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Os povos indígenas sob ataque: o governo Bolsonaro e a agenda de garimpeiros e mineradores

Victor Moryama (https://www.victormoriyama.com.br)

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Por: Ana Carolina Reginatto*, do Rio de Janeiro, RJ

Ao longo de sua trajetória como deputado federal, Jair Bolsonaro não poupou ataques às comunidades indígenas. De maneira obsessiva, o então deputado afirmava, entre outras coisas, que “a política unilateral de demarcar terra indígena por parte do Executivo [deveria] deixar de existir”. Eleito presidente da República, em entrevista ao Brasil Urgente da TV Bandeirantes, Bolsonaro reafirmou seu posicionamento ao declarar: “(…) no que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena” – criticando o que seria uma “indústria da demarcação de terras”.

Entre os muitos ataques aos povos indígenas prometidos a diferentes bases eleitorais em sua campanha, a liberação da mineração nos territórios dessas comunidades se constituiu como uma importante plataforma.

O interesse sobre essas terras se intensificou, sobretudo, com o avanço de projetos minerais na Amazônia ao longo da última ditadura. Em 1983, o então presidente João Figueiredo, editou um decreto autorizando a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) a regulamentarem as normas necessárias para permitir a pesquisa e a lavra de minérios em terras indígenas, por empresas privadas nacionais.

Já em meio aos debates da Assembleia Nacional Constituinte, em maio de 1987, o presidente da FUNAI à época, Romero Jucá, tentou finalmente regulamentar a matéria em uma só canetada, através da Portaria nº 1/87 – numa clara manobra para tentar se antecipar ao que poderia ser definido pela nova carta constitucional e influenciar seus legisladores. Foi, no entanto, impedido pelo ministro de Minas e Energia, Aureliano Chaves, sob o argumento de que era necessário esperar o que seria estipulado constitucionalmente.  (1)

O texto aprovado em 1988 prevê a regulamentação da mineração em terras indígenas, definindo a competência exclusiva do Congresso Nacional para autorizar a exploração e o aproveitamento dos recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais nesses territórios, desde que ouvidas as comunidades afetadas, assegurando-lhes, ainda, a participação nos resultados da lavra, na forma da lei.  (2) Ademais, o Brasil também é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que estabelece, entre outros pontos, que os governos devem implementar procedimentos de consulta aos povos interessados antes de empreender ou autorizar programas de prospecção ou exploração de recursos existentes em terras indígenas – concedendo, sempre que possível, participação das comunidades nos benefícios que tais atividades produzam e indenização a qualquer dano causado.

Ao longo dos anos algumas tentativas de regulamentação da matéria tramitaram, sem sucesso, no Congresso Nacional – incluindo o PL nº 1.610 de 1996, de autoria do então senador Romero Jucá. Em fevereiro deste ano, no entanto, o governo Bolsonaro enviou um novo projeto à Câmara dos Deputados. O texto encaminhado abre para a exploração econômica não só os recursos minerais, mas o potencial hidráulico, além da extração de petróleo e gás. As comunidades deverão ser ouvidas previamente, mas só terão poder de veto quando se tratar de atividade garimpeira.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), embora tenha afirmado, em novembro do ano passado, que arquivaria o projeto assim que o recebesse, determinou sua distribuição para uma comissão especial. Dessa forma, o PL não tramitará pelas comissões permanentes da Câmara, sendo analisado apenas por um colegiado específico. Apesar de receber lideranças indígenas e movimentos sociais, Maia nunca foi e nem pode ser tratado como um aliado.

A base eleitoral bolsonarista nos garimpos

Os laços da família Bolsonaro com o garimpo são antigos. Na década de 1980, o pai de Jair, Percy Geraldo Bolsonaro, exerceu a garimpagem em Serra Pelada (PA). Além disso, uma das figuras mais emblemáticas do garimpo no país teria sido uma espécie de “padrinho” político de Jair Bolsonaro.

Sebastião Rodrigues de Moura, mais conhecido como “major Curió”, participou das campanhas militares empreendidas contra a guerrilha do Araguaia entre 1972-1975 e, pela eficiência dos serviços prestados, acabou destacado como interventor em Serra Pelada em 1980. Nos três anos em que comandou o maior garimpo a céu aberto do mundo, costumava dizer que seu revólver era o que “cantava mais alto”. Foi nesse período que conheceu Jair Bolsonaro.

Anos depois, em 1986, cumprindo mandato como deputado federal, Curió enviou uma carta a Bolsonaro afirmando que gostaria de “passar o bastão” ao capitão na luta contra a “maior das ditaduras, o comunismo”. O antigo interventor de Serra Pelada foi o autor da frase “quem procura osso é cachorro” que, durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (2011-2014), estampou um cartaz pendurado na entrada do gabinete de Jair Bolsonaro.

Curió com garimpeiros de Serra Pelada.

 

Antes e depois de eleito, o presidente da República buscou construir e manter uma base de apoio forte nos garimpos, sempre deixando claro que a liberação da exploração mineral em terras indígenas incluiria não só empreendimentos tocados por mineradoras, mas também a atividade garimpeira.

