O que uma praga revela

João Miranda*, Marechal Cândido Rondon, PR
Reprodução/Instagram

Campanha com slogan “O Brasil Não Pode Parar”, publicada no perfil da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência (Secom). A postagem foi apagada em 27 de março.

Uma sociedade revela muito sobre si mesma ao enfrentar uma praga. Mas, não precisávamos do novo coronavírus para saber que o presidente Jair Bolsonaro, que já afirmou para uma mulher que só não a estupraria porque ela “não merece”, é um sujeito que tem desprezo pela vida – exceto a dele –, é um genocida. Não é também uma surpresa que a tumba de fanáticos que o apoia esteja disposta a segui-lo cegamente.

Bolsonaro sempre faz isso. Não assume os próprios erros, exige de seus apoiadores uma fidelidade cega, humilha a todo momento quem está próximo e está, constantemente, defendendo o grande capital, em detrimento de nós – os de baixo. Tom Jobim que me perdoe, mas Bolsonaro é como um samba de uma nota só.

Ao invés de “Brasil acima de tudo, deus acima de todos”, o verdadeiro lema do governo Bolsonaro é “Economia acima de tudo, lucro acima de todos”.

O fato de Bolsonaro ser um genocida não é uma absoluta novidade porque, a todo momento em que o presidente atleta que não consegue fazer flexões de braço faz discurso machista, misógino, homofóbico, racista, está reforçando comportamentos machistas, misóginos, homofóbicos, racistas presentes na sociedade brasileira. E não seria necessária uma lupa para constatar que isso é genocídio, assim como dar aos patrões, aos donos de lojas, as empresas de prestação de serviço, comércio e varejo em geral, as indústrias, autorização para voltarem à ativa e forçarem os seus trabalhadores a se exporem ao vírus e, consequentemente, intensificar a disseminação e aumentar o número de mortes.

Entretanto, os efeitos da campanha da morte de Bolsonaro são imediatos e catastróficos. O biólogo Átila Lamarino alertou para a possibilidade de o número de mortes ser superior a um milhão de brasileiros caso a quarentena seja interrompida. Mais uma vez, então, o governo Bolsonaro deixa evidente que não se importa com a classe trabalhadora, não se importa com a vida das trabalhadoras e dos trabalhadores que são as pessoas que, de fato, fazem a economia girar. É o governo da necropolítica.

Estava claro que o país iria bater no iceberg Covid-19. O que Bolsonaro fez foi, assim, acelerar o navio para afunda-lo mais rápido. Uma tragédia anunciada.

Ora, até as pedras do calçamento sabem que é muito fácil defender a volta à normalidade, quando quem de fato estará exposto ao vírus serão as trabalhadoras e trabalhadores que serão obrigados a voltarem a se abarrotar no transporte público sucateado, por exemplo. Bolsonaro diz que o Brasil não pode parar. Mas, para o presidente, ou, melhor, para a casa grande que faz manifestação no carro blindado e com ar-condicionado, o Brasil que não pode parar tem cor e classe social.

Os dois últimos pronunciamentos do presidente Bolsonaro, minimizando a gravidade da pandemia do novo coronavírus é, assim, um decreto de morte. É uma afronta a todo o esforço nacional para que o Sistema Único de Saúde (SUS) não entre em colapso diante do cenário emergencial.

O justo ódio que sentimos agora não deve ser aplacado. Não são tempos de meias palavras. Não há como evitar as críticas. É preciso apontar o dedo para o genocida-mor e para os genocidas que fazem coro, porque a narrativa que defendem está custando vidas. Portanto, mais do que nunca é hora de lutar contra todos que de forma explícita ou não contribuem com a ampliação da tragédia.

