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BRASIL

HTPC como lugar de formação continuada dos professores

Grupo de Estudos de Práticas Docentes - GPED
Wilson Dias/Agência Brasil

O presente artigo consiste na primeira publicação do GEPD – Grupo de Estudos das Práticas Docentes, em que se optou por desenvolver a temática da Formação de Professores, primeiramente em função de ser o tema sobre o qual o grupo possui debates acumulados, além de tratar-se da atuação prática e cotidiana de alguns membros desse coletivo no interior da escola pública.

Aqui, pretendemos discutir o processo de formação continuada dos professores, em especial nas HTPC’s – Horas de Trabalho Coletivo Pedagógico, apresentando um breve panorama histórico, a fim de justificar as reformas educacionais da década de 1990 e como essas compreendem a formação continuada para professores. Neste percurso, tentaremos analisar o papel das HTPC’s, que ainda que tenham sido pauta de reivindicação da categoria de professores, quando foram apropriadas pelo Estado, se transformaram num espaço de negação da formação coletiva. E, por fim, apresentar uma experiência/situação concreta de superação dessas contradições, que afirma as HTPC’s como lugar de formação continuada dos professores.

1. Panorama Histórico

Tentaremos brevemente contextualizar a política educacional brasileira, a fim de compreender as reformas neoliberais da década de 1990 e seus impactos na formação dos professores, em especial a chamada formação continuada, os limites e algumas possibilidades desta ocorrer nas HTPC’s.

Durante mais de três séculos, o Brasil manteve relações de dependência política-econômica com a metrópole portuguesa. A emancipação política coincidiu com o endividamento em relação à Inglaterra para haver o reconhecimento do fato. A partir daí seguiu-se uma dependência econômica dos países centrais que jamais foi superada. Do ponto de vista das políticas públicas para a educação, a história da dependência e subordinação não se mostrou diferente. As políticas educacionais no Brasil sempre estiveram voltadas a atender, em primeiro plano, orientações da política econômica elencadas pelos governos dos países com os quais mantínhamos relações de dependências.

Mais recentemente, a década de 90 do último século configurou-se um período de significativas mudanças nas políticas educacionais brasileiras, cujos desdobramentos hoje são bastante visíveis. Entre eles, o sucateamento da escola pública, a queda da qualidade na educação escolar, a desvalorização dos profissionais de educação com o esvaziamento de sentido da própria prática docente e falta de perspectivas do educando com a escola.

Tais mudanças estão profundamente alinhavadas com a reestruturação produtiva do modelo em que vivemos e que se iniciaram com a crise econômica mundial dos anos 1970, agravada pela crise do petróleo de 1973, acompanhada pela crise do modelo taylorista/fordista.  O mundo capitalista avançado entrou em uma profunda recessão. Esta crise expressou a crise estrutural do capital, decorrente do fenômeno a ele inerente, de contínuo decréscimo da taxa de lucro. [1]

Segundo Sousa (2006), do ponto de vista capitalista, houve a necessidade de revisão dos postulados do modelo keynesiano; não mais se aceitava o “intervencionismo” estatal e, ao contrário, o interpretavam como sendo um impedimento para pôr fim aos problemas da economia capitalista, propondo uma reorganização do capital e de seu sistema político e ideológico de dominação: o neoliberalismo.

No setor produtivo, o modelo toyotista ganhou destaque e o avanço tecnológico produzido adotou a flexibilidade, a autonomia, a polivalência e a competitividade como condições esperadas do trabalhador.

Nos EUA, com a vitória de Reagan (1981 a 1989) e na Inglaterra com a vitória de Thatcher (1987 a 1990), a política neoliberal atingiu o seu apogeu e sua receita passou a ser aplicada em diversos países com maior ou menor proximidade à receita ortodoxa. A ideologia neoliberal precisou intervir além das esferas econômico-social e política, ou seja, não apenas ater-se à reestruturação destas esferas, mas elaborar e definir as representações e o significado social.

