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TEORIA

Que tipo de organização é necessária para a revolução hoje?

Alexandre Barbosa, do Rio de Janeiro, RJ.

Essa é a pergunta de um milhão de dólares da esquerda revolucionária. É um tema muito amplo e complexo, e a sua resposta é uma construção pautada na atualização dos nossos clássicos e exemplos históricos, contextualizando as leituras das diversas tradições da esquerda. Portanto esse texto, fruto de parte do meu trabalho de mestrado, não pretende abordar todos aspectos envolvidos na discussão, mas apenas busca uma reflexão inicial sobre um dos aspectos do tema, que dividiu a esquerda inúmeras vezes e, em muitos momentos, com todos os lados dizendo reivindicar uma mesma tradição – a leninista –, mas acusando o outro de não segui-la. Ao vermos a situação da fragmentação da esquerda revolucionária, temos a dimensão da importância do debate sobre o tema da concepção de organização.

Veremos que essa concepção defendida por Lenin vai mudando quando existem mudanças na situação política. Afinal o partido não pode ser estático e precisa se adaptar à realidade. O partido que atua sobre um regime democrático burguês não pode ser organizado da mesma forma que um partido que atua na clandestinidade perseguido por uma ditadura.

Vamos tomar como ponto de partida para as polêmicas sobre concepção de partido as posições defendidas por Lenin em 1903 no congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Vamos dialogar com Pierre Broué, em seu livro O Partido Bolchevique. Este autor afirma que o debate sobre programa no interior do partido transcorre sem grandes divergências entre bolcheviques e mencheviques. As principais divergências surgem com os economicistas. Segundo Broué, Lenin, sob o argumento de que o movimento operário não poderia ser refém da burguesia, rejeita as teses economicistas, que defendem que o único caminho para os marxistas russos é apoiar as reivindicações econômicas dos trabalhadores e participar da oposição liberal.

Conforme afirma o autor, Lenin e Martov estiveram juntos no debate programático e se dividiram quando o debate avança para os temas referentes ao tipo de partido que era necessário para organizar os socialistas. Essa se torna a grande polêmica desse congresso e que divide os revolucionários até hoje.

Os dois dirigentes discordaram enquanto Lenin defendia a organização de um partido com fronteiras bem definidas, onde existam critérios rígidos para alguém ser considerado membro do partido. Martov defendia critérios mais flexíveis para considerar uma pessoa membro do partido. Propunha uma fórmula que abarque todos aqueles que colaboram regular e pessoalmente sob a direção de uma de suas organizações.

Para Lenin, na Rússia do início do século passado, o partido deveria ser composto de militantes clandestinos já que a clandestinidade era uma necessidade sob a autocracia czarista – com dedicação extrema e com muita disciplina. Essa concepção impunha alguns critérios fundamentais para ser membro da organização. Como o partido era a vanguarda da classe operária todo militante deveria participar de reuniões regularmente, centralizar-se pela posição da maioria e sustentar financeiramente a organização.   

Dadas as condições da Rússia no início do século 20, o partido operário deve ser integrado por revolucionários profissionais. Para enfrentar a polícia do Estado czarista, a arma principal do proletariado deve ser uma organização rigorosamente centralizada, sólida, disciplinada e o mais secreta possível. Composto de militantes clandestinos, o partido se concebe como “a ponta de lança da revolução”, como o estado-maior e a vanguarda da classe operária. (1)

Ao contrário do que muitos avaliam, Lenin defendia uma ampla democracia e liberdade de debates no interior do partido. Sua concepção estava ancorada na realidade, na situação concreta da luta de classes, e esta não é imutável. No debate sobre o balanço do congresso de 1906, por exemplo, Lenin apresenta o seguinte questionamento frente a uma resolução do Comitê Central, que não permite críticas públicas às resoluções:

Ao examinar a substância desta resolução, vemos vários pontos estranhos. A resolução diz que “nas reuniões do Partido”, “liberdade total” deve ser permitida para a expressão de opiniões pessoais e críticas (§1), mas em “reuniões públicas” (§2) “nenhum membro do Partido deve convocar a ações que contrariem as decisões do Congresso”. Mas veja o que resulta disso: nas reuniões do Partido, os membros do Partido têm o direito de pedir ações que contrariem as decisões do Congresso; mas em reuniões públicas não lhes é “permitida” a liberdade total para “expressar opiniões pessoais!! (2)

