Por: André Guiot*
Diante do cenário de pandemia do covid-19 no Brasil, as entidades de representação dos interesses empresariais estão agindo, ao que parece, de forma coesa, precisa e militante ao atendimento, junto ao Estado, de suas demandas mais urgentes.
Um levantamento preliminar das manifestações de alguns aparelhos de hegemonia tradicionais e/ou corporativos da grande burguesia brasileira nos indica que se movem numa orientação política e econômica de assegurar suas taxas de lucro e investimentos em detrimento à legislação protetiva do trabalho e, simultaneamente, a menosprezar a capacidade destrutiva do covid-19 na saúde de milhões de trabalhadores e trabalhadoras.
Desta forma, há entidades patronais que, sem manifestarem claramente suas posições quanto ao isolamento “ampliado” ou “seletivo”, reclamam medidas de auxílio ao governo para seus setores (em parte atendidas), como desoneração imediata da folha de pagamentos e recriação de um imposto nos moldes da antiga CPMF (caso da Confederação Nacional de Serviços), criação pelo governo de condições de hedge cambial (1) para que empresas importadoras se protejam da alta do dólar e aceleração da política de abertura comercial, como a Confederação Nacional do Comércio (CNC), prorrogação de benefícios tributários e de pagamento de dívidas de crédito e impostos, como a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a qual se posicionava contra o isolamento social em documento publicado em 25 de março (2), medidas estas atendidas por meio da publicação da Resolução 4801 do Conselho Monetário Nacional (CMN) em 09 de abril.
A Federação Brasileira dos Bancos (FEBRABAN) apresentou, muito tardiamente (dia 07/04), um conjunto de medidas do setor “para o enfrentamento do covid-19”. Parte das medidas deve-se à luta reivindicativa dos bancários para assegurar proteção nos locais de trabalho, esforço este que se precipitou em razão do falecimento, por covid-19, de uma bancária no Vila Santander Paulista, no dia 2 de abril. (3)
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), sob liderança de Paulo Skaf, demandou do governo medidas como o acesso ao crédito bancário com intermediação do Tesouro Nacional, prorrogação do pagamento de tributos estaduais e federais, redução das taxas de juros, ampliação imediata de linhas de crédito, linha de capital de giro no BNDES, BB e CEF para grandes, médias e pequenas, flexibilização da legislação trabalhista facilitando o trabalho remoto em casa e antecipação de férias, entre outros pontos.
Tais demandas revelam práticas e métodos historicamente recorrentes (nada triviais) das organizações corporativas empresariais no Brasil: o imediatismo, o setorialismo, o célere saque ao fundo público, a busca por influência nas decisões governamentais, mobilizando e lubrificando seus circuitos e sistemas. Por outro lado, e com igual força, atua para silenciar, oxidar e obstruir as reivindicações e aspirações dos “de baixo”, concentrando lucros e socializando os prejuízos; constrangendo e afunilando alternativas benéficas aos trabalhadores, de modo a tolher preventiva e ininterruptamente planos de ação mais audazes, disruptivos, socializantes e igualitários.
A rapinagem e a coerção são atributos constitutivos da operacionalização (continuamente atualizadas) das formas de organização da dominação de classes no Brasil, combinando-as com táticas consensuais cada vez mais aperfeiçoadas, refinadas, ressignificadas e justapostas – o maior exemplo disto talvez seja a propaganda em torno da doação de recursos destinados ao combate à pandemia.
O que interessa, de fato, às associações e entidades do/para o patronato é a ampliação de suas margens de lucro e de controle econômico, político e ideológico da classe trabalhadora. Se isto for alcançado, tanto por meio de “medidas compensatórias” apresentadas como “humanitárias”, como através de duras retiradas de direitos e garantias básicas, o grosso do quinhão já foi abocanhado não apenas por meio da pilhagem do fundo público, mas também através da voraz expropriação de direitos e aviltantes formas de subtração de sobretrabalho.