Antes de mais nada, vale ressaltar que a postura de Bolsonaro de incentivo a volta à normalidade é simples e objetiva. O presidente sabe muito bem que a economia do país vai naufragar nos próximos meses. Já vinha dando sinais de estagnação muito antes da pandemia. Ao taxar as medidas de enfrentamento à pandemia como “histeria” da oposição, dos governadores, da imprensa, Bolsonaro busca se isentar da culpa. Assim, quando ele tiver que explicar o inevitável naufrágio da economia do país, culpará a oposição, os governadores, a imprensa, que fez “campanha histérica” para que todos ficassem em casa. O seu ministro da saúde, que antes vinha sendo bastante elogiado, já se aquietou, chamando o Covid-19 de “virose”.

É, no mínimo, profundamente lamentável e condenável que Bolsonaro prefere vestir o uniforme de vítima de poderes que não lhe deixam agir para salvar a economia, ao invés de socorrer a classe trabalhadora, com a revogação da Emenda Constitucional 95, que congelou o orçamento, com a promoção de um amplo programa de renda mínima universal, com um pacote de ações emergenciais, tais como congelamento de aluguéis, juros e isenção de contas de serviços básicos como luz, água e gás (como alguns países estão fazendo). Ao invés de criar as condições necessárias para o povo ficar em casa sem perder o sustento, pois isto é a única coisa que pode frear a pandemia, prefere fazer chantagem com o trabalhador, dizendo que ele pode perder o emprego se continuar em casa. Enquanto isso, quer liberar R$ 1,2 trilhão para salvar o “mercado”, salvar os bancos que lucram bilhões por mês as nossas custas.

Como era de se esperar, a turba bolsonarista celebrou o aval presidencial para a volta à normalidade. A hashtag “Bolsonaro tem razão” ocupou na última quinta-feira (25), um dia após o pronunciamento do dia 24, o primeiro lugar nos trending topics. Já no dia seguinte ao pronunciamento, dezenas de carreatas em apoio ao presidente ocuparam as ruas vazias das cidades brasileiras. Verdadeiras “caravanas da morte” desfilando imbecilidade no “dia da vergonha”, como afirmou o historiador Gilberto Calil.

Mas, qual o pano de fundo da campanha “o Brasil não pode parar”? Sabemos que Bolsonaro e o “gabinete do ódio” comandado pelo Zero Dois não têm capacidade para um raciocínio original. O raciocínio é também algo que foge da habilidade deles. No presente artigo, então, procuraremos traçar as origens dessa campanha genocida.

Já foi apontado aqui no Esquerda Online pela Luciana Boiteux e por outros intelectuais que o separatista europeu Boris Johnson, assim como Trump, também já defenderam essa mesma postura irresponsável de apenas isolar as pessoas que pertencem aos grupos de risco e permitir que as pessoas que não estão, voltem a trabalhar, ou, no caso dos estudantes, voltem à escola.

Não se trata de algo específico do Brasil e do governo Bolsonaro. Em outros países isso também ocorre. Mas, por quê? Porque, como sentimos na pele todos os dias, o modus operandi do capitalismo é a constante produção da barbárie. Mais especificamente, a campanha contra a quarentena promovida pelo grande capital se deu, dentre outras razões, em reação as medidas adotadas pelo governo chinês para conter o avanço do novo corona vírus.

O historiador Gilberto Calil, aqui no Esquerda Online, apontou que em janeiro o mundo acompanhava a luta da China contra o vírus e a impressão era de que seria algo que não iria muito além deste país. Até o final de fevereiro, o vírus havia se espalhado por alguns países, mas a curva evolutiva seguia em um ritmo aparentemente controlado. O que poderia explicar isso? Uma das razões, segundo Calil, foram as medidas rigorosas impostas pelo governo Chinês, paralisando completamente a atividade econômica do pais para controlar o vírus. Os três mil mortos em um país que possuí uma população cuja cifra ultrapassa um bilhão de pessoas fez o mundo acreditar que a escala atingida pelo novo coronavírus não transcenderia isso. Diante dessa profunda retração econômica promovida pelo governo Chinês, o grande capital colocou, como sempre, os seus interesses capitalistas na frente. Realizou uma intensa campanha sustentando que o prejuízo econômico seria pior caso as medidas tomadas fossem se assemelhassem às promovidas pelo governo Chinês.

