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MUNDO

A pandemia e o vale-tudo imperialista

Ana Luisa Martins e André Freire, do Rio de Janeiro, RJ

Por pandemia entende-se a generalização de um surto no planeta, atingindo todos os continentes. Em pouco mais de quatro meses o novo corona vírus ignorou qualquer fronteira, infectando, até agora, cerca de 1,3 milhão de pessoas e fazendo mais de 70 mil vítimas fatais. No entanto a tragédia está longe do final, globalmente falando. Em muitos continentes a curva ainda está subindo, ou seja, a escalada ao topo será ainda muito sacrificante e dolorida. Mesmo na China, pais que passou pelo primeiro pico da doença, se preocupa com um possível segundo pico.

Ainda vamos viver um enorme aprofundamento da crise econômica mundial, com terríveis consequências sociais. O mundo já mudou e é imprevisível como estará quando tudo isso acabar.

A face nua e crua do imperialismo

“América em primeiro lugar”, foi o slogan que Donald Trump se elegeu. Seu programa defendia um giro nacional imperialista, se distanciando do discurso pró globalização de governos anteriores. Desde 2016, a política imperialista é implementada de forma ainda mais agressiva em várias partes do mundo.

A América Latina vem sofrendo diretamente as graves consequências da chegada ao poder dessa versão turbinada de extrema direita do imperialismo estadunidense. Os sucessivos ataques à soberania da Venezuela são a principal confirmação deste processo de recolonização da região.

A ampliação dos conflitos geopolíticos entre as principais potências mundiais e a guerra comercial, especialmente entre EUA e China, são características do novo momento da situação mundial, que se abriu, pelo menos, desde a vitória de Trump.

No entanto, a eclosão da atual pandemia e suas brutais consequências para parcelas cada vez maiores das populações dos EUA e da Europa, está aprofundando, como nunca, o projeto nacional imperialista.

A pandemia atingiu fortemente a população dos EUA, especialmente em Nova Iorque. O país bateu recordes negativos sucessivos, tanto em número de casos confirmados, como de mortes, em um mesmo dia. Em 5 de abril, os números oficiais apontam a seguinte situação: mais de 330 mil casos confirmados e cerca de 9.500 mortes.

Alguns elementos ficam cristalinos ao avaliar a gravidade da situação que vive os EUA: a ausência completa de um sistema de saúde no país, política reforçada nos últimos anos por Trump. A demora em reagir à pandemia, especialmente em relação ao isolamento social e a garantia das condições sociais para ele. Assim como sua postura negacionista em relação a sua gravidade.

Hoje, diante da evidente crise generalizada que passa o país, Trump reage de forma desesperada. Motivado, não pela preservação da vida das pessoas, mas pelas consequências econômicas e políticas de seus erros, especialmente com a proximidade das eleições presidenciais. Seu governo expressa, como nenhum outro, a degeneração completa das mínimas relações de cooperação entre nações.

A importação da China de respiradores mecânicos e de equipamentos de proteção individual (EPIs) para profissionais de saúde vem demonstrando a face mais brutal do imperialismo estadunidense, e Trump a mostra sem qualquer pudor. Ele afirmou no último sábado, 04, “Não queremos outros conseguindo máscaras”.

O envio de aviões cargueiros à China para buscar grandes estoques de respiradores e EPI´s, são a concretização de um plano comercial que significou concretamente “furar a fila” na compra de produtos vitais ao combate à pandemia. Lembrando que as empresas instaladas na China ocupam a liderança mundial na produção e comercialização destes materiais, e é, praticamente, apenas de lá que saem quantidades massivas capazes de suprir, ao menos em parte, a demanda mundial.

O assunto vem se revelando de enorme gravidade. Afinal, também prejudica países centrais do capitalismo mundial e que sempre foram aliados dos EUA. O governo francês denunciou, recentemente, que representantes do governo americano estão comprando lotes – reservados à França – destes equipamentos nos aeroportos chineses, pagando por eles até 4 vezes o valor do preço negociado anteriormente. É praticamente uma interceptação.

Para que não haja dúvidas, a 3M, grande multinacional americana instalada na China, uma das principais produtoras de máscaras de proteção N95, foi proibida – na prática – de vender para outros países. Fato que foi confirmado pelo próprio Trump, dizendo que, sim, pode haver retaliação por parte de seu país. O que prejudica diretamente acertos de importação da Alemanha, outro aliado histórico dos EUA. Até o vizinho Canadá vem reclamando de tais atitudes.