Tendo como horizonte estas considerações, destacamos aqui o papel de uma das mais importantes entidades empresariais no cenário atual de disseminação do covid-19: a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a qual publicou dois breves artigos, de autoria de seu próprio presidente, Robson Braga de Andrade, um intelectual orgânico de grande peso, alçando papel de destaque tanto na campanha golpista e contrarreformista que culminou na queda do governo de Dilma Rousseff em 2016 quanto nas políticas draconianas postas em prática durante o governo Temer.
A posição da CNI (Confederação Nacional da Indústria)
Em 29 de março de 2020, a CNI, através da “Agência CNI de Notícias”, divulgou documento intitulado “Como atenuar os efeitos do coronavírus na economia” de autoria do presidente da Confederação, Robson Braga de Andrade. Nele, embora classifique como “louvável” o esforço para o isolamento social, alerta para possibilidade de que este “inviabilizasse muitas empresas”. Afirma ainda que a competência das autoridades de saúde no combate à pandemia deveria ser aplicada com igual empenho na “salvaguarda de empregos”.
Andrade revela, sem tergiversações, o sucesso das ações de ingerência de alguns aparelhos de hegemonia empresariais, tais como federações estaduais, o Fórum Nacional da Indústria (FNI) e a própria CNI junto aos aparatos estatais, através de autoridades do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, ações estas apresentadas como “propostas de medidas cruciais para atenuação da atual crise”. Trata-se de propostas centradas nas “áreas de tributação, política monetária, financiamento, regulação e legislação trabalhista” que, segundo Andrade, “já teriam sido encampadas pelo governo”.
O documento da CNI apresenta interesses sensíveis dos trabalhadores, como a preservação de empregos, às demandas empresariais, como “a viabilização dos empreendimentos”. Desta maneira, apela à necessidade de “ajudar o governo a viabilizar o chamado isolamento social vertical de grupos de risco da covid-19” (destaque meu). Para credibilizar a proposta, recorria, de maneira distorcida, às experiências relativamente exitosas da Coréia do Sul e da Alemanha, como “estratégia eficiente para promover o achatamento da curva de propagação do vírus, preservar vidas e reduzir a pressão sobre o sistema de saúde. Ao mesmo tempo, facilita a retomada das atividades produtivas”.
A posição pró “isolamento vertical”, ou “seletivo”, procura compatibilizar os esforços de manutenção dos lucros do grande capital, mal disfarçadamente apresentando-a como “preocupação social”.
A viabilização eficaz do dito “isolamento vertical” requereria “sintonização” entre “setores público e privado”, em que o SESI capacitaria e daria assistência “para a realização de testes rápidos da covid-19, custeados com recursos do governo federal, para 100% dos cerca de 9,4 milhões de trabalhadores da indústria, a cada 15 dias, com isolamento social apenas de pessoas com exame positivo (…)” (destaques meus). Ou seja, a entidade cobra a utilização dos recursos públicos do Sistema Único de Saúde (SUS) para o funcionamento das unidades produtivas de suas empresas, expondo ao risco de contaminação tanto os trabalhadores por elas contratados como a sociedade em geral.
A menos que a proposta da entidade seja confinar a força de trabalho nas plantas produtivas, por um período indefinido e sabe-se lá sob quais condições, a intenção é de absurda insensatez e imprudência, ficando nítido o descaso com a saúde pública e com as vidas humanas, tendo em vista que é amplamente sabido que pessoas assintomáticas contaminadas pelo covid-19 podem espalhar o vírus. (4)
As medidas de conscientização, de credulidade no “trabalho dos profissionais de saúde” e de uma vaga “adoção de medidas emergenciais adequadas” seguem, no documento da CNI, apontadas como “solução” para os enormes desafios sem, contudo, deixar de exigir, oportunisticamente, a “agilização de reformas estruturais que, mais do que nunca, precisam ser implementadas”. A defesa da agenda privatista, expropriadora e precarizadora segue, portanto, sendo a principal agenda da grande burguesia brasileira. Salta aos olhos, aqui, a disjuntiva de garantia da reprodução ampliada dos lucros – “o que mais precisamos agora é de previsibilidade (…)” – em contraposição à garantia do amparo e bem-estar dos trabalhadores, num contexto de veloz agudização da vulnerabilidade social.
A “cura” para os empresários traduz-se no genocídio dos trabalhadores.
