You’ll Never Walk Alone
(Você nunca andará sozinho)
Walk on, walk on, with hope in your heart
(Siga em frente, em frente com a esperança em seu coração)
And you’ll never walk alone
(E você nunca andará sozinho)
You’ll never walk alone
(Nunca andará sozinho)
No apagar das luzes do mês de março um vídeo correu a Inglaterra e o mundo; profissionais da saúde em uma UTI entoaram uma balada bastante conhecida no país e no mundo como hino extra oficial de um dos times mais populares do país, o Liverpool.
Os profissionais em uníssono cantaram para os pacientes de um lado do isolamento You will never walk alone (você nunca andará sozinho) – hino que os fanáticos torcedores do time conhecido como reds (vermelhos) entoam sempre antes e durante os jogos para empurrar os jogadores rumo a vitórias improváveis, quando não aparentemente impossíveis.
Uma história épica, inesquecível, para os amantes do Liverpool e do futebol, como eu, foi uma das mais emocionante finais da UEFA Champions League em 2005 entre Milan e Liverpool.
O time de Milão, treinado por Carlo Ancelloti, com seu sistema de jogo chamado de árvore de natal (4-3-2-1) era uma equipe milionária, recheada de craques – Dida no gol, Maldini, Nesta, Kaká, Cafú, Shevichenko, Krespo… – que enfrentava uma equipe de garotos e jogadores medianos como Dudek – goleiro polonês bastante irregular e que jamais foi titular nas equipes por onde passou após sair de seu país natal – e com um único grande destaque, um jovem chamado Gerrard – que a partir daquele dia se consagrou como o grande ídolo e capitão dos reds.
O primeiro tempo dessa épica final termina com o Milan vencendo os meninos do Liverpool por três a zero, sem falar no vareio de bola. Os ingleses sequer viram a cor da redonda, como se diz na linguagem do futebol. Foi um atropelamento sem que os ingleses conseguissem anotar a placa do caminhão que passou por eles – mas a torcida inglesa continuava cantando a plenos pulmões nas arquibancadas You will never walk alone.
Começa o segundo tempo; com os milaneses com uma mão na taça e a torcida inglesa, regada a muita cerveja, incendiando as arquibancadas – You will never walk alone – aí começa o impossível, a epopeia propriamente dita.
O jovem Gerrard começa a virada – 3×1 – e a torcida canta mais alto; o Liverpool maraca mais um, 3×2 – e os torcedores aumentam mais o tom – e o delírio vem com o empate, os reds fazem 3×3 e as arquibancadas explodem em uníssono – você nunca andará sozinho.
A história ainda não acabou.
O jogo vai para prorrogação, onde o goleiro polonês que até aquela hora limitara-se a tomar três gols, resolveu jogar; fez duas defesas milagrosas em sequência em duas finalizações de Shevchenko, o homem gol do poderoso ataque milanista – uma cabeçada e depois o rebote de dentro da pequena área.
Com as arquibancadas entoando a balada que prega superação e solidariedade – você nunca andará sozinho – a decisão vai para os penaltis: Dudek defende duas penalidades – uma delas do mesmo Sevchenko que foi um jogador consagrado – e os vermelhos de Liverpool tornam-se campeões na mais emocionante e surpreendente das finais da liga dos campeões da Europa, em minha opinião.
Por que tudo isso?
Para elucidar uma máxima fundamental da vida: nossa atitude diante dos problemas e percalços que somos obrigados a enfrentar pelo simples fato de estarmos vivos, e se estamos sós ou acompanhados, pode influenciar de forma determinante o resultado, se superamos se vencemos ou não, os desafios que a vida nos impõe.
Aviso que não se trata de qualquer tipo de apologia a religião!
Outro exemplo ilustrativo do que afirmei acima vem da ciência.
Em 1982 o paleontólogo Stephen Jay Gould, um dos raros pop stars que a ciência produz de vez em quando, evolucionista respeitado como um dos melhores do mundo em seu tempo, foi diagnosticado com um tipo raro e agressivo de câncer que, segundo o linguajar comum aos especialistas, daria ao paciente uma sobrevida média de oito meses no máximo.