Uma campanha contra a quarentena também foi realizada na Itália. Em meados de fevereiro, Giuseppe Sala, prefeito de Milão, capital da Lombardia, divulgou um vídeo em que dizia “Milano non si ferma”, o que, na tradução literal, significa “Milão não pode parar”. Na época, a região contabilizava 258 casos e o país perdia para o Covid-19 cerca de 12 pessoas. No momento da escrita deste texto essa mesma região já contabiliza 35 mil casos notificados e 4 mil óbitos, metade do total do país. Após todas essas milhares de mortes, o prefeito acaba de admitir o erro, pedindo desculpas.

Nesse período, o primeiro ministro britânico Boris Johnson defendeu durante semanas a estratégia que ficou conhecida como “imunização do rebanho”. Essa bizarrice defendida durante semanas pelo primeiro ministro propunha a imunização rápida da população. Para isso, defendia que não ocorresse medidas de redução da propagação do vírus. Consequentemente, a maior parte da população seria infectada e, assim, estaria imunizada. Johnson só voltou atrás e pediu desculpas no dia 16 de março, com o estudo que evidenciou que essa medida levaria à morte quinhentos mil britânicos.

Diante do que ocorreu na China, vários empresários e conglomerados de mídia começaram, então, a falar em “reiniciar” a economia, mesmo às custas da vida da classe trabalhadora.

Nos EUA, um dos intelectuais orgânicos do capital que reproduziu o discurso contrário a quarentena foi Thomas Friedman, um dos colunistas mais famosos do mundo. No dia 22 de março, publicou em sua coluna no The New York Times o artigo intitulado “A plan to get America back to work”, que traduzindo literalmente significa “Um plano para fazer a América voltar ao trabalho”.

Friedman, que vive em uma mansão no subúrbio do estado de Maryland, nos EUA, defende uma tese simples e genocida: a cura da doença poderá ser pior do que a própria doença se a economia quebrar. Para Friedman seria mais interessante ocorrer uma intervenção cirúrgica, isolando somente os grupos de risco e permitir que o restante da população siga trabalhando para que a economia dos países não naufragarem. O isolamento seletivo seria uma “abordagem cirúrgica e vertical”, a qual “focaria em proteger e isolar os que correm maior risco de morrer ou sofrer danos de longo prazo – isto é, os idosos, pessoas com doenças crônicas e com baixa imunidade – e tratar o resto da sociedade basicamente da mesma forma que sempre lidamos com ameaças mais familiares como a gripe”.

O que tem sido feito até o momento é, continua Friedman, uma “interdição horizontal”, restringindo o movimento e o comércio sem considerar uma estratégia mais “cirúrgica” de “interdição vertical”, que pode evitar consequências gravíssimas para a economia. Se continuarmos com a ação horizontal, a cura da doença poderá ser pior do que a doença. A interdição vertical, entretanto, aplacaria o avanço do vírus e evitaria a falência da economia. Além disso, “o efeito rejuvenescedor na alma humana e na economia – de saber que existe luz no fim do túnel – é difícil de superestimar”. Mas, concorda Friedman, “o risco não será zero”.

As monstruosidades semânticas defendidas por Friedman são, no mínimo, um verdadeiro darwinismo social, em que as pessoas “menos aptas” deveriam deixar de existir porque não são capazes de acompanhar a linha evolutiva da sociedade.

