O desprezo do “cidadão de bem” com a saúde vem dos tempos da escravidão
Publicado em: 18 de abril de 2020
Colunistas
Ademar Lourenço
Direita Volver
Coluna mensal que acompanha os passos da Nova Direita e a disputa de narrativas na Internet. Por Ademar Lourenço.
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“A sífilis sempre fez o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente criada dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. O sangue envenenado rebentava em feridas. Coçavam-se então as perebas, tomavam-se garrafadas, chupava-se caju. (…) No ambiente voluptuoso das casas-grandes, cheias de crias, mulecas, mucamas é que as doenças venéreas se propagaram mais à vontade através da prostituição doméstica – sempre menos higiênica que a dos bordéis. Em 1845, Lassance cunha escrevia que o brasileiro não ligava importância à sífilis, ‘doença como que hereditária e tão comum que o povo a não reputa um flagelo, nem tampouco a receia.”
Esta passagem do livro “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, mostra como nossas elites historicamente lidam com a disseminação de doenças. Não é de se espantar que os descendentes bastardos da Casa Grande estejam na campanha contra o isolamento social. A negligência com a saúde vem de longe. A diferença é que no lugar do caju e das garrafadas, o remédio receitado é a cloroquina, cheia de contraindicações, efeitos colaterais e até hoje sem efeito comprovado.
Um fato importante deste trecho é como alguns membros da Casa Grande não se preocupavam com a própria saúde. A ignorância era tão grande que eles colocavam a vida em risco para manter seus privilégios. O escritor João Silvério Trevisan denunciou isto em seu livro “Devassos no Paraíso”. Ele conta como a doença era até bem vista por alguns: “a sífilis era tida como sintoma de virilidade, de modo que os homens ostentavam com orgulho sinais sifilíticos, presentes em seus corpos – como contou o alemão Carl von Martius. Os rapazes sem essas marcas eram, ao contrário, ridicularizados e considerados virgens ou menos machos”.
Durante 350 anos de escravidão legal no Brasil, a maioria da população foi tratada como mercadoria. Isto trouxe sequelas à nossa cultura. Uma delas é o pouco valor dado à vida humana. O chorume de ódio e ignorância parte de nossa elite e transborda na classe média. É a pandemia da indiferença. Uns são tão estúpidos que desprezam o risco à própria vida. Outros, mais ricos e espertos, já têm seus respiradores particulares à espera.
Talvez o governo faça uma campanha mostrando que contrair a Covid-19 é um orgulho, sinal de que a pessoa é trabalhadora e não fez o Brasil parar. Assim como a sífilis era sinal de “macheza” nos tempos da escravidão.
Para eles, a morte só tem valor se for para culpar alguém
O desprezo que eles têm pela vida não se mostra apenas no caso da pandemia do novo Coronavírus. Como exemplo, temos a campanha pela retirada dos radares das estradas em 2019. E também contra a cadeira especial para crianças em carros. Os acidentes de trânsito matam 40 mil pessoas por ano. Mas para o bolsonarismo, o importante é a “liberdade individual” do cidadão para arriscar a vida e colocar as vidas dos outros em risco.
Eles defendem a prisão e o assassinato de usuários de drogas ilegais. Mas se esquecem que a droga que mais mata no Brasil é o álcool, com 100 mil vítimas por ano. A defesa da guerra às drogas não é preocupação com a vida, é desculpa para que a polícia prenda e mate mais gente.
Isto mostra o quanto a “defesa da vida” que eles fazem é seletiva. Assim como a “luta contra a corrupção”. Quando eles se dizem preocupados com os assassinatos que ocorrem no país, não se trata de preocupação com a vítimas. Se trata de legitimar a violência policial, inclusive contra crimes que não são violentos.
Entre estes vários assassinatos estão os feminicídios, que é a morte de mulheres, na maioria dos casos, por seus companheiros. O que os bolsonaristas fazem? Pouco caso e até chacota. Entre estes vários assassinatos estão crimes casuais, causados por brigas entre pessoas comuns. E eles defendem o aumento do número de armas circulando no país. Parte destes assassinatos são cometidos pela polícia. Neste caso, os bolsonaristas até comemoram.
A morte para eles só tem valor se for para a culpar alguém de quem eles não gostam. Eles não estão preocupados com os fetos que são abortados, querem é culpar as mulheres que interrompem a gravidez. A comoção com algumas mortes é só um meio de ganhar a opinião pública. É um meio de legitimar outras mortes.
Quando o “cidadão de bem” causa uma morte por ser irresponsável no volante, por ter bebido ou por ser descuidado com a contaminação pela Covid-19, ninguém fala que “bandido bom é bandido é morto”. O “bandido morto” só é o negro, o pobre, o morador de favela, a mulher que aborta, o usuário de drogas, o trabalhador que não quer se arriscar com o novo coronavírus. Os bolsonaristas não se preocupam com a vida. Apenas se acham no direito de escolher quem vai morrer.
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