1.2. As Reformas Educacionais

O papel da educação na América Latina e no Brasil foi um dos pontos de sustentação para a implementação de tais “reformas estruturais modernizantes” e nesse sentido compreender a “necessidade” da reforma no campo educacional impulsionada pelas reformas econômicas, políticas e sociais definidas como neoliberais, ou seja, todo o conjunto de medidas econômicas que visaram diminuir a participação do Estado no mercado, a fim de possibilitar um novo fôlego ao capitalismo em crise, adotando medidas como privatizações, austeridade fiscal, livre comércio, corte de gastos nos serviços públicos, entre outras intervenções.

Portanto, as reformas estiveram conectadas com as orientações oriundas do Banco Mundial sobre educação que direcionaram de maneira intensiva o reordenamento das políticas públicas para a área, sob um conjunto de diretrizes políticas voltado para a recuperação do ensino fundamental como prioridade, em detrimento dos outros níveis de ensino. No conjunto das reformas, a priorização da recuperação do ensino fundamental pretendia a universalização desta modalidade de ensino, nivelando a educação nos países em desenvolvimento, considerando que essa escolarização seria a base para introduzir os jovens no mundo do trabalho e torná-los capazes de um controle da natalidade mais efetivo nestes países. As reformas ainda defendiam a relativização do dever do Estado para com a educação, tendo por base o postulado de que a tarefa de assegurar a educação é de todos os setores da sociedade. [2]

O início das reformas neoliberais na educação do Brasil esteve condicionado à divulgação do documento intitulado “Plano Decenal de Educação para Todos”, baseado nas diretrizes da Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Segundo Sousa (2006), esta declaração, assim como outros documentos sobre as metas mundiais para a educação direcionadas aos países em desenvolvimento, foi produzida pela Conferência Mundial sobre Educação para Todos, organizada pelo Banco Mundial, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura – UNESCO, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), na cidade de Jomtien, na Tailândia, de 05 a 09 de Março de 1990.

A partir das orientações do Plano Decenal de Educação para Todos tornou-se necessário, ao Brasil, reformular seus postulados, criando uma política educacional associada à política de ajustes às exigências da reestruturação econômica mundial. Iniciada no governo Collor, a reforma na educação brasileira ganhou força nos governos de Fernando Henrique. Desta forma, em 1996, sob o comando de Darcy Ribeiro, foi promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases para educação, o suporte legal da reforma educacional brasileira, seguidos por inúmeros referenciais e diretrizes.

1.3. A Formação Continuada para Professores

No bojo das reformas educacionais no Brasil, foram editados Referenciais e Diretrizes para a formação de professores. Mazzeu (2011) analisa os Referenciais para a Formação de Professores (Brasil, MEC/SEF, 1998) e as Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores da Educação Básica (Brasil, CNE, 2001, 2002) e traz uma avaliação de Shiroma e Evangelista:

Na avaliação de Shiroma e Evangelista, os documentos nacionais apresentam uma leitura particular da reforma educacional, na qual se distinguem dois polos: “[…] um relativo à prática escolar e seus correlatos (livro didático, sistema de avaliação, gestão escolar, material pedagógico, currículo, relação professor-aluno) e outro relativo à formação docente”.

Segundo Mazzeu (2011), a política de formação docente veio acompanhada de um discurso reformador e propondo o modelo da profissionalização pautado pela formação reflexiva e pela competência, supondo que no Brasil o docente deve ser profissionalizado a partir de um “saber-fazer”, baseado nos princípios da chamada “Qualidade Total” [3].

Ainda, de acordo com a autora (MAZZEU, 2011), os Referenciais para a Formação de Professores atribuíram à formação inicial do docente a responsabilidade para aprender sempre, apresentando o “aprender a aprender” [4] como uma característica do “ser profissional”. Já à formação continuada, aquela realizada no local de exercício, coube a responsabilidade pela atualização e aprofundamento das competências e das temáticas educacionais necessárias à atuação docente. Efetivamente, a formação acadêmica do professor passou a ser realizada em menor tempo, com um currículo ainda mais reduzido, despreocupado com a prática e realidade docente e em muitas situações sem exigência presencial do aluno. Ou seja, configurou-se um esvaziamento da formação acadêmica do professor, delegando para a escola a responsabilidade de realizar a formação continuada do professor, a formação do “saber-fazer” docente.

