O Haiti registrou nesse domingo (05) a primeira morte por coronavírus. Em qualquer lugar da América Latina, quem conhece um pouco sobre a dramática combinação de crises que assola a nação mais pobre do subcontinente já teria motivos suficientes para se preocupar. Mas, penso que aos brasileiros cabe uma inquietação a mais: hoje somos governados pelos mesmos generais que, comandando as tropas de ocupação da ONU (2004-2017), fracassaram nos esforços para reconstruir o país após o terremoto de 2010 e foram derrotados no combate a epidemia de cólera, que matou mais de 60 mil haitianos.
É fato que estou falando de dois países com sistemas de saúde pública e condições econômicas e sociais distintas, mas, a ineficácia dessa geração de militares diante de situações de calamidade tem sua origem na experiência de governança desenvolvida pelo Exército Brasileiro no Haiti. A verdade é que o legado deixado pela Minustah foi de caos social, desorganização completa das instituições, superexploração no trabalho, desrespeito aos direitos humanos e corrupção entranhada no executivo e legislativo. E é sob essas condições que o país enfrenta o coronavírus.
A propagação do vírus está em sua fase inicial. Até o momento, são 21 casos confirmados, mas o baixo número de testes realizados, cerca de 250, não permite sabermos com precisão o impacto do Covid-19 no país. A situação na vizinha República Dominicana, que já tem 1.745 casos confirmados e 82 mortes, indica que os números apresentados por Marie Greta Roy Clement, ministra da saúde do presidente Jovenel Moise (Partido Tèt Kale), não parecem ser muito confiáveis. Aliás, segundo os editores do jornal Le Nouvelliste, Moise e o premier Joseph Jouthe – recém-empossado e o quarto assumir o cargo -, novamente se alinharam de forma automática a Donald Trump, dessa vez, agindo com a mesma lógica negacionista que o estadunidense empregou durante a fase inicial da propagação do vírus. Apesar de algumas fábricas terem parado, e escolas e universidades interrompido as aulas, até o momento, a população segue a rotina no movimentado comércio central de Porto Príncipe, no intenso trânsito de bicicletas e motocicletas e nos poucos e superlotados ônibus que transportam os moradores até as favelas, como a populosa Cité Soleil.
Um sistema de saúde em colapso
Quando foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 uma situação bizarra aconteceu na capital. Os médicos do Hospital Geral abandonaram seus postos receosos com as péssimas condições de trabalho. Lá também faltam máscaras, luvas, equipamentos básicos para a proteção dos trabalhadores. Só que os pacientes fizeram o mesmo: com a memória do combate à cólera, quando os hospitais se transformaram em focos de contágio, os leitos ficaram vazios e consultas agendadas foram ignoradas em massa. Na última quarta-feira (1), organizações políticas locais transformaram um mutirão de limpeza no hospital em ato político contra o governo, ação que se repetirá em outros centros de saúde.
O sistema nacional de saúde está em frangalhos. Dados oficiais mostram que o país possui menos de 1 mil médicos trabalhando e apenas 124 leitos de UTI, para uma população de mais de 11 milhões de pessoas. No último ano, apenas 4,4% do orçamento nacional foi destinado para a saúde, valor que vem caindo abruptamente desde 2012 (ver gráfico abaixo).
Para enfrentar a pandemia, o governo apresentou um plano com diversas medidas importantes. Só que para ser concretizado o projeto necessitaria de 15% da arrecadação total do país em 2019, cerca de U$ 37,2 milhões. A única possibilidade para levar a ideia a cabo é ampliar, mais uma vez, o endividamento com o Fundo Monetário Internacional, Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Europeu, que já apresentaram propostas de empréstimo. Por outro lado, concretizando uma política de solidariedade sem contrapartidas econômicas, o governo cubano já anunciou o envio de 348 profissionais de saúde para o país.
Caso não haja uma política efetiva de isolamento social, o pior cenário traçado por especialistas estadunidenses aponta a possibilidade de até 800 mil mortes. Seria devastador! O Haiti lida com uma incógnita similar ao Brasil, o grau de contágio nas favelas, agravado por uma situação onde mais de 70% da população não tem acesso a saneamento básico e 42% não bebe água potável cotidianamente.
Crise econômica e autoritarismo político ampliam as dificuldades
A limitação ao isolamento social se amplia com a gravidade da crise econômica. Em 2019, o PIB recuou 1,2%, a inflação ficou em 20% e a desvalorização da moeda local frente ao dólar disparou, fazendo 100 gourdes valerem U$ 1. O governo anunciou a liberação de auxílio-alimentação para um milhão de famílias, pagamento de salários de 60 mil trabalhadores das fábricas que paralisaram, e complementação financeira para 1,5 milhão de famílias. Entretanto, ainda não foi explicada a população como se concretizarão tais medidas.
Outra questão que aflige os haitianos é a dependência externa, no mínimo sob dois aspectos, o aumento do custo para importação de bens de consumo e combustíveis e as transferências financeiras da diáspora formada pelos migrantes nos últimos anos. Em 2019, 1,58 milhão de haitianos enviaram mais de U$ 150 milhões de dólares ao país e um estudo divulgado nos EUA mostra que 4,5% destes podem perder seus empregos e parar de enviar dinheiro imediatamente.
A quarentena por lá parece ser objetivamente impraticável, faltam as mínimas condições de infraestrutura para o isolamento social. A única opção de Moise pode ser ampliar o autoritarismo para tentar encobrir sua inaptidão. O presidente já reivindicou a ampliação dos investimentos do Ministério da Defesa, temeroso com a possibilidade de protestos, inclusive no interior das forças policiais. Desde o mês de outubro, quando se encerrou a Minujusth (então missão da ONU que, dentre outras tarefas, deveria consolidar a estrutura policial do país), os policiais reivindicam aumento salarial, melhores condições de trabalho e o direito de sindicalização. A crise explodiu em fevereiro, quando um grupo de soldados da Polícia Nacional Haitiana invadiu o Quartel General do Exército, num confronto que resultou em dois mortos e nove feridos. Moise permitiu o direito à sindicalização e atendeu outras reivindicações, mas seu poder de comando diminuiu ainda mais.
Só o fim da dominação imperialista pode evitar uma nova tragédia
Espero estar equivocado, mas talvez já seja tarde para evitar a propagação do Covid-19 no Haiti. Desde as mobilizações de julho de 2018, a marca principal da situação política no país é a ação do movimento de massas, que além de produzir grandes manifestações também articula um projeto político alternativo a dominação imperialista¹. A verdade é que a única sustentação de Moise é o apoio do governo estadunidense, interessado em garantir uma plataforma de superexploração do trabalho a poucos KM de Miami.
Não parece haver perspectivas de constituição de um esforço de união nacional, diante da enorme fragmentação política, mesmo entre os setores burgueses. Para lidar com as consequências do coronavírus, somente a ruptura com a dominação imperialista é uma opção viável. Desde o Brasil, esperamos que a articulação das dezenas de organizações populares do campo e da cidade consigam angariar forças nesse momento dramático.
*Com informações de Le Nouvelliste, Vantbe Info, Center For Economic And Policy Research (Washington), LoopHaiti e HaitiLiberté
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