A PEC do Orçamento de Guerra: quem paga os custos da emergência sanitária?


Publicado em: 9 de abril de 2020

Brasil

Jorge Alves, do Rio de Janeiro, RJ

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Foi aprovada pela Câmara dos Deputados, no último dia 03 de abril, um substitutivo à Proposta de Emenda Constitucional 10/2020, conhecida como a PEC do Orçamento de Guerra. Trata-se de um conjunto de mudanças constitucionais voltadas a responder ao presente período de calamidade pública, em decorrência do enfrentamento à pandemia de Covid-19. A proposta segue agora à discussão no Senado.

Dentre outras medidas contidas nesse projeto, caberia destacar: 

– a criação de um Comitê de Gestão da Crise, a ser presidido pelo Presidente da República;

– a consagração ao STF da competência para julgar eventuais conflitos federativos no atual contexto;

–  a flexibilização das normas relativas à contratação de pessoas, obras, serviços e compras;

– a flexibilização também de aspectos parciais da Lei de Responsabilidade Fiscal, suspendendo, ainda, a chamada “regra de ouro”, o que permitirá, no atual exercício, que o Estado contrate novas dívidas para custear despesas correntes;

– a atribuição ao Congresso Nacional de mecanismos para supostamente impor freios a eventuais abusos do Comitê de Gestão, durante a calamidade.

Felizmente, não foi incorporado, por sua vez, um conjunto de emendas que buscavam embutir nessa PEC a redução dos vencimentos do funcionalismo público. 

O sentido geral do projeto é a criação de orçamento paralelo para os gastos emergenciais impostos pelas atuais circunstâncias, a fim de evitar ecos dessas mesmas despesas nos próximos exercícios fiscais. Em vez de revogar a EC 95, do teto dos gastos, e o conjunto dos pressupostos neoliberais adotados nos últimos anos, o Congresso Nacional reafirma com nitidez a natureza excepcional e transitória dos novos investimentos públicos. Embora o arcabouço legal do estado de calamidade, reforçado pela intervenção do ministro do STF Alexandre de Moraes, já permitisse a contratação de novas despesas, o governo tem insistido na pressão por “maior segurança jurídica” para operar.

para a burguesia todo e qualquer gasto público emergencial nas atuais circunstâncias deve ser entendido como uma contingência momentânea

Em resumo, longe de apontar para um maciço investimento de longo prazo para combater a pandemia e fortalecer o SUS e o conjunto dos serviços públicos, a PEC do orçamento de guerra sinaliza que, para a burguesia – seja a representada pelo governo Bolsonaro, seja a representada pela oposição de direita – todo e qualquer gasto público emergencial nas atuais circunstâncias deve ser entendido como uma contingência momentânea, sem comprometer a estratégia neoliberal de seguir com a agenda de contrarreformas e precarização dos serviços públicos. Em outras palavras, a conta dos gastos emergenciais será, no fim das contas, repassada ao povo –  tão logo quanto possível.

A medida preocupa precisamente porque não é difícil prever uma inevitável recessão no curto e médio prazo, o que tendencialmente aponta para a queda na renda dos mais pobres e na arrecadação nos próximos anos. Significa que, passada a fase mais crítica do combate ao Covid-19, se o governo e o Congresso retornarem aos expedientes regulares impostos pelas regras do teto de gastos, os efeitos de uma nova onda de ajuste fiscal tendem a ser ainda mais duros para a classe trabalhadora, até mesmo em relação ao que já experimentamos desde o governo Temer.

Para coroar essa lógica sobre quem paga as contas do combate à pandemia, a PEC do orçamento de guerra foi enxertada, ainda, com uma medida escandalosa. Após a flexibilização dos depósitos compulsórios, os bancos poderão ganhar um novo afago – enquanto os trabalhadores em situação mais frágil seguem a batalha para resgatar o seu auxílio de R$ 600.  É que o texto da PEC deu novas atribuições ao Banco Central, dentre elas a possibilidade de comprar títulos privados nos chamados mercados secundários. Em outras palavras, o BC poderá presentear os bancos com enorme generosidade, assumindo o risco por papéis de confiabilidade muito duvidosa: títulos podres, se pudermos abandonar os eufemismos. 

Essa medida é inspirada no modelo do chamado quantitative easing, expediente generalizado em nível mundial por ocasião do estouro da crise econômica, em 2008. Em linhas gerais, a medida supostamente visaria a promover a liquidez do sistema financeiro, esperando que os bancos aumentassem progressivamente a oferta de crédito no varejo, o que alegadamente se reverteria em estímulo ao consumo e ao investimento.

Os bancos, que se livrarão de um potencial passivo, não estarão obrigados a nada, nem sequer precisarão suspender o pagamento de dividendos

Afora as possíveis críticas mais de fundo à eficácia e à justiça desse tipo de política monetária, o fato é que a PEC do orçamento não prevê qualquer exigência de contrapartida aos bancos. O BC não terá qualquer limite para o montante total a dispor nessas operações, cabendo ao tesouro nacional entrar com até 25% de uma possível fortuna a ser despejada nos cofres das instituições financeiras. Enquanto isso, os bancos, que se livrarão de um potencial passivo, não estarão, por sua vez, obrigados a nada, nem sequer precisarão suspender o pagamento de dividendos. É a socialização de riscos sem qualquer mediação e apropriação do fundo público pelos bancos, já que aqui entram recursos do Tesouro.

Na Câmara dos Deputados, o PSOL corretamente apresentou um destaque a esse absurdo. A rejeição demonstrou, uma vez mais, que para além dos conflitos políticos existentes entre governistas e representantes dos partidos tradicionais da burguesia, não há diferença entre esses dois campos sobre quem paga a conta da crise.

É urgente combater a assassina estupidez bolsonarista, desmascarando também os discursos de Rodrigo Maia e outros segmentos da política institucional brasileira que, à primeira vista soam como a defesa da vida ou da ciência, mas que ao repassar os custos da emergência sanitária ao povo, terminam por colaborar com uma política de morte. Sem negar a eventual unidade de ação contra medidas que confrontem grosseiramente as recomendações de isolamento social, não é possível ter ilusões de que os burgueses “moderados” de nosso país possam nos dar alternativa para a saída que precisamos construir. 

Não há meio termo possível entre salvar bancos ou salvar vidas, entre investir maciçamente na saúde pública ou na assistência social e não abandonar a agenda de contrarreformas de vez. É ao levantar esse debate, que coloca a defesa da vida acima do direito ao lucro, que a esquerda poderá cumprir um papel independente e se apresentar como alternativa política.


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