Atenuar os efeitos da pandemia…para os patrões
Essa linha de raciocínio continua na posição adotada pela CNI em 02 de abril, quando a entidade publica uma nota intitulada “MP 936 traz avanços para empresas atravessarem crise e preservarem empregos”, apresentada como uma “Medida [que] traz [um] conjunto de alternativas que melhoram condições de empresas permanecerem em atividade e se adequarem ao cenário de redução da atividade econômica”.
Nela, a Confederação considera “positivo o conjunto de medidas trabalhistas anunciado pelo governo federal”, realçando, mais uma vez, a alta permeabilidade das demandas empresariais nos órgãos estatais, afirmando que “as medidas, de forma geral, estão alinhadas com as propostas construídas pelo setor industrial” (destaque meu).
Em seu manifesto, a CNI elogia a MP com o argumento de que esta asseguraria “segurança e maiores possibilidades de adequação às empresas frente ao período de redução da atividade econômica e na mitigação dos impactos nas relações do trabalho”; e de que tais medidas seriam “fundamentais para mitigar o impacto da redução da demanda, do cancelamento de encomendas e da queda do faturamento que o setor industrial vem experimentando”. Medidas que “simplificam o cumprimento de normas trabalhistas”, segundo a CNI, seria, essenciais “em tempos de crise para reduzir a insegurança jurídica”.
Segurança (5), previsibilidade e “simplificação” (leia-se flexibilização) são, de fato, cruciais para liberar o capital de amarras que dificultem a extração máxima de mais-valor. Momentos de profundas crises de superprodução de capitais tornam-se, assim, oportunidades para o capital avançar sobre as poucas garantias sociais, jurídicas e políticas ainda existentes – resultantes de árduas lutas da classe trabalhadora brasileira.
Conclusões
É nítida a construção, por parte do patronato brasileiro, de uma ofensiva brutal do capital sobre o fundo de consumo dos trabalhadores, isto é, sobre a remuneração (direta e indireta) mínima necessária para a reprodução da força de trabalho, e sua conversão em fundos de acumulação de capital. Por conseguinte, o capital obriga a classe trabalhadora a ampliar de jornada de trabalho e/ou dispor-se à precarização como meio de assegurar o mínimo para sua sobrevivência e, paradoxalmente, retroalimentar ampliadamente o circuito de valorização do valor.
Para o capital, trata-se de alcançar o fundo necessário para reprodução da força de trabalho (o trabalho necessário), de forma veloz e abrupta: este é o busílis da questão, como diria Florestan Fernandes, assim como direcionar o fundo público para também fomentar estratégias de expropriação do fundo de consumo. Períodos de manifestações agudas de crise mostram ser mais apropriados, para o capital, de realizar tais propósitos: “não pense em crise, trabalhe”, diria o vampiresco golpista. Cabe à classe trabalhadora, aos movimentos sociais populares e suas organizações construírem vigorosa barreira a este nefasto projeto da barbárie social.
* André Guiot é doutor em História (UFF), Professor da rede municipal de Duque de Caxias e membro do Grupo de Trabalho e Orientação (GTO), coordenado pela professora Virgínia Fontes.
NOTAS
1 – São mecanismos de proteção às empresas contra as bruscas variações do preço do dólar.
2 – “A CNA avalia que medidas para combater o coronavírus, como o isolamento social e o fechamento de bares e restaurantes, têm impactado severamente produtores de bens perecíveis, como hortaliças, frutas, pecuária leiteira e flores (…)”.
3 – Importantes reivindicações manifestadas pelo sindicato dos bancários não foram publicadas no portal da federação patronal, como: fim das demissões até a pandemia; fechamento de agências com bancários infectados ou com suspeitas e quarentena a eles; não exposição dos trabalhadores no setor de atendimento e suspensão de cobrança de metas.
4 – Situação pela qual o próprio Robson Braga de Andrade atravessou: foi um dos 23 contaminados com a covid-19 da comitiva presidencial em viagem aos EUA. Ficou em isolamento e não apresentou sintomas da doença.
5 – Em um texto de apenas duas páginas, a palavra (in)segurança aparece seis vezes.
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