Mais adiante argumenta:

Aqueles que elaboraram a resolução têm uma concepção totalmente errada da relação entre a liberdade de criticar dentro do Partido e a unidade de ação do Partido. A crítica dentro dos limites dos princípios do Programa do Partido deve ser bastante livre (lembramos ao leitor aquilo que Plekhanov disse sobre esse assunto no Segundo Congresso do POSDR), não apenas nas reuniões do Partido, mas também nas reuniões públicas. Tal crítica, ou tal “agitação” (porque a crítica é inseparável da agitação) não pode ser proibida. A ação política do partido deve ser unida. Nenhuma “convocação” que viole a unidade de ações definidas pode ser tolerada tanto em reuniões públicas, como em reuniões do Partido ou na imprensa do Partido. Obviamente, o Comitê Central definiu a liberdade de criticar imprecisamente e de forma muito estreita, e a unidade de ação de modo impreciso e amplo(3)

E conclui afirmando:

A resolução do Comitê Central é essencialmente errada e contradiz as Regras do Partido. O princípio do centralismo democrático e da autonomia das organizações partidárias locais implica uma liberdade universal e plena de crítica, desde que isso não perturbe a unidade de uma ação definida; exclui todas as críticas que perturbem ou dificultem a unidade de uma ação decidida pelo Partido. Pensamos que o Comitê Central cometeu um grande erro ao publicar uma resolução sobre essa importante questão sem antes discuti-la na imprensa do Partido e nas organizações do Partido; tal discussão teria ajudado a evitar os erros que indicamos. Apelamos a todas as organizações do Partido para que discutam esta resolução do Comitê Central agora e expressem uma opinião definitiva a respeito(4)

Lenin, além de defender a liberdade crítica, propõe que todas organizações do partido emitam sua opinião sobre a polêmica que ele apresenta contra o Comitê Central. Ou seja, havia espaço, na visão de Lenin, para se consultar a base sobre a qual deve ser a posição do partido acerca de temas sobre os quais a direção já havia se posicionado.

Nunca foi prática entre os bolcheviques, antes de Stalin chegar ao poder, usar de manobras como o centralismo democrático como arma de perseguição a minorias, pois tinham um entendimento político desse conceito. Zinoviev, mesmo tendo publicamente se colocando contra a insurreição que levou ao poder os revolucionários de 1917 (alertado, assim, sobre a mesma antes de sua realização), foi indicado – depois de uma punição, é verdade – para a presidência da Internacional Comunista pós-revolução. O próprio Lenin quebrou o centralismo, pois para ele este estava hierarquicamente subordinado à política, o eixo central da dinâmica do partido. Broué descreve este fato no trecho a seguir:

Apesar da desilusão de muitos deles e das não menos numerosas deserções, os bolcheviques voltam a empreender as tarefas que haviam iniciado clandestinos antes de 1905. Sem dúvida tampouco eles se veem livres de divergências internas. A maioria queria voltar a boicotar as eleições, desta vez porque a lei eleitoral de Stolypin torna impossível que a classe operária esteja representada equitativamente. Sobre esta questão, Lênin opina que tal consigna, lançada num momento de apatia e indiferença operárias, corre o risco de isolar os revolucionários que, no lugar disso, deveriam se aferrar a todas as ocasiões que lhes ofereçam de desenvolver publicamente seu programa. Tanto as eleições como a III Duma devem ser utilizadas como tribuna dos socialistas que, apesar de não fazerem nenhuma ilusão sobre sua verdadeira natureza, não podem desprezar esta forma de publicidade. Apesar do isolamento em que se encontra dentro de sua própria fração, Lênin não vacila em votar só, junto com os mencheviques, contra o boicote das eleições na conferência de Kotka do mês de julho de 1907. Sem dúvida, os partidários do boicote voltam a tomar a iniciativa depois das eleições, pedindo a demissão dos socialistas que foram eleitos. Estes partidários da “retirada”, conhecidos pelo nome de “otzovistas”, encabeçados por Krasin e Bogdanov, veem aumentar seus efetivos pelo apoio do grupo dos “ultimatistas” do comitê de São Petersburgo, que se manifestam contra toda participação nas atividades legais, inclusive nos sindicatos, intensamente vigiados pela polícia. Por último, Lênin se une à maioria dos bolcheviques, sem poder impedir a separação dos membros da oposição que, por sua vez, se constituem em fração e publicam seu próprio jornal, Vpériod, o segundo deste nome.  (5)

Dirigir uma revolução não é tarefa fácil e muitas vezes a realidade impõe situações-limite. O tratado de Brest-Litovski foi um desses momentos. E o partido quase se dividiu. Tais situações podem exigir a implementação de regimes especiais temporários, como uma exceção, para garantir a unidade no partido na ação.

