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BRASIL

O colapso do sistema de saúde no Brasil: o caso do Rio de Janeiro

Resistência/PSOL Rio de Janeiro (RJ)
Antonio Rezende/PMRJ/Fotos Publicas

Profissionais de saúde do Hospital Municipal Ronaldo Gazolla são testados para o Covid-19, no dia 07 de abril. Tarde demais para a servidora que faleceu, no dia 16.

No dia 16 de abril, Anita de Sousa Viana, técnica de enfermagem do Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, faleceu com sintomas do novo coronavírus. A unidade é referência no tratamento de pacientes com a doença. A trabalhadora, entretanto, não conseguiu realizar o exame para detectar o Covid-19, e tampouco teve à sua disposição um leito para internação no local. A sua morte é uma das tantas que se avolumam em casos não resolvidos e sem a devida assistência, cenário que aterroriza profissionais de saúde de todo o país. Poucos dias depois, uma minoria barulhenta de bolsonaristas realizou protestos pelo fim das políticas de isolamento social, com peso significativo em cidades como Rio de Janeiro e Niterói. Em meio a defesas de intervenção militar, a demanda de retomar as atividades parece um delírio em uma situação que se agrava, e no qual os serviços de saúde em diversos estados se aproximam do esgotamento. 

Como se reafirma a cada dia, a única saída para lidar com a pandemia no Brasil passa pela valorização do SUS. O vírus evidencia um fato que é muito anterior ao seu surgimento: sem uma saúde pública, universal, gratuita e de qualidade, a morte da população é uma escolha política. Nesse sentido, é bastante relevante que o país com mais falecimentos por Covid-19, os Estados Unidos, é justamente uma nação com a marca da saúde privada e o acesso ao serviço a preços elevados. A lógica empresarial na saúde é assassina, e o momento atual nos coloca diante do seu aprofundamento. 

Assim, é importante considerar que o SUS é uma conquista de históricas lutas sociais, mas existe uma guerra que permeia o período recente de tentativas sistemáticas de sucateamento e ameaças à universalidade e gratuidade do serviço. A Lei de Responsabilidade Fiscal, sancionada por FHC em maio de 2000, foi um duro golpe de estrangulamento financeiro ao sistema. Anos depois, em 2016, o governo Michel Temer adotou uma medida brutal: a aprovação da Emenda Constitucional 95, congelando os gastos públicos por 20 anos em saúde e educação. Estima-se que entre 2017 e 2020 a lei resultou na retirada de R$ 22,5 bilhões de serviços sociais. A legislação foi uma das contas sangrentas cobradas pelas elites nacionais ao governo empossado graças a um golpe jurídico-parlamentar. 

Vale lembrar que o ex-Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM) na época era deputado federal e votou favorável ao projeto, bem como se manteve em ferrenha oposição ao Programa Mais Médicos. Rodrigo Maia (DEM) na época já ocupava a presidência da Câmara Federal e foi um ativo defensor da iniciativa. Em nota pública do dia 08 de outubro de 2016, o parlamentar afirmou sobre a PEC do Teto de Gastos: “Entendemos que a proposta traduz condição indispensável para a retomada de uma trajetória de crescimento sustentável da economia brasileira, bem como para o estabelecimento de padrões de gestão responsável da dívida pública”.

A crise do coronavírus se desenvolve em uma situação, portanto, de intensificação da precarização da saúde pública no país. A isso se soma a crescente terceirização dos serviços. No caso do Rio de Janeiro existe um grande déficit de profissionais nos hospitais federais, e 4.200 funcionários no estado terão seus contratos encerrados em maio deste ano. O governo ainda não indicou como vai lidar com essa situação em meio à pandemia, ampliando a incerteza de todas e todos que necessitam dos serviços de saúde. 

Além dos problemas gerais, existe um risco de contaminação por esses profissionais que é extremo, com a estimativa de quase dois mil já infectados no estado ou aguardando testes. Segundo o Conselho Federal de Enfermagem, no país já são 30 mortes de profissionais de enfermagem pelo vírus e 4.000 afastamentos com suspeitas, dos quais 552 confirmados e os demais aguardando resultados. No Rio, o drama de Anita de Sousa Viana, que deixou o marido e três filhos, retrata um risco com o qual a maioria dos trabalhadores está lidando em seu cotidiano. 