Como cientista ele não se curvou às primeiras evidências; disso saiu a público um ensaio lapidar: “A mediana não é a mensagem”.
Nesse ensaio Gould mostra um erro muito comum em estatística, confundir mediana com média e, mais ainda, tratar uma probabilidade, uma tendência, como algo inevitável – uniões incestuosas entre parentes em primeiro grau fazem com que 50% dos descendentes tenham a probabilidade de possuir deficiência mental, isso não significa que 50% dos pimpolhos dessa execrável união nascerão deficientes; podem ser todos, pode ser nenhum…
Outro grande erro na mesma toada é confundir a média com os extremos. Média é o ponto intermediário entre extremos; nada de antemão me coloca em um ou outro caso.
Moral da história: Stephen Jay Gould morreu em 2002, vinte anos depois de sua morte precipitadamente anunciada, de outro tipo de câncer sem qualquer relação com o anterior.
Sua receita: conhecimento científico, bom humor, persistência; uma atitude otimista diante da vida – nossa atitude diante dos problemas que enfrentamos influencia diretamente em sua solução.
Isso não quer dizer que basta ter fé – como pregam os fanáticos neofascistas e neopentecostais – é necessário também conhecimento, informação, ciência e, sim, coragem para encarar o que vier. E principalmente, saber que você não está sozinho: seus amigos, parentes, companheiros de trabalho e de militância estão torcendo por e com você – isso pode nos dar energia para seguirmos adiante e superarmos os obstáculos.
Podemos nascer sozinhos e morrer sozinhos – dois atos solitários que podem ser compartilhados com nossos entes queridos, que estarão lá para nos recepcionar em nossa chegada ou nos confortar no momento da despedida – mas viveremos em grupo.
Em outro ensaio seminal – “Kropotkin não era um pancrácio” – o já citado Stephen Jay Gould apresenta a visão alternativa a seleção natural darviniana de um dos principais teóricos do anarquismo.
A luta pela sobrevivência – seleção natural – de Darwin pode ser interpretada de duas formas: como combate sangrento que leva ao triunfo do mais apto ou mais forte ou como uma metáfora abstrata.
O ponto de vista gladiatório, do combate sangrento e do triunfo do mais forte em uma luta de todos contra todos, é o dominante em nossa época – o neoliberalismo não é mera coincidência.
Gerações têm sido educadas no individualismo, na luta de todos contra todos, com os mais fortes vencendo e devorando os menos afortunados – seja em termos biológicos ou socioeconômicos.
Os tubarões devem devorar as sardinhas! Ensinam os arautos do neoliberalismo, pregando o individualismo selvagem. Gould, apoiado em Kropotkin, apresenta a alternativa metafórica da seleção natural – a cooperação, a solidariedade.
A luta pela sobrevivência – a luta pela reprodução – pode ser tanto uma disputa selvagem entre todos os membros da espécie com a eliminação dos mais fracos pelos mais fortes, como também pode significar a solidariedade e a cooperação entre os indivíduos da espécie para enfrentar as agruras do meio e sobreviver a elas.
Aqui entre nós; se os homens da pré-história, nossos ancestrais mais antigos, optassem pela solução gladiadora – cada um por si e todos contra todos do neoliberalismo – para enfrentar as dificuldades impostas pelo meio e predadores muitos mais poderosos e vorazes – como o tigre dente de sabre – o fogo não teria sido descoberto, o arco e flecha e a jangada não teriam sido inventados e este texto não seria escrito. A cooperação e a solidariedade, sem negar a concorrência evolutiva entre as espécies de hominídeos, foram a chave para nossa preservação.
Situações de dificuldades extremas podem produzir a guerra entre todos – com os tubarões engolindo as sardinhas – ou a cooperação entre todos para sobreviver ao meio, lembrando que a evolução em nosso caso – hominídeos – é um processo cultural.
