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Oito motivos para combater a nova proposta do Ministério da Saúde

Mandetta orienta que parte dos municípios adote um “Distanciamento Social Seletivo”, restringindo o isolamento apenas para idosos, demais grupos de risco e sintomáticos

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

Na última segunda-feira (06/04), o país acompanhou com atenção o cabo de guerra em torno da permanência ou demissão do ministro Mandetta. Para além das disputas internas no interior do governo, que opõem o “Gabinete do Ódio” aos setores supostamente mais sensatos (mas nem por isto divergentes da perspectiva de extrema-direita que permeia todo governo), parecia estar em jogo a continuidade ou não da imprescindível política de isolamento social, que, aplicada de forma parcial e sabotada pelo presidente, foi capaz de reduzir em parte o ritmo de expansão da Covid-19 no país, mas em patamares absolutamente insuficientes para que se possa afastar a perspectiva de um grande desastre. Mandetta aparecia para muitos como uma ilha de racionalidade, bom senso e respeito à ciência misteriosamente colocado em um governo fascista. Até mesmo na esquerda esta ilusão produziu certa confusão. Erra gravemente quem acredita que um lobista dos planos de saúde, político do DEM, defensor do Golpe de 2016 e da privatização do sistema de saúde tenha se convertido em defensor sincero do SUS e esteja realmente disposto a enfrentar tudo em nome da “ciência, disciplina, planejamento e foco”.

A decepção dos iludidos teria acabado no mesmo dia 6/4, se observassem com atenção o que está registrado no Boletim Epidemiológico 7 do Ministério da Saúde então divulgado, que já de início estabelece:

A partir de 13 de abril, os municípios, Distrito Federal e Estados que implementaram medidas de Distanciamento Social Ampliado (DSA), onde o número de casos confirmados não tenha impactado em mais de 50% da capacidade instalada existente antes da pandemia, devem iniciar a transição para Distanciamento Social Seletivo (DSS). Os conceitos são apresentados neste boletim.

E qual é o conceito apresentado de Distanciamento Social Seletivo?

Estratégia onde apenas alguns grupos ficam isolados, sendo selecionados os grupos que apresentam mais riscos de desenvolver a doença ou aqueles que podem apresentar um quadro mais grave, como idosos e pessoas com doenças crônicas (diabetes, cardiopatias etc) ou condições de risco como obesidade e gestação de risco. Pessoas abaixo de 60 anos podem circular livremente, se estiverem assintomáticos (p. 7, grifos meus).

Até então o Ministério da Saúde parecia endossar o consenso geral de que a proposta defendida por Bolsonaro de “isolamento vertical” não tinha nenhuma fundamentação científica e era absurda no atual contexto brasileiro de subnotificação e avanço acelerado da pandemia. Mas, concretamente, qual a diferença entre a proposta do presidente genocida e a definição acima apresentada? Por mais que se tente, dificilmente encontraremos.

A adoção desta política, se efetivada[1], terá consequências desastrosas. Destacamos algumas razões:

1. Afronta a lógica do Sistema Único de Saúde

O próprio ministro Mandetta manifestou-se justificando a centralização dos respiradores argumentando que o sistema é único. Assim, não faz o menor sentido alegar a disponibilidade local de vagas. O boletim refere-se a “municípios”, desconsiderando até mesmo o fato de que a maior parte de municípios não possui leitos hospitalares, e muito menos em UTI, e obviamente não podem ser considerados como unidades isoladas. A abordagem que segmenta municípios (ou mesmo regiões ou estados) é inteiramente incompatível com a lógica de um SUS que tem como princípio a abordagem unitária.

2. “Imunidade do Rebanho”

A definição da do Distanciamento Social Seletivo, enfatiza-se que “pessoas abaixo de 60 anos podem circular livremente, se estiverem assintomáticos”. Há aqui um duplo absurdo. Primeiro, que é amplamente sabido que a maior parte das contaminações ocorrem nos primeiros três ou quatro dias da evolução da contaminação do indivíduo, quando ele ainda se apresenta assintomático. E além disso, a proposta de ampliar a circulação em um contexto de curva pandêmica claramente ascendente (e fortemente marcada pela subnotificação e demora na efetivação da testagem) só pode ser compreendida como retomada da malfadada proposta de “imunização do rebanho”, que pretendia que a maior parte da população fosse contaminada rapidamente para criar imunidade. A proposta foi abandonada quando as projeções indicaram que se efetivada esta política produziria milhões de mortos. Boris Johnson, seu principal defensor, mudou sua política e publicamente pediu desculpas. Hoje encontra-se internado na UTI com Covid-19 (Johnson tem 55 anos).

3. Crescimento do número de casos acima da média mundial

No período de duas semanas, entre 24 de março e 7 de abril, o crescimento do total de casos no mundo foi de 3,44 vezes (ou 244%). No mesmo período, o crescimento do número de casos confirmados no Brasil, mesmo com a gigantesca subnotificação, foi de 6.22 vezes (ou 522%). Dentre os países com maior número de casos, apenas Estados Unidos e Inglaterra crescem em ritmo superior ao Brasil, e não por acaso são os dois países cujos líderes minimizaram publicamente a pandemia (ainda que tenham posteriormente revisto sua posição). Os dados da tabela são eloquentes:

Dados dos 10 países com maior número de casos no início da série e o Brasil (16º), de 22.3 (11:30)-a 5/4 (11:30). Fonte. bing.com/covid. Elaboração do autor. Por uma questão de padronização dos dados, registrados em um mesmo horário, os números do Brasil não incluem a atualização do dia 7/3.

