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BRASIL

Não se trata só de como o vírus age no corpo, mas em quais corpos ele age

Mariana Pércia*, São Paulo, SP
Hugo Tomkiwitz/Agência Pública

Em meio ao caos da pandemia e da rotina como profissional de saúde, muitas vezes agimos no automático. Mas, por vezes, escutamos ou vivenciamos histórias que nos marcam e nos param, algumas até enchem os olhos de lágrimas e rapidamente nos recompomos ao lembrar nossa função ali. Um dos trabalhos como profissional de saúde que mais me marcou foi no Consultório na Rua, sem dúvida. Pelas vivências tanto com os pacientes como com a única equipe multidisciplinar de verdade em que trabalhei (mesmo que sempre haja muito medicocentrismo), mas em especial por todos os dias me sentir limitada e muitas vezes frustrada e observar de perto que saúde depende muito, mais muito mais, das condições socioeconômicas da população. Que não existe doença que não se manifeste diferente a depender de como se vive e não existem milagres de cura que não passem por transformações radicais do modo de vida das pessoas. Semana passada escutei um desses relatos que me parou e me fez lembrar dessas pessoas em meio à pandemia. Eis que na tenda de triagem do coronavírus chega um paciente que veio encaminhado da Cracolândia, um senhor, meio perdido, perguntando se ali era um albergue. Explicamos que não, que era uma tenda de triagem e foi perguntado se ele estava sentindo algo. Ele disse que tava só com tosse e que tinham dito que ele precisava se isolar. Ele não tinha onde se isolar pra não contaminar as pessoas e achou que era ali o local.

O silêncio reinou porque todos entenderam que o problema dele ia pra além da doença. Foi encaminhado a um CRAS, que também não sabemos se conseguiu amenizar o problema dele. Mas ficou aquele desconforto no ar, porque todo mundo que trabalha com saúde sabe que saúde vai pra além de um desequilíbrio biológico. Sabe que não há isso de “a pandemia é igual pra todos”. Alguns podem não enxergar, não querer enxergar, escolher trabalhar só com pacientes particulares e não “passar o estresse com o SUS”. Mas os que seguem na linha de frente desse Sistema Único de Saúde que salva tantas vidas, apesar do sucateamento, sabem que uma pandemia dessa abre as feridas da desigualdade aqui e no mundo e as contradições ficam em nossa cara. Não podemos esquecer que o Brasil é um dos primeiros países subdesenvolvidos onde a pandemia se instala. Tudo aqui é desigual. Seguimos sendo colônia dos EUA e Europa. Seja na saúde, no acesso a equipamentos de ventilação ou de proteção individual, seja na educação da população que acha por bem uma briga política que põe em dúvida tudo que acontece no mundo inteiro por um governo ignorante e omisso. A contradição entre público e privado nunca ficará tão clara.

O acesso a saneamento aqui é desigual, aos leitos não seria diferente. Não temos poucos leitos no Brasil, se comparado à Europa. Claro que eles vão se esgotar, com o possível colapso do sistema. Ainda mais se ignorada ou impossibilitada a quarentena. Mas eles não são poucos. Eles são desiguais. A maior parte dos leitos de UTI, cerca de 56%, estão no sistema privado, que segue sugando o SUS, historicamente, pois grande parte dos recursos do SUS pagam a chamada “saúde suplementar”.

Assim será quando o colapso se instalar, e não é uma futurologia ou previsão de apocalipse, é mero cálculo estatístico de acordo com a história natural da doença e com o observado em todo o mundo. Assim será, a não ser que a saúde estatize. A não ser que se encare a desigualdade e dê condições de quarentena para todos. A não ser que se enxergue que saúde vai pra além de como o vírus age no corpo, mas sim em quais corpos ele age. E ele será mais agressivo nos corpos que são obrigados a trabalhar, que tem uma alimentação inadequada e, portanto, mais riscos de ofensas cardiovasculares, nos corpos que não têm acesso a saneamento e água potável, nos corpos na base da desigualdade social.

Portanto, parabéns a todos meus colegas profissionais de saúde, da limpeza, da segurança pública, que estão não linha de frente dessa batalha. Mas parabéns também a todos aqueles que lutam por um mundo menos desigual. Onde pandemias seguirão existindo, mas a vida valerá mais que lucros.

 

* Médica e residente de ginecologia e obstetrícia em SP.