Segundo a moderna interpretação da teoria da evolução no gênero hominídeo a evolução cultural orienta/dirige a evolução biológica – podemos optar entre uma alternativa e outra: podemos escolher a guerra civil ou social ou podemos optar pelo caminho da cooperação e da solidariedade.
Óbvio que não é tão simples assim; nosso livre arbítrio não é absoluto – já dizia certo alemão que fazemos a história como podemos e não como queremos. Existe o peso da ideologia neoliberal, das ideias da classe dominante que são incutidas em cada um de nós pelas mais diversas formas e meios de difusão, inclusive um discurso pseudocientífico. Ideologia individualizante que é reproduzida nas práticas sociais cotidianas – as ideias da classe dominante são as ideias dominantes na sociedade.
O que pode modificar essa situação e produzir alterações significativas na consciência das grandes massas da população rompendo com a ideologia dominante na sociedade – notadamente entre os setores explorados e oprimidos pelo capital – são processos sociais significativos, únicos e generalizantes; como uma pandemia por exemplo.
Alterações essas que são ao mesmo tempo uma necessidade para a emancipação daqueles que estão no “andar de baixo” da sociedade hegemonizada pelo capital, mas também são uma possibilidade – não são inevitáveis.
É bom não esquecer: a mediana não é a mensagem, possibilidade e necessidade não equivalem a inevitabilidade. As verdades absolutas na vida são muito poucas.
Como escrevi em outra ocasião as poucas verdades no mundo são: não existe almoço de graça, azeitona preta é tingida, não existem amor incondicional e separação amigável, no banheiro do hotel a torneira de água quente está sempre a esquerda e chocolate branco não é chocolate, é gordura vegetal!
Isso não deve ser interpretado como uma adesão ao relativismo histórico; que a verdade não passa de um discurso bem articulado ou de uma narrativa ao estilo literário – marxismo e relativismo histórico não andam na mesma calçada, sequer na mesma rua, são incompatíveis.
A ciência, mesmo no campo das humanidades, trabalha com evidências, fatos constatados por todos; outra coisa é que existe um campo de possibilidades, a interpretação das evidências – esse é o campo de disputas, onde entra a ideologia.
A crise da pandemia e seus danos colaterais – a crise sanitária e social – podem produzir alterações significativas na percepção de mundo de setores importantes da população como vimos – a solidariedade entre as pessoas rompendo com o individualismo cultuado a décadas pela classe dominante, a percepção de que a saúde deve ser pública para ser um direito da população, não um simples negócio dominado por planos privados controlados pelo capital financeiro.
Onde o mercado controla não há direitos, há negócios.
Também é possível, pela experiência singular provocada por este momento de pandemia, chegar à conclusão de que o livre mercado – com sua mão invisível – não previne e muito menos combate as crises; não por acaso a mão invisível do mercado – mesmo no caso de governos declaradamente neoliberais e de direita pelo mundo – foi trocada pela mão pesada e mais que visível do Estado – desde o dirigismo estatal no combate à pandemia até a intervenção direta nas economias tentando impedir o colapso que o mercado não é capaz de evitar.
O exemplo disso pela negativa é o fato de o país mais rico do mundo – a terra do Tio Sam, EUA – apresentar maior o número de vítimas da Covid-19. Lá não existe a primeira linha de defesa, não existe algo similar ao SUS brasileiro, por isso os ianques não param de empilhar cadáveres.
O contraponto à terra do dólar são países como Coreia do Sul e Inglaterra com seus sistemas públicos de saúde – NHI e NHS, respectivamente – similares ao SUS, porém com recursos e sem a investida privatizante do Estado como por aqui.
Na Alemanha a legislação garante seguro saúde para todos com financiamento compartilhado entre trabalhadores e patrões.
Não é por acaso que, mesmo com todas as críticas que os governos e a política de saúde pública desses países possam merecer, eles são apontados como exemplos mundiais no combate ao coronavírus ao lado da China – onde a saúde básica é quase toda estatal.
No centro do império a saúde é totalmente privada e, é bom lembrar mesmo sob o peso da redundância, onde há mercado não há direitos, opa!