4. Crescimento acelerado do número de mortes

O número de mortes registrada por Covid-19 no Brasil é certamente inferior ao real e isto se evidencia em dois fatores principais: 1) pela elevação anormal do número de mortes registradas por outras doenças respiratórias (algo mencionado inclusive nas entrevistas do Ministério da Saúde); e 2) pelas incontáveis mortes com suspeitas de que tenha sido por Covid-19 cujo resultado do teste segue na fila. Ainda assim, mesmo desconsiderando este enorme agravante, os dados da curva de crescimento do número de mortes no Brasil continuam sendo assustadores:

Evolução de óbitos a partir da data da primeira morte

Fonte: worldometers.info/coronavirus/country/

5. Subnotificação

O grau de subnotificação que enfrentamos é de tal dimensão que pode-se dizer que estamos no escuro e mesmo onde não há casos registrados, não há como saber qual é a situação real. Até o momento já foram feitos no país 258 testes por milhão de habitantes (54.824 testes), um número absolutamente irrisório. Os Estados Unidos fizeram 40 vezes mais testes (mais de dois milhões) tendo 6.077 testes por milhão de habitantes. Além disto, há outro sério agravante, que é o fato de que no Brasil só são testados os pacientes com sintomas, e em geral em estado grave. Assim, impossível saber se o número real de casos é 5, 10 ou 50 vezes superior ao registrado.

6. Temporalidade da Pandemia

Os dados que temos, mesmo que não existisse a subnotificação (reconhecida pelo próprio Ministério da Saúde), refletem uma realidade de vários dias atrás. Um resultado positivo é divulgado vários dias depois do exame ter sido colhido. A coleta é feita na maior parte dos casos em um paciente foi internado em UTI. A internação em UTI ocorre vários dias depois dele ter tido os primeiros sintomas. Os primeiros sintomas se dão vários dias depois da contaminação. Assim, os números de contaminação ou de óbitos de hoje expressam uma realidade de muitos dias atrás. Isto seria minimizado se os exames fossem feitos de forma rápida e abrangessem todos os pacientes com sintomas (e, melhor ainda, se testagem por amostragem um contingente de assintomáticos). Isto significa que independentemente do que se faça hoje, a evolução da próxima quinzena já está determinada. Se o Brasil adotar a absurda política de Distanciamento Social seletivo, muito provavelmente seus efeitos só começarão a aparecer duas semanas depois, quando a situação será absolutamente trágica.

7. Não há “grupo de risco”

As expressões “grupo de risco” e “comorbidade” tem sido instrumentalizadas de forma a que a maior parte das pessoas não se sintam em situação de risco. No limite, passa-se a ideia de que morreram apenas aqueles que já estavam à beira da morte. O termo “grupo de risco” é historicamente associado à imposição de estereótipos, como é bem sabido na renitente disseminação de preconceitos contra os portadores de HIV. Comorbidade é um termo com definição específica na área da saúde, mas trazido à linguagem corrente é apresentado como algo extremo e distante da realidade da maioria. São cinco as comorbidades mais associadas ao agravamento dos casos de Covid-19, levando ao óbito: doenças cardiovasculares, diabetes, doenças respiratórias, , hipertensão e câncer. Basta considerar que 24,8% da população brasileira é hipertensa, 11,5% cardíaca, 11,8% portadora de diabetes e 8% de asma, que já se torna evidente que grande parte da população é parte do grupo de risco. E grande parte dela tem esta(s) doença(s) totalmente sob controle. Mas mesmo em relação à parcela dos óbitos que não se enquadra em nenhuma das cinco comorbidades principais, é possível identificar outras patologias, como faz o Ministério da Saúde indicando obesidade, doença hematológica e doença hepática, colaborando para uma naturalização das mortes. Então, quais são as doenças crônicas que o Ministério da Saúde entende que deveriam estar protegidas no cenário de Distanciamento Social Seletivo? A pretensão à imediata retomada da “normalidade” só é possível abstraindo o fato de que grande parte da população é portadora de alguma das patologias que são evocadas como “grupo de risco”.

8. Colapso do Sistema de Saúde

O Sistema de Saúde não é designado como sistema por acaso. Seu colapso, como o próprio Ministério da Saúde indicou inúmeras vezes, implica em um imprevisível aumento da letalidade pelo Covid-19, e simultaneamente, em inúmeras mortes evitáveis, dos mais diversos fatores (de acidentes de trânsito a infarto) decorrentes da falta de atendimento. Mas sendo ele um “sistema”, não é concebível pensar que possa colapsar em uma ou algumas das pontas e seguir normalmente nas demais. É sabido que o maior gargalo são os respiradores, e que “hospitais de campanha” e instalações provisória, ainda que possam ser úteis, valem pouco sem equipes médicas dotadas de equipamentos de proteção individual e recursos hospitalares. O Sistema só será eficiente se for solidário, e afrouxar os controles nas cidades onde 50% dos leitos estejam disponíveis, neste momento de evolução da pandemia é mais do que uma irresponsabilidade. É uma política criminosa.

 

 

Notas

[1] A proposta está sendo questionada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Reportagem do Estado de S. Paulo.

 

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