeatas de caráter antidemocrático por todo o Brasil com a participação do presidente Jair Bolsonaro. Em frente aos quartéis generais, apoiadores e simpatizantes clamavam aos gritos de “intervenção militar com Bolsonaro no poder” e “AI-5”, o retorno ao regime de medo que foi o período da ditadura militar. Semelhante às marchas realizadas em 1964, o fantasma da ditadura encontra, mais uma vez, uma permissividade inconsequente em uma parcela da população civil, que, dotada de um conservadorismo e sem o mínimo de constrangimento, faz apologia a um regime sanguinário que perseguiu, torturou e matou sem acanhamento nenhum todos que discordavam dele.

Além disso, menos de cinco dias depois, temos uma declaração estapafúrdia do ministro das relações exteriores, que afirma que a pandemia mundial a qual estamos passando, que já matou milhares de pessoas e que só tende a agravar o cenário, seria uma tentativa de implementação de um plano comunista, denominado “comunavírus”, que se personificaria na figura da Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo ele, a OMS e outras organizações internacionais são responsáveis por difundir e tentar implementar o comunismo através do ideal de solidariedade, que seria um ideal comunista planetário.

O comentário seria cômico se não fosse trágico, pois, apesar de ser um conto distópico sem pé e nem cabeça e do ministro claramente não entender o papel desses organismos internacionais no jogo imperialista mundial, pode constituir perigos reais a nossa já frágil democracia. O tweet do ministro pode se caracterizar em uma tentativa de ressuscitar velhas narrativas a serviço de um golpismo que a cada dia mostra mais e mais as suas garras.

Não podemos ignorar ainda o fato de o governo Bolsonaro ter suas vagas de ministérios preenchidos em grande parte por militares da ativa e da reserva, figuras que se dividem ocupando cargos estratégicos e ministeriais no governo, mostrando a influência e possível abertura que esse setor possui no cenário político brasileiro.

Sob a conivência do presidente da república e o aval, mesmo que não proposital mas pelo silêncio das instituições democráticas que estão sendo atacadas e de um setor conservador da população civil que olha para esses tempos de terror com um saudosismo sádico, a escalada golpista faz a sua jogada e lança as cartas na mesa.

Caso não tenhamos cuidado redobrado e não nos mantenhamos vigilantes nos próximos passos, corremos sérios riscos de deixar fantasmas de um tempo passado, que deveriam estar mortos e enterrados no fundo da história brasileira, voltarem à tona com toda a força. Os fantasmas de 1964 ainda estão à espreita, e se nós não estivermos atentos, a história vai se repetir não só como farsa, mas também como tragédia.