O modelo de formação docente centrada na escola é uma concepção originada no Reino Unido, em meados de 1970 (Mendes 2008). Contudo, aqui no Brasil, configurou-se com a incrementação das características da política neoliberal para os países em desenvolvimento, distanciando-se da concepção original inglesa.

2. HTPC e a Formação Docente

Mas, em que momento do cotidiano escolar ocorreria essa formação continuada?  Caberia ao Estado promovê-la, através de programas de formação, vídeos conferências, entre outros recursos, e ela ocorreria principalmente nas chamadas HTPC’s – Horas de Trabalho Pedagógico Coletivo [5], que passariam a fazer parte da jornada de trabalho docente.

As HTPC’s fizeram parte da pauta de reivindicação dos professores, desde a década de 1980.  Os professores da rede estadual paulista, organizados sob a orientação sindical da APEOESP – Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo –, reivindicavam uma jornada de trabalho que contemplasse um tempo de discussão coletiva no interior da escola, a fim de que pudessem discutir sobre os problemas educacionais, as demandas de seu trabalho, a realidade escolar e organização de intervenções coletivas.

Tal reivindicação foi inserida apenas no contexto da conjuntura das Reformas Educacionais. A rede estadual paulista instituiu as HTPC’s por meio da Portaria CENP nº 01/96 e Lei Complementar nº 836/97 (Oliveira, 2006), e dentre os objetivos destacamos: construir e implementar o projeto da escola, possibilitar a reflexão sobre a prática docente, promover o intercâmbio de experiências e promover o aperfeiçoamento individual e coletivo dos educadores; e estas deveriam ser planejadas pelo conjunto dos professores, apontando e priorizando os problemas educacionais a serem enfrentados. Como vemos, dentre os objetivos iniciais, estão contemplados parte das reivindicações dos docentes.

Porém, segundo Menequim (2005), em relação à educação continuada nas HTPC’s, é possível concluir que as ações formativas não conseguem sozinhas abarcar as potencialidades e as diversidades de questões que integram o processo de formação continuada. Vejamos esse ponto com calma.

Um dos problemas prementes no momento de formação nas HTPC’s está na própria percepção dos docentes em realizar tais reuniões. Em uma pesquisa sobre as HTPC’s, Mendes (2008) conclui que os profissionais as representam como hora de tempo perdido coletivamente, ou seja, que esse momento de formação não tem atingindo seus objetivos de formação continuada no interior da escola. Os professores apontam que a forma de gestão, a condução do Orientador Pedagógico e a participação do professor não têm contribuído para mudanças significativas na prática dos professores. Entre as dificuldades, apontam o privilégio de discussões de questões administrativas, atividades burocráticas e rotatividade de professores. Sempre que possível, os professores “fogem” das reuniões e dizem que é um local para troca de receitas (Mendes, 2008).

Outra questão se refere à capacidade do Estado interferir diretamente na formação do corpo docente, a fim de cumprir sua agenda política, dirimir a autonomia necessária dos profissionais da educação para realização de uma formação crítica e sucatear as condições que possibilitam a realização do direito do docente de formação dentro da sua carga horária de trabalho. Atualmente, as HTPC’s foram apropriadas pela leitura educacional oficial do Estado reduzindo-as a um espaço de implementação da política educacional consonante com as reformas neoliberais, orientadas, sobretudo, para a adaptação à lógica de nosso modelo produtivo e, dessa forma, esvaziando e não funcionando como espaço de formação que oportunize aos educadores pensarem a educação como condição do processo de humanização. A mais recente iniciativa dentro dessa perspectiva ocorreu na rede estadual paulista. Por meio da Resolução SE 72/2019, alterada pela Resolução SE 76/2020, os professores passaram a ter uma nova carga horária, ampliando significativamente a quantidade de ATPC’s[6].