O artigo de Friedman foi publicado na tarde do dia 22. À noite, no mesmo dia, Lloyd Blankfein publicou em sua conta no Twitter o seguinte (tradução literal): “Medidas extremas para achatar a ‘curva’ do vírus são sensatas – por um tempo – para não aumentar a pressão sobre a infraestrutura de saúde. Mas esmagar a economia, o emprego e a moral também é um problema de saúde – e além. Dentro de poucas semanas, deixe aqueles com menor risco para doença voltarem ao trabalho”. Blankfein é o presidente Asia Society da família Rockefeller e diretor executivo da Goldman Sachs, grupo financeiro multinacional, criado em 1869, sediado no distrito financeiro de Nova Iorque. Goldman Sachs é uma das principais gestoras no mundo de investimentos financeiros.

No dia seguinte, 23 de março, o principal assessor econômico do presidente Trump, Larry Kudlow, afirmou na Fox News que o custo do isolamento social imposto para combater o coronavírus é “simplesmente grande demais”.

Contam Max Abelson e Donald Moore que no mesmo dia o bilionário Tom Golisano, enquanto fumava um charuto Padron em sua mansão na Flórida, manifestava preocupação com o andamento da economia em meio as medidas de retração da circulação de pessoas. “Os danos de manter a economia fechada podem ser piores do que perder mais algumas pessoas”, disse o bilionário que possuí um patrimônio líquido avaliado em US$ 3 bilhões.

Horas depois, Trump em sua conta no Twitter afirmou no mesmo dia 23 de março que “não podemos deixar que a cura seja pior que o próprio problema. No final do período de 15 dias, tomaremos uma decisão quanto ao caminho que queremos seguir […]”. Em pronunciamento no mesmo dia afirmou “nosso país não foi feito para ser paralisado, não foi construído para isso, para ficar fechado”.

Logo após Trump sugerir que medidas de distanciamento social e quarentena deveriam ser contidas para evitar danos a economia, essa narrativa tornou-se (sem surpresa) hegemônica nas personalidades trumpistas da Fox News, um dos principais canais dos EUA.

Na mesma noite de domingo (23) que Trump disparou uma série de twetes com esse discurso contra as medidas defendidas pela OMS, para que a cura não “seja pior que o próprio problema”, o apresentador da Fox News, Steve Hilton, fez exatamente o mesmo argumento durante a transmissão de domingo à noite de The Next Revolution. “Nossa classe dominante e seus porta-vozes da TV provocam medo sobre esse vírus”, afirmou. “Eles podem pagar por um desligamento indefinido, os americanos que trabalham não podem, serão esmagados por isso”, continuou.

O discurso encontrou eco entre outras estrelas da Fox News, como Laura Ingraham, Brit Hume, Tomi Lahren e o principal âncora política do canal, Brit Hume, apelidado com o âncora de direita preferido da rede.

Glenn Beck, ex-apresentador da Fox News, afirmou em seu programa de rádio no dia 24 que ele queria ter uma “conversa franca” com os seus ouvintes. Beck foi ainda mais bizarro que a tumba anterior. Afirmou que os mais velhos, incluindo ele que possuí 56 anos, deveriam se sacrificar pela juventude, indo trabalhar no lugar dos jovens. “Prefiro que meus filhos fiquem em casa e todos elas com mais de 50 anos entrem e mantenham essa economia funcionando”. E continuou: “prefiro morrer a matar o país. Porque não é a economia que está morrendo, é o país”.

No mesmo dia Trump afirmou na Fox News que pretende ver a economia de volta à ativa e que “se perdemos essas empresas, estamos falando de centenas de milhares de empregos, milhões de empregos”. Por isso, continuou, “quanto mais rápido voltarmos, melhor será”. Nessa mesma manhã do 24 de março, o governador do Texas, o alucinado tenente Dan Patrick, fez coro para esse discurso.

No mesmo dia, Wells Fargo, CEO de um dos bancos mais predadores dos EUA, ao endossar a volta ao trabalho, afirmou que “alguns podem até morrer, eu não sei”. Mas, ele sabe, e outros mestres do universo também, que terão acesso prioritário no tratamento de Covid-19.