A decadência do capitalismo e sua incapacidade de combater os males que gera – a crise sanitária pela exploração desenfreada dos recursos e ambientes naturais e a crise social e humanitária pelas desigualdades que o mercado produz – ao lado da defesa da saúde pública – SUS brasileiro – podem ser lições apreendidas nessa situação de crise global em que vivemos.
Também a solidariedade entre as pessoas pode se tornar solidariedade de classe; aprendemos nesta crise que profissionais que antes – membros da classe média como eu – não costumávamos respeitar ou considerar são essenciais. Profissionais da saúde, especialmente saúde pública – médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem, funcionários administrativos – estão sendo justamente reconhecidos como heróis.
Outros profissionais, geralmente invisíveis para nós, também estão obtendo seu justo reconhecimento.
Que seria de toda a população nessa crise sem coletores de lixo, trabalhadores de supermercado e farmácias, operários, trabalhadores dos transportes…
Até as professoras – especialmente as alfabetizadoras – têm sido valorizadas nessa pandemia com as crianças em casa devido a suspensão das aulas.
Em um artigo bastante emblemático (Rodrigo Rattier, “Quarentena é a melhor propaganda possível contra o homeschooling”) somos lembrados que as professoras são profissionais altamente qualificadas e com uma responsabilidade social enorme quase nunca reconhecidas por isso – todos, ou quase todos, acham que podem ensinar seus filhos, ou decidir o que os pimpolhos devem aprender.
O que ensinar, como ensinar, quando ensinar e para quem ensinar, envolve decisões complexas e conhecimentos diversificados – teoria do conhecimento, didática das disciplinas, psicologia do desenvolvimento e teorias da aprendizagem, raciocínio lógico e retórica para organização das aulas, além do conhecimento dos conteúdos das disciplinas do currículo.
O bom e o alívio para todos nós é que não estaremos sozinhos quando isso tudo acabar; quando voltarmos às nossas vidas regulares as professoras estarão lá para salvar nossos filhos da homeschooling e da EAD, os profissionais de saúde continuarão a nos atender e cuidar de nós; o mesmo com os coletores de lixo e da limpeza pública, dos trabalhadores dos transportes, atendentes dos supermercados e das farmácias, operários…
Essas solidariedade pode produzir o reconhecimento da identidade de classe entre todos que vivem de seu próprio trabalho – proletariado – em oposição aos que vivem da exploração do trabalho alheio – a classe capitalista.
É a velha luta de classes.
Nunca nos esqueçamos que é um campo de disputa, a burguesia também joga o jogo; a rede globo lançou a campanha solidariedade S/A como parte de uma tentativa do capital para confundir a consciência da população e também de se humanizar diante da crise.
O Banco Itaú anunciou a doação de R$ 1 bilhão; doação essa feita a uma ONG criada pelo próprio banco – doou a si mesmo, é uma autodoação! – e que é uma gota no oceano diante do lucro dessa empresa em 2019 – R$ 26,58 bilhões – e diante da doação para lá de generosa que o capital financeiro recebeu do governo Bolsonaro – algo em torno de R$ 1,2 trilhão – torna-se uma quantia ridícula. A Vale do Rio Doce anunciou também uma pequena doação para combater a pandemia; é uma clara tentativa de limpar o nome da empresa diante das centenas de mortos e desastre ambiental das tragédias que ela causou em Mariana (2015) e Brumadinho (2019), que além das centenas de mortos levou a destruição da bacia do Rio Doce – um rio que resistiu a trezentos anos de mineração predatória.
Estamos em uma batalha pelas ideias: de um lado a ideologia burguesa e de outro a possibilidade de os de baixo recuperarem sua identidade e consciência de classe para lutarem contra o mundo hegemonizado pelo capital.
A esquerda radical e marxista pode desempenhar um papel de protagonista nesta disputa pelas consciências.
É hora de combater o bom combate; de levarmos dessa vida para a vida pós pandemia a lição de que não estamos sozinhos, que somos a maioria de 99%.
* Professor e militante da Resistência-SP.
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