A justificativa apresentada para ampliação das ATPC’s é a necessidade de formação continuada dos docentes com foco no “Currículo Paulista”, uma derivação da BNCC – Base Nacional Comum Curricular [7] – para o Estado de São Paulo.  Sob a coordenadoria da Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação “Paulo Renato Costa Souza” – EFAPE, as escolas precisarão garantir a realização das ATPC’s divididas por área de conhecimento, com registros e avaliações dos docentes e sob controle mais rígido dos professores coordenadores e das diretorias de ensino.

Nesse sentido, tal cenário nos conduz a questionamentos sobre a viabilidade da formação continuada no interior da escola pública, uma vez que o projeto em curso é de uma educação voltada para a adaptação dos indivíduos à realidade decadente desse modelo produtivo que vem destruindo conquistas dos trabalhadores, preconizando o fim do emprego formal e apontando saídas individuais, como o empreendedorismo e a flexibilização – cujo modelo o governo do estado de São Paulo se entusiasma em empreender. O sucateamento e as péssimas condições de trabalho docente (pela ampliação da quantidade das ATPC’s, mas com o ajustamento do horário de aula ao horário relógio) aliada às concepções pedagógicas hegemonicamente capitalistas (através da leitura e discussão impostas do Estado aos professores durante as ATPC’s) constituem um projeto de governo e se tornaram realidade na maioria das escolas.

No entanto, devemos lembrar que a educação é inerente ao processo de desenvolvimento humano. A escola, por sua vez, surge no contexto das sociedades de classes como um privilégio da elite. Sua expansão para os trabalhadores se dá nos limites da formação de mão de obra e da difusão dos valores dominantes, de acordo com os interesses dos proprietários dos meios de produção. Porém, nela configura-se a luta de classes, reflete as relações conflituosas entre dominantes e dominados e, ainda que em refluxo, a luta incessante dos trabalhadores contra a exploração e a opressão. Essas contradições, a nosso ver, deixam brechas de atuação, possibilitando um trabalho que minimamente atenda aos interesses dos trabalhadores e de seus filhos. Diante das grandes demandas de hoje para a educação pública no Brasil, é ilusório acreditar que a atuação em apenas um aspecto do problema daria conta de superar todas as adversidades. Nosso intento aqui é focar o aspecto da formação docente, especialmente no processo de formação continuada, sem desconsiderar a necessidade de debates sobre outras demandas e a luta para conquistá-las.

Duarte (2015) afirma que é preciso conhecer a realidade para desenvolvermos uma concepção de mundo. É preciso compreender o que é a vida humana e como nós humanos nos relacionamos. Essa concepção de mundo é importante para inserção na prática social; é o que nos orienta sobre o que fazer diante da realidade, sobre quais as possibilidades existentes para humanidade, quais escolhas, se existem alternativas a essa sociedade. Sabe-se que hegemonicamente acredita-se que a única forma possível de organizar a sociedade é a manutenção das relações capitalistas vigentes. Contudo, para pensar-se em possibilidades de futuro para a sociedade humana é preciso superar o nível das aparências. A dimensão transformadora e revolucionária para superação do capitalismo não se apresenta de forma aparente e para nos aproximarmos da essência é necessário analisar e compreender as contradições postas em nossa realidade, pois a contradição é constitutiva da essência.

Nesse sentido, não é incomum nos depararmos com o docente que, mesmo sendo militante ou organizado politicamente, tem dificuldades de romper as ciladas cotidianas do seu trabalho e diante das demandas e condições acabam vivenciando uma prática docente esvaziada, produzindo descontentamento e seu próprio adoecimento.[8] Dessa forma, requer criarmos iniciativas dentro do campo contra-hegemônico que procurem superar tais ciladas e alargar as brechas das contradições do cotidiano escolar na tentativa de ampliar a concepção de mundo dos trabalhadores em educação, pois é pela constatação e internalização das contradições que podemos encontrar as possibilidades de emancipação com a nossa atuação.