Gary Cohn, na tarde do dia 24, publicou em sua conta no Twitter (tradução própria): “o início da economia pode ser realizada inicialmente por locais que não possuem o novo corona vírus. Deveríamos ser capazes de lidar com a atividade econômica incremental em locais apropriados”. Cohn é o Diretor do Conselho Econômico Nacional da Casa Branca, foi o principal consultor econômico do presidente Trump de 2017 a 2018. Foi também diretor de operações da Goldman Sachs.

A campanha kamikaze persiste nos EUA, mas agora vamos falar um pouco da recepção dessa narrativa no Brasil.

No Brasil, uma versão traduzida do artigo de Thomas Friedman viralizou nas redes sociais poucas horas depois que o mesmo foi publicado no The New York Times. Essa versão foi publicada pelo Brazil Journal que possuí um número de seguidores no Facebook, por exemplo, reduzido, mas é constantemente compartilhado pelos gurus de Bolsonaro, como Olavo de Carvalho, Luciano Hang (dono da Havan), dentre outros. O Brazil Journal foi criado por Geraldo Samor, jornalista com passagem em Harvard, ex-colunista na Revista Veja e na Jovem Pan News.

Hang compartilhou em sua conta no Twitter a versão feita por Samor do artigo de Friedman na madrugada do dia 23. Fez também vídeos propagando essa narrativa. A ideia da campanha defendida por Friedman é também pano de fundo das falas de outros empresários que se organizam no Instituto Brasil 200, dentre os quais está Hang, Flavio Rocha (dono da Riachuelo). Esse Instituto foi criado em 2019, composto por empresários de todo o país, com o objetivo inicial de ajudar o governo a passar a reforma da previdência. Atualmente, adota outras pautas ultraliberais.

No dia 23, o empresário Roberto Justus gravou um áudio que “vazou”, no qual afirma que o novo corona vírus não passa de uma “gripezinha”, e que não há motivos para que a população entre em pânico. Disse ainda que a catástrofe econômica será ainda maior, caso a economia continue parada – e que não devemos nos preocupar com os pobres e moradores de favela, pois se morrerem, serão apenas idosos e pessoas doentes. No áudio ainda se dirigiu indiretamente ao biólogo Átila Lamariano, afirmando que se a pessoa tivesse um bom inglês, era para dar uma olhada em matérias “gringas” para ficar bem informado. No dia seguinte, Justus gravou um vídeo em que procura justificar o áudio. “Vamos isolar os idosos e as pessoas que têm problemas de saúde e vamos liberar o resto”, afirmou.

Italo Marsili, também no dia 23, em seu canal do Youtube, fez uma live divulgando o artigo de Friedman, apoiando-o. Marsili é médico psiquiatra, autor e ministrante de cursos online. Foi aluno do guru do Bolsonaro, Olavo de Carvalho. Em entrevista a Jovem Pan, Marsili conta que em 2003 entrou em contato com Olavo, pedindo “asilo intelectual”. O seu pedido foi atendido imediatamente e ficaram morando juntos durante um tempo nos EUA e mantém contato até hoje. A live de Marsili foi compartilhada por dezenas de pessoas, dentre elas por Olavo de Carvaho em sua conta no Twitter na manhã do dia 24, horas antes do pronunciamento de Bolsonaro, ocorrido no mesmo dia.

Mas, no dia anterior, Olavo de Carvalho compartilhou em sua conta no Twitter, dentre outras bizarrices: “O governo russo controla a epidemia no seu território sem interromper as atividades normas da população, enquanto persuade as nações ocidentais a proteger-se por meio da paralisia total”.

Também no dia 23, o dono da rede de restaurantes Madero, o empresário paranaense Junior Durski, manifestou discordância em relação a medida de confinamento da população brasileira por causa da pandemia. Segundo ele, o país sofrerá consequências econômicas muito mais graves do que a quantidade de óbitos. Manifestou-se em vídeo publicado em sua conta no Instagram, e que repercutiu no WhatsApp e outras redes. “As pessoas têm que produzir”, afirmou Durski, que também é membro do Instituto Brasil 200.