“Após a decisão do Comitê Central, um grupo de dirigentes, entre os quais se encontram Bukharin, Bubnov, Uritski, Piatakov e Vladimir Smirnov, se demitem de todas suas funções e reivindicam liberdade de agitação dentro e fora do partido. O Birô Regional de Moscou declara que deixou de reconhecer a autoridade do Comitê Central até que aconteça um congresso extraordinário e a convocatória de novas eleições. Com base em uma proposta de Trotski, o Comitê Central vota uma resolução que garante à oposição o direito de expressar-se livremente no partido. O órgão moscovita do partido, o Sotsial-Demokrat, inicia uma campanha contra a aceitação do tratado no dia 2 de fevereiro. A República Soviética da Sibéria se nega a reconhecer a validade e permanece em estado de guerra com a Alemanha.”  (6)

Como para Lenin a concepção está profundamente ligada à realidade concreta, na guerra civil é proibida a existência de tendências internas no partido. Já que era necessário a máxima disciplina e ação centralizada para derrotar a burguesia internacional que financiava o exército contrarrevolucionário, e em 1921 o partido decidiu abolir temporariamente a existência de tendências e frações internas Mais à frente, algum tempo depois de findada a guerra, isso tentaria ser revertido por alguns bolcheviques, liderados por Trotsky, mas já era tarde. Stalin se consolidava cada vez mais no comando do partido., e o que era para ser temporário tornou-se permanente. O centralismo burocrático, como muitos já anotaram, substituiu o centralismo democrático, ao passo que a ditadura do proletariado se convertia celeremente em uma ditadura burocrática sobre o proletariado. A acusação de “constituir tendências internas” foi utilizada contra inúmeros setores revolucionários do partido, os quais acabaram dele expelidos (e mortos) pela camarilha estalinista que se assenhoreou do poder um pouco antes da morte de Lênin, em janeiro de 1924, e sobretudo depois de 1928. Possivelmente, a decisão de 1921 tenha se mostrado historicamente como um erro. 

Na chamada concepção leninista de partido as posições políticas e emblocamentos podem mudar conforme a conjuntura. Num regime saudável não há uma lógica de luta de frações permanentes que disputam o controle do aparato e sim a busca pela melhor linha política e programática a ser adotada por todos. O apreço pelo livre debate nunca foi uma defesa de um liberalismo pequeno burguês onde a “liberdade” de ação de um indivíduo é mais importante que a ação coletiva centralizada democraticamente. Lenin defendia disciplina e ação centralizada, pois sabia que isso era determinante para enfrentar a poderosa classe inimiga, detentora do leme estatal e seu aparelho coercitivo. O líder bolchevique defendia, como regra, a democracia interna e a liberdade de crítica. Se não fossem as polêmicas não existiram muitos dos clássicos do marxismo que nos referenciamos até hoje. O próprio Lenin fala sobre isso: “A luta que se originou em nosso partido no ano passado foi extraordinariamente positiva; suscitou diversos choques sérios, mas não há luta que não o faça”   (7)

 A humildade, pois ninguém é o dono da verdade, o bom senso e a razoabilidade no tom das discussões são virtudes importantes para tratar desse assunto. A impaciência e a brutalidade são métodos do estalinismo reprovados pelo próprio Lenin em seu testamento político, como nos informa Broué: “No dia 4 de janeiro, Lenin inclui em seu testamento uma nota sobre Stalin, na qual denuncia sua brutalidade, recomendando seu afastamento do Secretariado.”   (8)

Como sabemos, o bolchevismo foi profundamente deformado pelo estalinismo. A consolidação de Stalin no poder gera uma degeneração no regime partidário. As falsificações e o uso descabido da necessidade de “disciplina no partido” “para defender a revolução” viraram uma arma de perseguição politica. As prisões, expurgos e assassinatos aos divergentes tornaram-se uma prática. (9)

