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BRASIL

O dia depois de amanhã: coronavírus, luta de classes e o fim do mundo

Gabriel Santos, de Maceió, AL
Reprodução

Cena de filme Tempestade: Planeta em fúria

Recentemente tive que reler o texto “O que é Revolução?”, de Henrique Canary. Este textinho era praticamente obrigatório para aqueles que começavam a militância e compartilhavam aquela que, como dizíamos na época, era a melhor tradição do trotskismo latino-americano. O texto se inicia com uma reflexão feita por Canary sobre como é mais fácil pensarmos sobre a possibilidade de um fim do mundo, do que imaginarmos como seria o fim do capitalismo.

Ao longo da minha infância, foram muitos os filmes pós-apocalípticos. Aprendi que fim do mundo poderia vir por meio de uma guerra com seres de outro planeta, por meio de uma infecção generalizada de um vírus que transformaria metade da população mundial em zumbis, por gigantescos desastres naturais que haviam sido previstos por antigas civilizações, ou até por um confronto entre nossa espécie contra macacos e gorilas. Enfim, as formas do mundo acabar, ou melhor, de chegar ao fim a aventura humana na terra, são diversas.

Parafraseando Canary, é mais fácil pensarmos sobre o fim do mundo do que sobre o fim do capitalismo, e existem muito mais formas de se alcançar o primeiro objetivo do que o segundo. Explico. Para chegar ao fim do modo de produção capitalista é preciso uma longa jornada. Entre outros processos, é necessário tomar o poder, planificar a economia, desenvolver as forças produtivas, combater o imperialismo, expropriar a burguesia, criar um Estado Operário. A revolução, que começa no terreno nacional, precisa se expandir e se encontrar com outros processos também nacionais. Para o fim do mundo, basta que alguém que ocupa a Casa Branca aperte o “famoso botão vermelho”, solte uma bomba nuclear e inicie uma guerra. Ou até um acidente em um laboratório que libera substâncias desconhecidas e assim atingem a humanidade. É provável que quem esteja lendo agora também pense e conheça outras formas de acabar com o nosso planeta.

Hoje, com a pandemia global, é possível que praticamente todas as pessoas se façam as mesmas perguntas: “Quando isto vai passar?” e “Como será quando isto passar?”. São diversos textos feitos que buscam responder estas questões, e diversos deles tem dialogado com as duas ideias que colocamos desde o início deste texto, o fim do mundo e o fim do modo de produção capitalista.

Ultimamente tem crescido, nos mais diversos círculos (ou bolhas), a tese de que o coronavírus seria a morte do modelo neoliberal. Alguns, mais otimistas e pretensiosamente radicais, dizem além. Afirmam que o Covid-19 trará tamanha crise econômica e mudará a consciência das massas de tal forma, que ele será o fim do modo de produção capitalista, o coveiro do capital.

Esta tese é fruto de algo concreto. Muitos dos que há um mês defendiam medidas econômicas neoliberais envergaram o bambu e estão defendendo a aplicação de medidas anti-crise keynesianas e de maior interferência estatal.

O Deus Livre Mercado – essa entidade onipresente e onipotente, que se autorregula e resolveria os problemas e dificuldades de todos e que não aceita os que rompem com o monoteísmo de Sua fé – parece não ter entre sua capacidade a onisciência. Assim, não conseguiu saber que uma crise econômica cada vez mais provável chegaria, e agora novamente falha e não consegue encontrar a solução diante da crise sanitária.

Dessa forma, aqueles que eram os mais fervorosos fiéis deste Deus Mercado recorrem ao paganismo. E gritam, enquanto rodam em círculos, pedindo a ajuda do Estado. “Cadê o Estado?” “Estado, intervenha!”, clamam e pedem em orações aqueles que até duas semanas atrás eram defensores de medidas neoliberais.

Os fervorosos defensores do ajuste fiscal para que o país não quebre, agora solicitam verbas e recursos para saúde, emprego e renda. O dinheiro, antes inexistente, agora é palpável e real.

Fechado este longo parêntese com ar literário, a tese de que o Covid-19 levará a um colapso do sistema, tem base no mundo real. Ela é defendida por vários. Desde grupos e dirigentes trotskistas, passando por aqueles ligados ao maoismo, chegando a intelectuais como o Zizek e Mike Davis, e até o artista plástico Ai Weiwei.

Porém, a tese do fim do neoliberalismo após a crise sanitária, é, a meu ver, em demasiado otimista. É importante lembrar que em diversos países do mundo a extrema-direita tem ganhado força e se legitimado nesta pandemia. Diversos governos têm aproveitado a crise para aplicar medidas de retirada das liberdades democráticas.

Na Hungria, Orbán agora governa por decreto, podendo mandar e desmandar. Medidas parecidas e mais repressões acontecem na Índia, onde o governo Modi aproveita para aumentar a perseguição aos muçulmanos do país. Acontecem na Palestina, com os sionistas de Israel avançando contra a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Em outros países, como Tailândia e Indonésia, a repressão também tem aumentado. Na França, Alemanha e outros países europeus a extrema-direita tem usado o discurso nacionalista e anti-imigração, como solução para a crise: “as fronteiras não devem ser mais abertas”, eles dizem.

Isto mostra que o cenário de um mundo pós-coronavírus é incerto. Na luta de classes, diferente de um filme sobre o fim do mundo, não existem atalhos. A única certeza é que hoje, tanto no Brasil como no mundo as coisas mudam rapidamente. Respostas de governos para a crise têm impacto de semanas e meses na consciência das massas. Não existe avenida aberta, a pista está coberta de obstáculos, e nós estamos, ainda, em uma considerável desvantagem.

Muitos parecem acreditar numa versão de Covid-19 que seja o inverso de séries como The Walking Dead. Onde, após o vírus, o que vem não é um apocalipse, mas sim revoluções. O fim do mundo torna-se o fim do capitalismo. Se muitos dos que creem nesta tese do coronavírus como a antessala da revolução não fossem ateus, seria possível dizer que o coranavírus assume o papel de uma espécie de praga bíblica enviado pelo divino para derrubar um modo de produção e punir os capitalistas pelos seus pecados. Semelhante às pragas que Jeová enviou para o Egito. Porém, mesmo assim, ainda nos faltaria um Moisés, ou seja, alguma organização para orientação política das massas.

A tese “não apocalíptica” descrita acima, parece se assemelhar à lógica do “quanto pior melhor”. Justamente por isto existem aqueles momentos onde é sempre constrangedor relembrar o óbvio. E, nesta situação, é preciso afirmar que crises econômicas, desemprego, morte de milhares, fome, não são bons cenários para a classe trabalhadora.

No futuro, quando isso passar, vai existir luta e resistência, e o cenário sobre como será o mundo que “vai surgir” no dia depois do amanhã é incerto, mas ele é desenhado desde já, na divulgação e campanhas de solidariedade entre nossa classe que acontecem, por exemplo, estão as sementes que plantamos hoje e buscamos colher no futuro. Por fim, não cabe a um vírus fazer o papel que seria de uma organização revolucionária: mobilizar a classe.

 

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