Alexandre Garcia, em seu canal no Youtube, deu eco ao mesmo discurso de que não se pode parar a economia para salvar vidas. Propõe ainda dividir o país por região, por zona, parando somente os lugares em que há casos de Covid-19. Se a medida horizontal continuar, vamos ter mais falidos do que falecidos, afirmou.

Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, afirmou no Twitter na tarde do dia 23 que “o Brasil não pode parar: abastecimentos, empregos e bem estar das famílias. Com responsabilidade e serenidade vencer. Protegendo o grupo sensível e seguindo a normalidade do dia a dia!”. Noutro twíte publicado no mesmo dia, afirmou: “proteção para idosos e pessoas do grupo mais vulnerável por debilitação em virtude do histórico de risco de saúde. As pessoas que não sofrem qualquer tipo de risco podem trabalhar e garantir ou sustentar suas famílias”. Curiosamente, dois dias antes, o Zero Dois afirmou: “Ninguém está falando em economia, mas sobrevivência”.

Eduardo Bolsonaro, no dia 23, twitou um vídeo com falas do primeiro ministro Boris Johnson, em que este afirma que o Reino Unido não pode parar. O Zero Três, no mesmo twíte, destacou que essa preocupação do primeiro ministro britânico é a mesma de seu pai, o Jair: “o coronavírus é muito sério, mas o país não pode parar”. No mesmo dia compartilhou, dentre outras monstruosidades semânticas, o vídeo de Justus que comentamos anteriormente.

Flavio Bolsonaro, em seu perfil no Facebook, no dia 23 também compartilhou o vídeo de Justus, alertando que “os efeitos de se fechar e paralisar todo o Brasil/mundo serão muito piores do que o coronavírus em si. E ele [Justus] tem razão”.

Na noite do dia 24, Bolsonaro, em pronunciamento, anuncia a campanha “O Brasil não pode parar”, copiando a campanha realizada em Milão. Afirmou que as autoridades devem evitar medidas como proibição de transportes, o fechamento do comércio e o confinamento em massa. “Nossa vida tem que continuar. Os empregos devem ser mantidos. O sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade”, destacou.

Mas, antes do pronunciamento, Bolsonaro já havia no Twitter dado coro as manifestações em prol da economia e contra a vida das pessoas. Publicou em sua conta na rede social no dia 23 o seguinte: “A epidemia afeta diretamente a todos, mas medidas extremas sem planejamento e racionalidade podem ser ainda mais nocivas do que a própria doença no longo prazo. Quando falamos em proteger empregos, também estamos falando de preservar a vida das pessoas. É isso que faremos!”.

Helio Beltrão, empresário, co-fundador do Instituto Millenium e fundador e presidente do Instituto Mises Brasil, twitou no dia 23: “Trump tem razão. Não podemos deixar que a cura seja o pior problema. Este bloqueio por tempo indeterminado […] mata o paciente”, compartilhando conjuntamente o twítte de Trump que comentamos anteriormente. O Instituto Mises Brasil congrega diferentes grupos econômicos, dentre eles Gerdau, Globo, Abril, Odebrecht, dentre outros, que não só financiam projetos, como também participam da tomada de decisões e articulação político-ideológica. A responsabilidade de gestão do Instituto fica por conta do Conselho de Governança, do qual participam, dentre outros nomes, João Roberto Marinho, Jorge Gerdau Johannpeter, Rodrigo Constantino, Henrique Meirelles. Segundo o historiador Flavio Casimiro, o instituto produz maciça quantidade de artigos em seu sítio eletrônico e serve como núcleo homogeneizador de intelectuais orgânicos da classe dominante com o intuito de defesa da agenda ultraliberal, além de “valores tradicionais da família” e dos “bons costumes”. Possuí uma grande rede de articulistas que amplificam e capilarizam os valores defendidos pela instituição nos mais diversificados meios, dentre eles Veja, IstoÉ, Época, Exame, Revista Brasileira de Economia, Realidade, Forbes Brasil, Voto, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Valor Econômico, Diário de São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, O Dia, Jornal da Tarde, A Tribuna, Zero Hora, Jornal da Cultura, Gazeta do Povo, dentre outros.

