Prestes a completar três semanas de enquistada no Brasil, a pandemia fez se mover placas tectônicas que pareciam acomodadas no interior do governo. Entre os bolsonaristas-raiz, aqueles vinculados originalmente ao núcleo ideológico do governo, os detentores da popularidade e dos votos que catapultaram o obscuro deputado e ex-capitão ao estrelato, a percepção de que a crise, ao invés de promover o presidente ao plano da liderança inconteste, causou foi um efeito inverso, abre espaço para a intensificação de teorias da conspiração.
Sem demonstrar nenhuma capacidade de dirigir o processo, o que ocorre com Bolsonaro é justamente o contrário do que que se passa com os governadores e chefes de Estado de diversos países. Estes, em meio à crise, como habitualmente ocorre ao menos no ponto inicial, tendem a crescer em prestígio e popularidade. Quanto a Bolsonaro, entretanto, o que lhe ocorre é que vai sendo secundarizado em seu próprio governo, o que determina que sua sobrevivência política e no cargo dependa cada vez mais da criação de factoides e da permanente ameaça de uso da caneta, quando não, da força bruta para o restabelecimento da sua direção.
Os efeitos da pandemia aliados a tamanha incapacidade do chefe do executivo, abriram caminho, de um lado, para que extremistas do bolsonarismo inventassem novos inimigos e investissem ferozmente contra o que seriam os “opositores” neófitos. Neste crescente e superpovoado círculo do inferno, onde habitam petistas, psolistas e “esquerdistas” em geral, começam a povoar o imaginário dos conspiracionistas todo aquele que seja incensado pela mídia, celebrado pela razão ou aplaudido pelos que torcem desesperadamente pelo retorno da civilização. A bola da vez, além dos incômodos governadores que são vistos sempre como traidores e candidatíssimos ao pleito presidencial de 2022, ingressa o insuspeito ministro Luiz Henrique Mandetta.
O ministro da Saúde, que hoje ocupa o lugar que já coube aos militares, é o alvo principal das redes bolsonaristas na atualidade. Estas promovem uma virulenta campanha de detratação de sua figura, omitindo-se, contudo, todos os elementos que deveriam pesar contra sua trajetória.. Com efeito, o ministro Mandetta, também incensado por setores da esquerda e que aparece como inimigo do Brasil nos termos bolsonaristas, não é o deputado que trabalhou pelo golpe de 2016, que atuou pela redução de recursos para a saúde, votando favoravelmente à PEC 55 (EC 95) ou o ex-diretor da Unimed detentor de uma concepção privatista da Saúde que, por oportunismo, desespero ou pela constatação de que será a saúde pública a livrar o país do caos (ou pelo menos evitar que o caos seja maior), enverga um colete do SUS como se fosse um orgulhoso defensor da coisa pública. Nos meios fascistas, Mandetta é tido como alguém da velha política, portanto, um deputado corrupto, que enfeixa por dentro do ministério da Saúde aliados com interesses escusos que, desvelados em função do abrupto estrelato, permitem que se vislumbre a dimensão da vaidade e os interesses materiais de um político da velha tradição que os bolsonaristas, convictos do espírito antissistêmico que acreditam em que se movem, pretendiam ter varrido há tempos da cena pública.
Enquanto a figura de Mandetta ocupa a tenaz militância bolsonarista nas redes sociais, por dentro do aparato político do governo os militares, que inicialmente tinham sido convidados para a arriscada empresa bolsonarista para comporem o núcleo encarregado da tutela, voltam a ganhar espaço na mesma medida e dimensão em que assumem, paulatinamente, o protagonismo político do país ao lado da turma da saúde. Restabelecendo as pontes com as classes dominantes, parcialmente implodidas desde que Bolsonaro mostrou-se completamente inepto para se conduzir na conjuntura, os militares, os inimigos detestados da ala ideológica olavista, cumprem, hoje, a função de fiadores do bolsonarismo, uma função que em tempos, digamos, normais, foi exercida por Paulo Guedes, o Posto Ipiranga encarregado de, junto com o núcleo político e o Congresso, fazer as reformas.
Num cenário em que as peças foram todas embaralhadas em função da crise causada pela pandemia, a ascensão da figura do General Braga Neto parece cristalizar uma possibilidade que vinha sendo dada como perdida por algumas frações importantes das classes dominantes e das elites políticas que começaram a vislumbrar o pior cenário, qual seja, de uma crise política que lhes obrigassem a, de alguma forma, depor Bolsonaro. Inicialmente convidado para dirigir o importante ministério da Casa-Civil no lugar de Onyx Lorenzoni, responsável pelo núcleo político do governo, que teve suas funções dispensadas tendo em vista o papel cumprido pelo Congresso através de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, o general, que comandou a intervenção no Rio, é, hoje, como se diz nos meios militares, o chefe do Estado Maior do Planalto, imprimindo uma promessa de governabilidade mínima numa situação em que o chefe do executivo não é capaz de comandar, assegurando algum nível de estabilidade e confiança aos setores que tinham começado a desembarcar definitivamente da nau bolsonarista.
O que pode advir desse cenário, embora sejam necessárias as especulações, estão no perigoso campo das predições que, em tempos tumultuados, estão mais do que nunca sujeitas às imprevisíveis forças da contingência. Não obstante, parece indispensável que, além de acompanhar a crise, e atentar para o fato de que o bolsonarismo pode extrapolar o campo da retórica, criando tumultos nas ruas por desabastecimento ou coisa parecida, as esquerdas e os movimentos sociais tenham atenção para separar o joio do trigo, ou seja, que sejam capazes de perceber onde há atuação provocadora dos bolsonaristas distinguindo-a do verdadeiro desespero que pode se abater sobre vastas camadas da população, especialmente os setores mais pobres.
De outro lado, num iminente e provável cenário convulsionado que passe por fora da lógica bolsonarista, onde caberá aos movimentos sociais, partidos de esquerda e setores democráticos zelar pelas garantias constitucionais, os mesmos dispositivos de exceção podem ser ainda mais reivindicados para a garantia de uma governabilidade sob intervenção tácita dos militares, com apoio das Forças Armadas, sem que isto se constitua uma intervenção direta na forma de um golpe e estabelecimento de uma ditadura (que mesmo sem ser descartada, parece ser uma possibilidade mais remota). Tendo em vista que Bolsonaro pode permanecer no governo, sem que tenha livre acesso ao uso da caneta e da força, como pretende, pode-se supor que as saídas mais drásticas sejam postergadas para o fim da quarentena.
Num cenário ou no outro, o terreno ocupado pelas forças da democracia contra a barbárie, que devem incluir entidades da sociedade civil e das instituições, além de partidos de esquerda, personalidades políticas, sindicatos e movimentos sociais, devem se juntar para o resguardo dos mecanismos garantidores dos direitos fundamentais de todas as pessoas. Sem que isso signifique baixar a guarda para todos aqueles que se perfilaram no campo do golpismo e que, de alguma forma, se juntaram ao bolsonarismo para derrotar o PT, a salvaguarda das garantias mínimas que sejam capazes de permitir a recomposição das forças sociais ao fim da quarentena, é uma aposta inteligente e necessária para a sobrevivência física e política daqueles que tem o dever de derrotar o fascismo e pavimentar o caminho para a construção de um país mais justo, soberano, fraterno e solidário.
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