Os poucos exames disponíveis são direcionados prioritariamente aos médicos, reforçando a desigualdade entre os profissionais da saúde e constituindo um elemento de tensão cotidiana. É importante observar como esse privilégio perpassa uma desigualdade de gênero, sendo o campo da saúde majoritariamente feminino, com maior predominância justamente nos serviços considerados socialmente desvalorizados com relação aos médicos. O racismo institucional também baseia esse privilégio, com a categoria médica apresentando um notável embranquecimento com relação ao conjunto dos trabalhadores da saúde. No entanto, todas as funções do serviço são fundamentais para sua a qualidade e não deveria haver diferenças no tratamento desses trabalhadores.

Dessa forma, existe um quadro de adoecimento também mental da categoria, que coloca sua vida em risco diariamente. As chefias, no lugar de acolherem as suas demandas, têm intensificado o assédio moral. A pressão para a presença de profissionais do grupo de risco na linha de frente dos atendimentos é um desses casos. Ademais, não existem EPI´s (Equipamento de Proteção Individual) para todos os trabalhadores e não foi realizado o devido treinamento para o uso dos instrumentos. Muitos profissionais, com medo de infectar suas famílias, têm dormido fora de suas casas. A hipótese de desistir do trabalho em prol de sua sobrevivência e dos familiares está se tornando uma escolha cada vez mais latente. 

Um outro aspecto grave é a tentativa de lucro diante do caos social. O capital da saúde está preparando suas unidades para os infectados e faz lobby com os agentes do poder público para que o acesso às suas luxuosas instalações siga sendo um privilégio de poucos. Isso em uma realidade na qual o esgotamento de leitos se aproxima dia a dia. Ora, se não existirem mais leitos com respiradores para a população, a ideia de um serviço privado possuir essa estrutura e negá-la a quem precisa é obscena. Afinal, estamos em uma realidade na qual Crivella já estuda a expansão do serviço funerário na capital do estado, diante das estimativas de mortes. 

Apesar da tendência ao colapso na saúde, a situação ainda não está perdida. Entretanto, para conseguir lidar com o quadro de forma racional e justa é necessária uma mudança de eixo dos governos. Ações como as fraudes cujas suspeitas se acumulam na contratação dos hospitais de campanha por Witzel vão, portanto, no sentido contrário do interesse público. Por isso repetimos: a vida deve estar acima do lucro, sob risco de aprofundarmos a lógica genocida e racista que nos governa em todos os níveis. A continuidade das operações policiais nas favelas, “atirando na cabecinha”, é uma das maiores demonstrações de que para as elites algumas vidas devem ser preservadas, enquanto outras podem ser sacrificadas. No mesmo sentido, a revogação por Bolsonaro da portaria que tratava do rastreamento e identificação de armas também se revela como uma política de morte, tendo a milícia como um de seus maiores beneficiários. 

Assim, medidas como a garantia da renda básica e sua ampliação são essenciais para garantir o isolamento, mas insuficientes para lidarmos com a crise da saúde. É necessários EPI´s para os profissionais, com garantia estatal da sua aquisição, com uso e descarte dos materiais e manuseio do paciente dentro da lógica do fluxo planejado para cada unidade; o respeito das chefias aos seus trabalhadores; a realização dos testes. O decreto de Crivella para obrigação do uso de máscaras vale muito pouco se não avançarmos nessas garantias. Além disso, é fundamental o tratamento pelo direito ao isolamento, e não pela punição seletiva do Estado, sendo necessária a distribuição de materiais adequados para a população. E as máscaras, apesar de auxiliarem, não garantem a contenção total do vírus, não podendo ser um degrau para o fim das políticas de isolamento justamente no momento de crescimento das mortes. O respeito de direitos sociais mais amplos também se entrelaça com o alcance do serviço, como o fornecimento gratuito de internet nas favelas e periferias para facilitar o acompanhamento dos seus moradores pelos profissionais. A garantia da distribuição de água e saneamento é também fundamental, havendo falta de água recorrente nas favelas e até mesmo em unidades de saúde, como no Hospital de Acari. Por fim, é urgente a ampliação de testes gratuitos para além das categorias especializadas, sendo essa uma chave fundamental para o combate à disseminação do vírus. 

A situação dos profissionais da saúde não se trata de uma luta corporativa. Mais do que nunca, a segurança desses trabalhadores e trabalhadoras é um problema de todos. Afinal, se as suas condições de trabalho se tornarem insuportáveis, não apenas eles próprios estarão covardemente lançados à própria sorte, senão o conjunto dos usuários das unidades de saúde serão afetados. Além disso, a falta de EPI´s e garantias faz com que se tornem disseminadores da doença em potencial, ao se contaminarem cuidando dos casos graves de covid-19. A régua das vidas a serem preservadas não pode se basear nos privilégios de uma minoria: a luta pela saúde pública é de todos e todas nós!