O Instituto Liberal também se manifestou no dia 23, através de um de seus colunistas, Gabriel Wilhems. No texto intitulado “Precisamos encontrar um meio-termo”, o Instituto taxa a quarentena como uma medida draconiana que pode gerar sérios custos para a economia do país. Em “A nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo” (Expressão Popular, 2018), Casimiro aponta que o Instituto Liberal foi fundado em 1983, por grupos de empresários e intelectuais de orientação ultraliberal. Na composição fundadora destaca-se o empreiteiro Donald Stewart Jr (Diretor-presidente da Ecisa Engenharia), José Luiz Carvalho (de formação atrelada à Escola de Economia da Universidade de Chicago), Jorge Gerdau Johannpeter (Grupo Gerdau), dentre outros. Entre seu corpo de mantenedores, figura diversificados grupos econômicos industriais (Grupo Monteiro Aranha S/A, Construtora Norberto Odebrecht, dentre outros) e instituições financeiras (Banco Bradesco S/A, Banco Itaú S/A, dentre outros). Até 2012, a direção mantinha vínculos fortes com sua fundação.

Rodrigo Constantino, ex-colunista da Revista Veja, replicou o artigo de Wilhems em sua coluna no jornal Gazeta do Povo. No dia seguinte, Constantino publicou outro artigo, desta vez de autoria própria, em que propõe que é “hora de repensar estratégia de combate ao coronavírus”, apontando não ser viável adotar um isolamento total. No artigo compartilha ainda um vídeo em que ele e Gabriel Kanner, do Brasil 200, conversam sobre o tema. A conversa, realizada no dia 23, apontava para esse novo rumo que o país deveria tomar para a economia não naufragar.

No mesmo jornal, o jornalista e diretor executivo do grupo EXAME, J.R. Guzzo, repercutiu em sua coluna o artigo de Friedman, no texto intitulado “Remédio contra o coronavírus é amargo e pior do que a doença”.

O texto de Friedman também teve grande repercussão na blogosfera de direita no país, sendo a sua versão traduzida replicada em vários espaços.

Foram, assim, inúmeras pessoas da classe dominante ou intelectuais orgânicos ligados a ela que propagaram e têm repercutido a narrativa que coloca o lucro acima da vida, chegando ao ponto de o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, defender que a população seja infectada o “quanto antes” para evitar a quebra da economia. No presente texto só trouxemos algumas dessas manifestações deprimentes. Calil escreveu um artigo sobre o negacionismo bolsonarista e como argumentar contra essas inverdades genocidas.

O fato é que a campanha “o Brasil não pode parar” é o retrato de uma classe mesquinha e covarde que, secularmente, vive envolta de cercas e grades combatendo tudo o que é diferente, tudo o que não for espelho, tudo o que possa ameaçar os seus interesses econômicos. É o retrato de uma classe que quer monopolizar os botes salva-vidas do Titanic. É o retrato de uma classe que manda para Cuba qualquer um que não se faça de cego aos direitos humanos, aos direitos das minorias, à universalidade e diversidade da vida. A praga revela, assim, o retrato da classe burguesa e de seus intelectuais orgânicos.

O sangue das trabalhadoras e dos trabalhadores que já estão morrendo e que morrerão por conta dessa campanha está nas mãos do presidente e de seus apoiadores. Está nas mãos da classe burguesa e seus asseclas que vivem na escuridão de sua própria ignorância escondendo o vazio existencial dentro da bolsa cara e abafando o odor de medo com perfume francês.

A pergunta que paira no ar é: quantas vidas precisarão morrer para salvarem o grande capital?

 

* Professor de história.