3. Baixada Santista: um caso prático de formação de professor bem-sucedido durante as HTPC’s

De fato, a formação continuada do docente foi apropriada pelo Estado e por suas concepções de política educacional, mas esses espaços de formação também podem ser de resistência, de valorização profissional, de superação da rivalização aluno-familia-professor, de construção de encaminhamentos coletivos voltados para uma efetiva aprendizagem de nossos alunos e, até mesmo, de uma formação docente que contribua para o enfrentamento das demandas atuais.

Sem a pretensão de apresentar receitas e compreendendo que as experiências possuem um caráter histórico, evidenciamos a existência de várias iniciativas nesse sentido espalhadas por todo o Brasil.

Na Baixada Santista há uma dessas iniciativas, que para garantir o direito de anonimato, ainda vamos ocultar os nomes e algumas situações vivenciadas por essa escola desde 2013. Trata-se de uma escola de ensino fundamental, do 1º ao 9º ano, funcionando em dois períodos, com 10 salas por turno, atendendo em torno de 400 educandos e com um grupo de professores em torno de três dezenas.

Nessa escola, como em quase todas as outras, as queixas dos professores eram uma constante. Queixas sobre questões estruturais, da falta de condições de trabalho, do desinteresse e desrespeito dos educandos e de seus familiares. A primeira ação intencional foi ouvir analiticamente as queixas, um escutar de um universo caótico de lamentações, que em parte revelou o quanto há de frustação e de falta de realização com o trabalho docente.

A partir dessa análise, foi possível a formação de um coletivo preocupado em superar as expectativas para além das queixas, um coletivo preocupado em discutir soluções para os problemas educacionais elencados e com os problemas cotidianos da escola. Esse coletivo não foi composto pela totalidade dos trabalhadores da escola. Inicialmente, apenas um pequeno grupo manteve um posicionamento intencional de estudo, com uma atuação cada vez mais comprometida com a transformação positiva da escola pública e de convencimento aos demais educadores da possibilidade de realização de algumas ações concretas na escola. As situações bem-sucedidas foram dando ao coletivo inicial a adesão de mais profissionais, criando a necessidade de expansão do estudo mais sistemático durante as HTPC’s.

A criação da necessidade de estudos sistemáticos, no caso dessa escola, foi a etapa mais significativa do processo, uma vez que grande parte do grupo de professores defendia troca de experiências, divulgação de práticas que foram bem sucedidas; alegavam que a melhor teoria é a prática e que os teóricos estavam longe da realidade cotidiana da escola, o que exigiu do coletivo uma formulação mais precisa que sustentasse tal necessidade, uma centralidade para uma temática inicial: como o aluno aprende?

Como se vê, o trabalho nessa escola não começou com o discurso de “salvar os alunos”, de emancipação social ou transformação geral da sociedade, como muitos professores sonham ao iniciar suas carreiras no magistério. Mas iniciou-se com o questionamento de como, de fato, a criança aprende? Naquela altura percebeu-se que, em grande parte, a resposta do grupo ia no sentido de como o professor ensinava e não, exclusivamente, como o educando aprende. A partir dessa constatação coletiva foi possível motivar o grupo para um aprofundamento da temática.

Os próprios professores foram indicando autores, das mais diferentes linhas pedagógicas, que supunham tratar do tema. Grupos foram organizados para estudar os autores e socializar o estudo nas HTPC’s. Foi constatada uma grande dificuldade em encontrar em tradução para o português das obras dos teóricos, o que fez com que o grupo avaliasse que o que sabiam dos autores clássicos era, em grande parte, por via de terceiros autores. Parte do grupo nem mesmo por essa via. Esse contato inicial com os pensadores clássicos custou meses e demandou a elaboração e o cumprimento do planejamento e respectivas datas das HTPC’s.

