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América do Sul e o Covid-19: diferentes políticas, resultados opostos

Telam

Estátua da personagem mafalda, em Buenos Aires, com uma máscara.

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

No dia 17 de março passado, o presidente Jair Bolsonaro decretou o fechamento da fronteira com a Venezuela, afirmando que aquele país vivia uma situação caótica e que era a fronteira mais sensível. Ao mesmo tempo, insistia em manter as rotas aéreas para os Estados Unidos afirmando que aquele país estava em “situação semelhante à do Brasil”. (1) Passados menos de 30 dias, não apenas os Estados Unidos consolidaram-se como país com maior número de casos (com mais de 30% do total mundial), como o fosso que separa a situação do Brasil e da Venezuela se ampliou enormemente. Neste momento, 12 de abril (antes da atualização diária dos casos brasileiros), o Brasil tem 21.065 casos (o que significa 99 casos por milhão) e 1.144 mortes (ou 5.4 mortes por milhão), enquanto a Venezuela tem 175 casos (6 por milhão) e 9 mortes (0,3 por milhão). A diferença é realmente tão grande assim? Na verdade, provavelmente seja maior, se considerarmos que a Venezuela realizou 6.377 testes por milhão (181.335), enquanto o Brasil realizou míseros e absurdos 296 testes por milhão (62.985). É isto mesmo: embora tendo uma população mais do que sete vezes inferior à do Brasil e enfrentando grave crise econômica, o país vizinho realizou três vezes mais testes em números absolutos, ou 21 vezes mais testes por milhão de habitantes. (2)

Gripezinha ou ameaça nacional?

Com poucos dias de diferença, a maior parte dos países sul-americanos tiveram os primeiros casos entre o final de fevereiro e o início de março, e as mortes em meados de março. Hoje, no entanto, encontram-se em situações absolutamente distintas, em especial se considerarmos o número de mortos por milhão de habitantes, montante elevado no Brasil, Equador, Peru e Guiana, e significativamente mais baixo nos demais países. Os três primeiros países juntos concentram 84% do total de mortos no subcontinente, sendo que mais de dois terços dentre estes estão no Brasil.

 

As diferenças, na realidade, são ainda maiores do que o quadro expressa. Os números oficiais são desmentidos pelos vídeos que mostram centenas de corpos amontoados nas ruas de Guayaquil, ou pela enorme parcela de mortes “suspeitas” de Covid-19 aguardando os resultados de exames que demoram muitos dias para serem feitos, quando o são, no caso brasileiro. Os dados relativos ao número de casos são ainda mais falhos e subnotificados, tendo em vista a política deliberada de restrição à testagem de alguns países, como se observa:

Observamos assim que apenas Bolívia  e Guiana (e provavelmente Suriname fazem menos testes que o Brasil. É verdade que até mesmo os países sulamericanos com maior testagem estão em patamares muito inferiores ao de países  europeus, como Itália, Alemanha e Portugal (todos com mais de 15 mil testes por milhão). Além disto, como se sabe, os testes no Brasil são realizados em pacientes com sintomas graves, o que produz uma dupla distorção: numérica, já que a maior parte dos contagiados não evolui desta forma; e temporal, já que entre o contágio e o agravamento das condições de saúde decorrem inúmeros dias (aos quais somam-se outros da espera pelo resultado).

Isolamento social e política pública de contenção

A diferença de resultados é nitidamente resultado de diferentes políticas tomadas, que fazem com que mesmo países com recursos inegavelmente mais limitados, como o Paraguai, tenham conseguido impor uma barreira de contenção muito mais efetiva. Este resultado foi obtido suspendendo as aulas e eventos públicos assim que o país registrou seu primeiro caso. (3) O caso equatoriano é ainda mais revelador da centralidade das políticas públicas, já que as duas principais cidades do país vivem cenários muito distintos: 

O prefeito de Quito, Jorge Yunda, declarou emergência sanitária em 12 de março suspendendo as aulas em escolas e faculdades, limitando a circulação de veículos, proibição de eventos públicos e aglomerações, entre outras medidas, mas a prefeita de Guayaquil, Cynthia Vitere, ligada à velha direita oligárquica, do Partido Social Cristão-PSC, no início das contaminações estava na mesma linha da subestimação da direita mundial dos alegados negativos impactos econômicos que geram medidas integrais de isolamento social e que as medidas eram competência do Ministério da Saúde, até que ela mesma foi contaminada e na sequência se gerou um caos na cidade. (4)

Pelos números oficiais, a região de Guayas, onde se encontra Guayaquil concentra a maior parte dos casos, enquanto a região de Pichincha, da qual faz parte a capital Quito, tem apenas 440 casos registrados. Ou seja, em um mesmo país, sob um governo violentamente antipopular e repressivo e que promoveu o desmonte do sistema de saúde, produziram-se situações muito distintas, com um desastre provocado pela política genocida do “não pode parar”, que nascida em Milão no final de fevereiro, já correu o mundo e deixou enorme rastro de mortes.

Uma comparação muito elucidativa também é com a Argentina, que estabeleceu uma rigorosa quarentena no dia 20 de março, quando o país registrava 152 casos e 3 mortes. A Argentina teve o primeiro óbito dez dias antes do Brasil, e mesmo assim tem hoje um número muito inferior de mortes, seja em termos absolutos, seja por milhão de habitantes.

É imprescindível acrescentar que em todos os países em que o isolamento social ou quarentena foram estabelecidos e tiveram êxito, que foram garantidos com o estabelecimento de políticas públicas que efetivamente visam o estabelecimento de uma renda mínima emergencial. Ou seja, que mobilizam o fundo público para garantir uma remuneração mínima ao conjunto de trabalhadores precários e informais que ficam impedidos de seguir com seu ganha-pão. Desta forma, ao contrário do comportamento cínico de Bolsonaro, que instrumentaliza o desespero da população para sabotar as medidas protetivas ao mesmo tempo em que criou todo tipo de dificuldade para a liberação da renda emergencial, em países que obtiveram resultados exitosos, como Argentina e Venezuela, a liberação desta renda de forma ampla e desburocratizada foi imprescindível para o êxito da contenção.

 

NOTAS

1 – https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-diz-que-nao-adiou-viagens-dos-eua-porque-situacao-semelhante-do-brasil-mas-pais-tem-16-vezes-mais-casos-24317711

2 – https://www.worldometers.info/coronavirus/

3 – https://www.poder360.com.br/internacional/paraguai-suspende-eventos-publicos-e-aulas-por-causa-de-coronavirus/

4 – https://esquerdaonline.com.br/2020/04/03/a-agonia-do-equador/