Ainda em 2017, ocasião em que se apresentava como pré-candidato à Presidência, Bolsonaro apregoava que as riquezas minerais deveriam ser liberadas para a extração por brasileiros e que era preciso, portanto, “parar de tratar garimpeiro como bandido”. Em julho do ano seguinte, Bolsonaro recebeu um abaixo-assinado com reivindicações de mais de 500 líderes do garimpo. À época, o então deputado se comprometeu a buscar meios para que a atividade pudesse se desenvolver “com dignidade e segurança”. Já durante a corrida presidencial, um de seus filhos foi ao Pará conversar com diretores da Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Serra Pelada – entidade representativa de cerca de 40 mil garimpeiros.

Depois de eleito, o novo presidente continuou a sinalizar a liberação da mineração em terras indígenas. Em abril de 2019, Bolsonaro afirmou: “em Roraima, tem trilhões de reais embaixo da terra. E o índio tem o direito de explorar isso, de forma racional, obviamente. O índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica”. Alguns meses depois, em reunião com os governadores dos estados da Amazônia Legal, declarou que “hoje se o garimpo é ilegal, queremos legalizar”.

A boa relação com os garimpeiros, no entanto, sofreu certo abalo a partir da implementação de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para conter as queimadas na Amazônia, em 23 de agosto de 2019. Se até então, os garimpeiros tinham apoiado os cortes de verba para a fiscalização feita pelo ICMBio e pelo o Ibama, a GLO acabou permitindo o uso da Força Nacional na repressão aos garimpos ilegais na região. Nas palavras de Vilela Inácio de Oliveira, um dos líderes da atividade na Amazônia:

(…) O Bolsonaro cortou a verba do ICMBio e do Ibama e eles estavam deixando nós trabalharmos tranquilo [sic]. [Com a GLO] soltou o Exército para servir de bate-pau para Ibama e para ICMBio, mais a Força Nacional. Aí eles fizeram a farra, né? Essa GLO, ela foi o fim da picada. (3)

Em resposta ao desconforto dos garimpeiros, o presidente recebeu um grupo de lideranças de Serra Pelada, Roraima, Rondônia e Mato Grosso na porta do Palácio do Planalto, no dia 1º de outubro de 2019, e se comprometeu novamente a encontrar uma forma de apoiar a atividade. Logo em seguida, em evento patrocinado por empresários paulistas no dia 10 daquele mês, reafirmou o compromisso do governo em legalizar o garimpo em terras indígenas.

A GLO na Amazônia durou até o dia 24 de outubro de 2019. Recentemente, o governo exonerou o diretor do Ibama, Olivaldi Azevedo, após uma reportagem do Fantástico (TV Globo) mostrar uma megaoperação do órgão para retirar madeireiros e garimpeiros ilegais de terras indígenas no Pará.

As grandes mineradoras e o Ministério de Minas e Energia (MME)

Enquanto o presidente se empenha para manter sua base de apoio junto aos garimpeiros, a Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do MME mantém estreito diálogo com o empresariado – sobretudo com a principal entidade do setor, o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM).

Sob a capitania de Alexandre Vidigal, no final de março deste ano, a Secretaria teve um papel importante na articulação empresarial junto ao MME para assegurar a manutenção das atividades minerárias em meio a pandemia de coronavírus.  Além disso, desde o início do governo Bolsonaro, Vidigal tem participado ativamente de encontros com empresários do setor.

Há cerca de um mês, foi o chefe da delegação brasileira em evento da Prospectors & Developers Association of Canadá – o PDAC 2020. Na ocasião falou abertamente da proposta do governo federal em regulamentar a mineração e outras atividades econômicas em terras indígenas. A comitiva do país contou, ainda, com a participação de Wilson Brumer, presidente do conselho diretor do IBRAM. Ao final do evento, Brumer assim definiu a “performance” de Vidigal:

O governo brasileiro afirma e age para aumentar e diversificar a produção mineral e isso abriu os olhos dos investidores durante o PDAC. A perspectiva é de reverter uma situação em que quase 40% do território brasileiro se encontravam indisponíveis [sic] para a pesquisa e o desenvolvimento de mineração. A abertura de novas áreas para a atividade, como anuncia o governo brasileiro, aumenta significativamente a perspectiva do país no setor. (4)

A fala de Brumer comprova como a regulamentação da mineração em terras indígenas já está no horizonte de possibilidades para a expansão do capital no setor. Contrariando o posicionamento do próprio IBRAM, que insiste em afirmar, ora que exploração em terras indígenas está “fora da pauta” da entidade “há décadas”, ora que a regulamentação da matéria só é “factível” se houver “plena segurança jurídica”.

Para os povos indígenas, a depender do governo, de garimpeiros e empresários, as perspectivas de futuro são tenebrosas. O presente, tampouco, é animador. A fragilização da repressão aos garimpos ilegais em suas terras, bem como a própria manutenção da atividade mineradora, podem servir como importantes vetores de disseminação do Covid-19 nas comunidades.

*Ana Carolina Reginatto é doutora em História (UFRJ) e membro do Grupo de Trabalho Empresariado e Ditadura e do Grupo de Trabalho e Orientação (GTO), coordenado pela professora Virgínia Fontes.

 

 

NOTAS

1 – REGINATTO, Ana Carolina. A Ditadura empresarial-militar e as mineradoras (1964-1988). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019.

2 – Artigos 49 e 231.

3 – https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/10/13/exclusivo-mensagens-mostram-a-furia-de-garimpeiros-por-fechamento-de-garimpo-ilegal.ghtml

4 – http://portaldamineracao.com.br/ibram/para-ibram-pdac-2020-vai-resultar-em-excelentes-negocios-em-mineracao-no-brasil/

 

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