A confrontação entre os vários teóricos trouxe ao grupo as primeiras aproximações sobre a complexidade da temática, sobre as diferentes concepções sobre o tema, sobre o lugar social de quem escreveu. Ao questionamento inicial, foram sendo acrescentados outros questionamentos. Percebeu-se que na formação acadêmica da maioria do grupo tais estudos não haviam sidos realizados.

O grupo percebeu a impossibilidade de aprofundamento de tantos autores e decidiu tentar analisar dois de peso: Jean William Fritz Piaget – Suíça (1896 – 1980) e Lev Semyonovich Vygostky – Bielorrússia (1896 – 1934) [9].

No Brasil, fez-se intencionalmente uma associação entre os dois autores, alegando que um era complementação do outro. Mas essa concepção é genérica e superficial e o grupo logo percebeu a impossibilidade dessa associação entre os mesmos. Um estudo comparativo elencou as diferenças e o que mais chamou atenção foi o fato de uma das obras mais conhecida de Vigostki no Brasil, Pensamento e Linguagem, possuir sua tradução nos Estados Unidos, suprimindo grande parte da essência da obra. [10]

Dessa forma, não tardou o grupo decidir-se por uma tentativa de aprofundamento nas obras de Vigotski e na Psicologia Histórico-Cultural, bem como da Pedagogia Histórico-Crítica e seus autores. A nosso ver, aqui se estabeleceu o divisor de águas, pois não se tratou de qualquer estudo, mas de uma escolha intencional por uma linha preocupada em buscar uma educação para além dos limites impostos pelas reformas educacionais.

O problema passou a ser o pouco tempo que as HTPC’s propiciavam para tal intento. Apenas noventa minutos semanais. A solução encontrada foi solicitar da Secretaria da Educação quatro horas aulas semanais para realização de tal tarefa.  Após convencimento da necessidade de tempo para os estudos coletivos, a Secretaria cedeu e acatou a reivindicação do grupo, pagando quatro horas eventuais por semana para realização dos estudos. Essa saída precisou ser negociada a cada ano e foi oscilando ao sabor das decisões políticas até seu corte por completo, principalmente por conta da atuação militante dos professores da escola nos movimentos reivindicatórios da categoria.

Enquanto existiram, os grupos de estudos realizados uma vez por semana, no contraturno do horário do professor, possibilitaram planejar e executar um pequeno aprofundamento sobre a Psicologia Histórico-Cultural e Pedagogia Histórico-Crítica. Foi possível conhecer os fundamentos dessas ciências e refleti-las no trabalho da escola. O grupo dispôs-se a realizar a tarefa de ler o Tomo III das Obras Escogidas de Vigostki, em espanhol. Professores participaram do Congresso da Psicologia Histórico-Critica, realizado em Bauru, em 2015.

É importante destacar que o engajamento da equipe gestora neste processo foi bastante decisivo. Embora seja uma constatação empírica, nos parece que essas iniciativas são melhores sucedidas quando assumidas coletivamente com as equipes gestoras das escolas. Nessa escola, a equipe gestora assumiu a necessidade de participação e acompanhamento nos estudos. Precisou, por vezes, antecipar o estudo na equipe para uma melhor atuação junto ao grupo com professores.

Sabemos que, na atualidade, há grandes dificuldades em assumir uma postura crítica em relação às reformas educacionais em curso no Brasil. A trajetória dessa escola da Baixada Santista permitiu conhecer algumas, entre elas, a rotatividade dos professores, o tempo reduzido das HTPC’s para estudo coletivo, e mais recentemente, com o advento de posições que se direcionam contra a educação crítica, a disputa ideológica tornou-se mais visível, como determinados casos em que pais questionam professores de história sobre a necessidade de ensinar temas relacionados ao período da ditadura militar de 1964 no Brasil.

