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BRASIL

Revolução solidária

Erica Pilom*, de Serra Negra, SP

Em tempos de pandemia do novo coronavírus, ficam mais evidentes os desmontes dos direitos trabalhistas, saúde e assistência social. Esse cenário nos empurra a assumir um compromisso social de forma ativa.

Nessa luta por sobrevivência precisamos contar com a coletividade para agir ativamente contra esse sistema neoliberal, que evidencia a individualidade.

A classe trabalhadora já vem sendo explorada por muito tempo e é por essa parcela da população que não hesitei em agir de forma urgente.

Moro em uma cidade do interior de São Paulo, turística, com menos de 30 mil habitantes, na qual uma grande parcela da classe trabalhadora vive no sistema da informalidade, o que, infelizmente, é a realidade da maioria dos brasileiros nos últimos tempos. Portanto, como falar em isolamento social, mas, ao mesmo tempo, deixar essas pessoas passarem fome? Se a prioridade é salvar vidas, não podemos deixar a fome assolar os cidadãos e se misturar com a necessidade de sobreviver ao vírus.

Acredito em um combate às desigualdades mais direto e estrutural, que não dependa de “boas ações” e nem se torne refém do capitalismo. Porém, a ação de levar alimentos para essas famílias da classe trabalhadora que estão dormindo com fome é o ato mais urgente para salvar vidas neste  momento e, assim, precisamos contar com a solidariedade uns dos outros.

Essa ação foi se tornando uma corrente pela vida! Mobilizando pessoas em uma ação solidária que vai além de distribuir alimentos, mas também com o intuito de levar conforto, esperança e consciência de classe. Esse trabalho visa arrecadar doações e entregar pessoalmente na casa das famílias que precisam, sem burocracia alguma, porque quem tem fome, tem pressa. Além dos alimentos básicos, cada família recebe um kit de higiene e de limpeza, livros, gibis e máscaras. Encontramos famílias que em suas casas não tinham gás, outras sem fogão, sem geladeira, sem camas. Enfim, sem o mínimo para viver com dignidade. Conseguimos sanar essas urgências com a mobilização social. Desde que a ação começou, não ficamos um só dia sem receber doações e nenhum dia sem fazer essas visitas com as entregas. Não é um trabalho fácil; afinal, por ser mulher, sei bem como nosso tempo é limitado, entre o público e o privado. Mas pude notar de forma expressiva que a solidariedade vinha em sua maioria por parte das mulheres e, ao mesmo tempo, os pedidos de ajuda também partiam delas.

Quanto maior a desigualdade, maior a vulnerabilidade das mulheres. Vivemos em uma sociedade patriarcal, em que colocam as mulheres no papel de cuidadoras, o que ficou mais evidente nesse período de pandemia. A cada família visitada, uma história, que, infelizmente, não foge aos padrões: mulheres provedoras do lar, com histórico de abandono, vivendo em situação de abusos, sendo responsáveis pelo sustento dos filhos e netos e totalmente desamparadas. Mulheres que perderam o direito de se sentirem mulher. Que não tiveram a opção de descobrir que tipo de mulher gostariam de ser e seguiram suas vidas conforme a sociedade lhe impôs. Esta ação vai além do assistencialismo. É uma ação humana, coletiva, preocupada em inspirar a sociedade a agir de forma conjunta, em prol do bem comum.

Em menos de 10 dias, visitei 70 famílias, casa a casa, envolvendo outras pessoas no auxílio de cada necessidade encontrada, ousando assim, uma revolução solidária.

A gravidade do momento torna a luta por políticas que protejam as mulheres mais urgente e necessária.

Espero que o pós-coronavírus faça com que a sociedade repense sua forma de agir e que a inspire a enxergar e retirar suas correntes, ousando assim a fazer uma sociedade mais justa e igualitária, ainda que comece pelo seu bairro.

“Não queremos voltar à normalidade, porque essa normalidade já é demasiadamente injusta e desigual, racista e heteropatriarcal”, relatou Paula Satta, socióloga argentina.

Que a sociedade não volte ao ”normal’, mas sim repense em saídas ousadas para construção de um futuro melhor.

* Presidente do PSOL Serra Negra, professora de História da  rede estadual, mãe e ativista social.