A concentração absoluta do poder nas mãos de pequenos grupos dirigentes, a falta de democracia interna, o seguidismo das posições de Moscou e a estratégia da conciliação de classes viraram traços característicos dos partidos comunistas no mundo. Isso também contagiou muito daqueles que rejeitaram o estalinismo e reivindicaram outras tradições do marxismo. Ao analisarmos as crises da maioria das correntes revolucionárias no mundo, o problema de concepção está presente. Deturpações no funcionamento organizacional, ou no “regime interno” como alguns preferem falar, são as principais causas de rupturas entre os revolucionários. A perseguição, ameaça, grosseria, manobra e a mentira como parte dos principais métodos oriundos do estalinismo estão vivas como um vírus dentro de toda esquerda. É possível percebermos isto na forma de polemizar que é usada por algumas correntes contra outras ou em seus próprios debates internos.

Portanto, a tarefa daqueles que buscam reverter a fragmentação da esquerda revolucionária e defendem uma concepção de partido revolucionário referenciada no leninismo é ter consciência que esses problemas existem na esquerda socialista. Ninguém é imune a eles. Trata-se de uma batalha cotidiana e consciente dos militantes e dirigentes em primeiro lugar. Nesse sentido, a paciência, a generosidade, a disposição de ouvir e pensar sobre o contraditório são virtudes fundamentais que devemos procurar preservar.  

Paciência para ouvir e tentar entender a posição do outro sem preconceitos, mesmo que as achemos por demais equivocadas. Todo mundo pode errar e acertar. Ninguém é o dono da verdade. Por mais letrado e experiente que seja.

É preciso ter generosidade para se compreender que as pessoas podem errar e mudar. A história do marxismo tem como marca a crítica e a autocrítica, e as organizações e militantes devem incorporar isso em sua prática. Ao se chegar às conclusões, precisamos entender que as mudanças de opiniões são um mérito. Dignas de todo respeito. Se não for assim, nunca será possível invertermos o vetor da dispersão da esquerda socialista e avançar em novas elaborações coletivas.  

Por fim, temos muita admiração e respeito pelos grandes revolucionários da história, mas – e me perdoem pelo truísmo – não somos Lenin, Rosa ou Trotsky, e não vivemos na mesma realidade que eles viveram. Não somos, por óbvio, o partido bolchevique que esteve à frente da revolução. Somos frágeis, inexperientes e, justamente por isso, precisamos ser ainda mais humildes. Não podemos viver de analogias. Precisamos construir nosso próprio caminho. O processo de construção de uma concepção de organização revolucionária é permanente e feito a quente, a partir de referências históricas. Os seus alicerces centrais podemos buscar nos clássicos, mas ela deverá refletir a situação política concreta em que vive Não existem manuais e esquemas que dão conta de todos os problemas e temas. Portanto, está nas nossas mãos fazer melhor do que já fizemos até hoje.

 

NOTAS

1 –  BROUÉ, Pierre. O partido Bolchevique. São Paulo: Sundermann, 2014. p. 33.

2 –  LENIN. Vladimir Ilich. Centralismo Democrático: Liberdade para Criticar e Unidade de Ação. Disponível em: https://bit.ly/2PX5tZb. Acesso em: 11 de mar. de 2019.

3 –  LENIN. Vladimir Ilich. Centralismo Democrático: Liberdade para Criticar e Unidade de Ação. Disponível em: https://bit.ly/2IqGKrZ. Acesso em: 11 de mar. de 2019.

4 –  LENIN. Vladimir Ilich. Centralismo Democrático: Liberdade para Criticar e Unidade de Ação. Disponível em: https://bit.ly/3ayZRfC. Acesso em: 11 de mar. de 2019.

5 – BROUÉ, Pierre. O partido Bolchevique. São Paulo: Sundermann, 2014. p. 40

6 – Idem. p. 114.

7 –  Idem. P 117

8 –  Idem. p. 170

9 –  Nos livros Minha vida e Os processos de Moscou de Leon Trostky é possível ter dimensão desses fatos terríveis que se abateram sobre os comunistas da Rússia a partir da consolidação de Stalin no poder. E de certa forma essa metodologia persecutória se alastrou pelos partidos comunistas do mundo. No PCB desde os anos 30 com a perseguição aos trotskistas passando pela expulsão dos divergentes da década de 1960 essa prática se estabeleceu como forma para vencer a luta política.