Ainda que com as dificuldades apresentadas, a escola continua seu trabalho de formação continuada utilizando as HTPC’s. Atualmente os estudos estão focados em compreender a categoria de atividade em Leontiev e a periodização do desenvolvimento do psiquismo[11]. O trabalho realizado desde 2013 permitiu a criação de uma postura um tanto quanto consolidada. Mostrou ser possível fazer da escola um espaço de estudos e que, de alguma forma, contribuíram e contribuem na prática docente em benefício do educando de escola pública e para ampliação de sua própria concepção de mundo. Isso possibilitou entender, entre outras coisas, que não há saída individual para problemas coletivos, de modo a incentivar a participação dos professores dessa escola nos movimentos reivindicatórios em defesa de melhores condições de trabalho e pela escola pública, – atuação importante para impedir o sucateamento da escola pública levado a cabo pelas reformas neoliberais.

Concluímos que a formação continuada do professor realizada nas HTPC’s apresenta muito mais limites que possibilidades. Os limites se apresentam por toda parte e ainda se avolumam com as posturas e orientações atuais do Ministério da Educação e com a concepção de educação do atual governo federal. Somam-se diversos fatores que limitam a realização de uma formação mínima nas HTPC’s, como a ausência da competência do coordenador escolar, falta de material básico, desmotivação no trabalho, ausência de espírito de solidariedade e assim por diante. As possibilidades são remotas, mas existem. Elas nascem das contradições, de uma compreensão coletiva da necessidade de superação da atual realidade e da escolha de uma trajetória de estudo que compreenda a educação como condição de humanização em sua totalidade.

E, finalmente, que o tempo fornecido pelas HTPC’s pode e deve possibilitar uma formação reflexiva sobre a prática docente no interior da escola durante seu cotidiano. Buscamos insistir em um exemplo prático e atual do caso da escola na Baixada Santista a fim de demonstrar que a HTPC continua sendo o espaço mais adequado e salutar de formação continuada dos professores e, por isso, deve ser valorizado por toda categoria docente – se quisermos superar dilemas, impasses e problemas escolares tão frequentes na carreira do magistério.

*   Formado em 2017, o Grupo de Estudos de Práticas Docentes se propõe a estudar a realidade da educação pública brasileira, sob a perspectiva do professor, a partir de autores que possuem uma abordagem crítica das temáticas que perpassam a educação. Atualmente, o grupo está voltado também para publicação periódica de artigos, tendo como público alvo professores de educação básica da rede pública brasileira. Para entrar em contato conosco utilize o e-mail: [email protected].

Referências bibliográficas

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__________. Sobre o currículo escolar. Palestra Congresso da pedagogia Histórico-Crítica. Unesp, Bauru-SP, 2015. IN: youtube.com/watch?v=DIAuFh6O0Iw.

__________. Vigostki e o “Aprender a Aprender”. 5ª Ed. Campinas. Autores Associados. 2012

FONTE, S. S. D. “Fundamentos teóricos da pedagogia histórico-crítica”. IN: Pedagogia histórico-crítica: 30 anos / Ana Carolina Galvão Marsiglia (org) – Campinas-SP. Autores Associados, 2011.

MAZZEU, L. T. B. “A política educacional e a formação de professores – reflexões sobre os fundamentos teóricos e epistemológicos da reforma”. IN: Pedagogia histórico-crítica: 30 anos / Ana Carolina Galvão Marsiglia (org) – Campinas-SP. Autores Associados, 2011.

MENDES, C. C. T. HTPC: hora de trabalho perdida coletivamente? Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação, Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho, Presidente Prudente-SP, 2008, 113p.

MENEQUIM. A. M. A escola como lócus da Formação Contínua: Investigando a partir das HTPC’s. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação. Universidade Católica de Santos, Santos-SP, 2005, 208p.