Como sabemos, o Brasil também foi atingido pela ação de Trump. Na semana passada, o governo brasileiro assumiu que teve sua encomenda de EPI´s cancelada devido à ação “patriota” dos EUA. Uma compra de respiradores mecânicos do governo do Estado da Bahia foi cancelada pelo mesmo motivo: a ingerência estadunidense no mercado chinês.

Seria cômico se não fosse trágico. A submissão completa do governo Bolsonaro ao poder imperialista, mais precisamente o “puxa-saquismo” piegas à Trump, não significou nenhum retorno à favor dos interesses de nosso país. Ao contrario, levou à paralisia na busca por uma alternativa capaz de produzir os insumos necessários, além de mais uma vez ficar evidente que para as autoridades estadunidenses o Brasil nada mais é que uma marionete à serviço de seu projeto de recolonização da América Latina.

O fato é ainda mais revelador sobre a gravidade da situação de dependência tecnológica do nosso país, frente as potências mundiais. Muito embora tenhamos um qualificado quadro de pesquisadores na área da saúde pública. Segundo estudo encomendado pelo próprio Ministério da Saúde à Universidade Harvard, o Brasil teria vantagens para lidar com a pandemia: a primeira delas é justamente a existência de um Sistema Único de Saúde, que garante a presença de unidades em território nacional, de forma horizontal e universal. Onde este qualificado time de profissionais da saúde são um de seus maiores patrimônios. Muito diferente, inclusive, do modelo de sistema privado implementado nos EUA.

União Europeia: questionada pela pandemia

Também no continente europeu, o fato de estar prevalecendo uma reação fundamentalmente nacionalista por parte dos países centrais, abriu uma crise na União Europeia (UE).

O fechamento de fronteiras de forma desordenada entre os países membros da UE, definidas apenas de acordo com critérios nacionais, já havia gerado enorme desconforto. A crise se agravou quando países como Alemanha e França, atualmente as maiores economias do bloco, chegaram a proibir a exportação de EPIs e respiradores mecânicos, justamente no momento em que a Itália, por exemplo, mais precisava de ajuda.

As autoridades da UE buscam reagir, com enorme atraso. Querem demonstrar, agora, uma ação coletiva de combate a pandemia, mas a ferida ainda está aberta e exposta. As imagens da chegada, em solo italiano, de médicos cubanos e ajuda especializada vinda da China e Rússia, antes de uma ação efetiva do bloco europeu, demonstram um rotundo fracasso. No momento que necessária uma ação realmente integrada, o discurso não passou de palavras em papel.

Diante da postura vacilante da EU, é provável que também ela não seja capaz de construir e demonstrar ao mundo um contraponto efetivo às medidas nacionalistas de Trump, provando seu próprio veneno.

Onde o capitalismo nos trouxe?

A comparação, cada vez mais generalizada, da atual pandemia com grandes eventos que geraram uma nova reorganização do sistema de Estados no mundo, como a crise de 1929 e a II Guerra Mundial, serve, em certa medida, para nos darmos conta da dimensão das mudanças que estão sendo geradas e gestadas neste momento. Parece que nossa vida está “em suspenso”, para retomarmos tudo de onde paramos, mas em escala histórica, há uma aceleração do tempo e mudança profunda e global.

Não é possível prever o mundo que vamos encontrar quando pudermos passar pela porta de casa, mas é possível afirmar que o capitalismo não “cai de maduro”, e que não podemos duvidar da sua capacidade de degeneração e reestruturação, mesmo que em patamares ainda mais sofridos para a classe trabalhadora mundial.

O que essa pandemia tem desnudado é a completa decadência deste sistema, e, de certa forma, seu fracasso diante da necessidade urgente de uma reação contundente de preservação da vida e das mínimas condições sociais para os povos, frente a ameaça global que estamos enfrentando.

Com variações de intensidade, o que vem prevalecendo é a disputa pela nova localização dos “mais fortes” no globo, mesmo que para isso seja necessário pisar na cabeça uns dos outros. Por isso a resposta em geral dos governos capitalistas, mesmo que em diferentes graus, é a subordinação de qualquer medida ao menor prejuízo possível dos lucros das grandes empresas e bancos.

A luta imediata pela preservação da vida do povo trabalhador, nossa prioridade máxima no momento, deve estar aliada à uma reflexão mais profunda, sobre as terríveis consequências ambientais, econômicas e sociais da evidente decadência do sistema capitalista, agora em uma nova fase, ainda mais próxima da barbárie. O momento exige urgência histórica na apresentação de saídas anticapitalistas e de transição socialista.