OLIVEIRA, N. A. R. DE. A HTPC como espaço de formação uma possibilidade. Dissertação (Mestrado). Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. Pontifícia

SÃO PAULO, 129 (238), – Diário Oficial Poder Executivo – Seção I, terça-feira, 17 de dezembro de 2019. In: https://publicadoeducacao.wordpress.com

SÃO PAULO, 130 (2), – Diário Oficial Poder Executivo – Seção I, sábado, 04 de janeiro de 2020. In: https://publicadoeducacao.wordpress.com

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Notas:

[1] Apesar da polêmica sobre a conceituação da crise, Sousa descreve o contexto de ascensão do neoliberalismo na América Latina e suas consequências para a educação, principalmente no Brasil, elencando as políticas educacionais iniciadas no Estado de São Paulo como locomotiva dessas reformas. Aqui recorremos a contextualização histórica realizada pela autora.

[2] Parece-nos que tal postulado contribuiu para que fundações e institutos, entre eles Fundação Lemann, Instituto Ayrton Senna, Fundação Roberto Marinho, Instituto Unibanco, Instituto Natura, entre outros, começassem a advogar sobre política educacional no Brasil, orientando grande parte das decisões sobre o tema.

 

[3] O conceito de Qualidade Total iniciou-se no Japão e foi difundido para os países ocidentais a partir da década de 1970. Trata-se de uma técnica de administração multidisciplinar formada por um conjunto de programas, ferramentas e métodos aplicados no processo de produção das empresas, para obter bens e serviços pelo menor custo e melhor qualidade. Na educação brasileira, o conceito passa a ser difundido a partir da década de 1990, com a reestruturação produtiva e aproximação dos empresários com o setor educacional, resultando daí, as iniciativas de transposição da qualidade total para a educação. O debate a ser travado é a possibilidade dessa transposição diante das especificidades do processo educativo.

 

[4]  Newton Duarte conceitua como pedagogias do “aprender a aprender” as diversas pedagogias do campo hegemônico pautadas nos quatro pilares da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, coordenada por Jacques Delors, no texto “Educação: um tesouro a descobrir”, elaborado para UNESCO, em 1999.

[5]  As Horas de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) em abril de 2012, na Rede Estadual Pública do Estado de São Paulo, passou a ser chamada de Atividades de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC). Aqui, continuaremos utilizando a denominação de HTPC, por tal denominação ainda ser utilizada em outras redes de ensino.

 

[6] Cabe lembrar que a jornada na rede estadual paulista é determinada por hora relógio. Assim, numa jornada de 40 horas, o docente trabalha 32 horas aulas com alunos, 07 em ATPC’s e 14 ATPL’s, totalizando 53 horas aulas e recebendo por 40 horas relógio.

[7] Um debate mais aprofundado sobre as BNCC e seus impactos, principalmente seu alinhamento com uma educação postulada pelos países centrais para os países em desenvolvimento, está na ordem do dia. Aqui não temos condições para esse aprofundamento, o que pretendemos em outro texto.

[8] Os dados sobre doenças ocupacionais no magistério são espantosos e numa crescente extraordinária. Os afastamentos dos professores de sua atividade docente ocorrem principalmente por problemas de lesão por esforço repetitivo e por doença psíquica.

[9] Adotaremos a grafia Vigotski, por ser mais consensual entre os autores da teoria Histórico-Cultural.

[10] Na década de 80 chegou ao Brasil a obra de Vigotski intitulada “Pensamento e Linguagem”, traduzida para o português a partir de uma tradução inglesa reduzida, realizada por E. Honfmann e G. Vaker, que, a nosso ver, não apresenta o método utilizado por Vigostki em sua elaboração e escrita. Em 2001, a editora Martins Fontes relançou a obra em todo seu conteúdo, com o título “A Construção do Pensamento e da Linguagem”, traduzido por Paulo Bezerra do russo para o português.

[11] Na perspectiva histórico-cultural, o conceito de atividade aparece como fundamental para o entendimento sobre a formação do psiquismo. Compreender a periodização do desenvolvimento do psiquismo possibilita definir a atividade dominante capaz de realizar tal desenvolvimento.