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Brasil: a construção da tragédia

Marco Santos / Agência Pará / Fotos públicas

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

Desde o pronunciamento de Jair Bolsonaro do último dia 31 de março, apresentado como “mais sensato” pela única razão de que o pronunciamento da semana anterior era criminosamente irresponsável e propagador de desinformações múltiplas, o tom das críticas midiáticas às políticas contraditórias e insuficientes do Ministério da Saúde diminuiu, e mesmo os atos de ostensiva sabotagem presidencial ao isolamento presidencial passaram a ser tratados como problemas menores pela grande mídia. A postergação da aprovação Renda Emergencial tem evidente conexão com a intenção política de sabotar o isolamento social e produzir uma situação catastrófica, mas muitas vezes é apresentada como questão técnica.

Marco Gabbardo. Foto: Agência Brasil

Junto a isto, constitui-se um discurso que afirma que o isolamento social, na forma como está sendo realizado no país, já produziu efeitos positivos (como se estivéssemos em um ponto onde seria possível seu abrandamento). Isto se expressou nas afirmações (1) do Secretário Executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo dos Reis, para quem “a dinâmica da doença no Brasil está abaixo da curva de crescimento da Espanha, Itália e Estados Unidos, a partir do centésimo caso”. Afirmou ainda que “nenhum [país] se preparou tanto quanto o Brasil, tivemos sorte pra nos preparar da melhor forma possível, outros países não tiveram esse tempo. A grande maioria dos hospitais hoje estão vazios.(2) A frase sobre “hospitais vazios”, absurdamente falsa, repete afirmação do próprio Bolsonaro. A tese da boa preparação soa ridícula frente à realidade enfrentada pelos profissionais da saúde. Mas a questão central é: nossa curva está realmente abaixo dos demais países?

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É claro de que trabalhando com números para produzir quadros e gráficos, cada corte e critério usado pode servir para embasar conclusões distintas, e em algum momento os três países citados tiveram uma explosão de casos. Na Itália isto se deu na sequência do movimento Milano no si ferma e consequente reabertura do comércio, e nos Estados Unidos, dos discursos de Trump minimizando os riscos do Covid-19 e vendendo ilusões sobre a eficácia da cloroquina. Após uma tardia autocrítica, tanto Trump quanto a prefeitura de Milão reviram suas posições, mas demorou muito tempo para que isto a redução do ritmo de crescimento das mortes, em virtude da defasagem geral pelo período de incubação e prazo de desenvolvimento da doença até seu agravamento.

Para além disto, inegavelmente a comparação entre diferentes realidades nacionais é muito prejudicada pelos diferentes patamares de subnotificação, a qual a despeito dos discursos oficiais, é enorme no caso brasileiro. Por isto é importante contrastar o discurso oficial com a curva de evolução de óbitos, a partir da data da primeira morte. Temos clareza de que mesmo aí existe o problema da subnotificação, que se expressa tanto em situações de mortos que sequer foram testados, quanto na defasagem de tempo entre a morte e o resultado do exame, já que absurdamente (para um país que supostamente se preparou tão bem), grande parte dos óbitos ocorre antes de que seja conhecido o resultado do exame. Ainda assim, supondo que o registro de óbitos esteja um pouco menos distante da realidade do que o registro de casos, temos a seguinte situação:

Incluímos intencionalmente a Argentina para destacar a diferença dos resultados produzidos quando há uma política efetiva e unificada para garantia do isolamento social. Mesmo tendo tido o primeiro óbito dez dias antes do Brasil, o país vizinho tem menos de 10% das mortes que o Brasil, e menos da metade de mortos por milhão de habitantes (0,94 Argentina, 2.06 Brasil). Em relação à Itália, até o 15º dia, o ritmo de crescimento do número de vítimas fatais no Brasil seguia superior. Foi justamente neste momento, na segunda semana de março, que os índices italianos explodiram, o que se explica pelo fato de que a campanha Milano no si ferma foi lançada dia 26 de fevereiro, e que seus efeitos não se restringiram à cidade de Milão, mas ecoaram em diferentes partes da Itália, em especial na Lombardia (da qual Milão é a capital), que concentra ainda hoje 39% dos casos e mais de 56% das mortes na Itália. Considerar positivo que nossa curva esteja um pouco abaixo da italiana neste momento seria uma verdadeira demência, considerando que a Itália tem já mais de 15.000 mortes (número que inevitavelmente ainda crescerá bastante) e que o Brasil tem três vezes e meia a população da Itália, portanto caso siga a curva de evolução italiana, o Brasil teria mais de 50.000 mortes. Em relação aos Estados Unidos, a curva brasileira é nitidamente mais inclinada, pois o ponto de inflexão lá se deu mais tardiamente. Também lá, os discursos presidenciais foram combustível para a propagação da pandemia. Em 26 de fevereiro Trump afirmou que a situação estava sob controle e que o Covid-19 era uma simples gripe sem maiores consequências. No dia 20 de março, exacerbou sua posição, minimizando a ameaça da pandemia e sustentando a eficiência da cloraquina no tratamento dos doentes. (3) Naquele momento, os Estados Unidos tinham registrados 9.000 casos e tinham aumentado nove vezes em uma semana. Cinco dias depois, o número de mortos disparou, chegando ontem a 1.331 mortes em apenas um dia. 

Ainda considerando o número de mortos, outra forma de avaliar e comparar o ritmo de crescimento dos diferentes países, considerando que ontem o Brasil ultrapassou oficialmente 400 mortes, é observar quantos dias, a partir da primeira morte, cada país demorou para chegar neste ponto. Os resultados são, uma vez mais preocupantes:

Turquia e Bélgica vem apresentando ritmos de crescimento muito altos, chegando rapidamente ao grupo dos países com mais casos e com mais mortes, embora a Bélgica tenha pouco mais de dez milhões de habitantes. São países que estão também entre os que registram maior número de pacientes graves e muito provavelmente terão rápido acréscimo de mortes. Os outros dois países com crescimento mais acelerado que o Brasil são Espanha e Itália, no epicentro mundial da pandemia. Pelas suas características, o Brasil poderia ser comparado com os Estados Unidos, de dimensões continentais e com distintas regionalidade. Mesmo na condição acima indicada, de minimização dos riscos por parte de seu presidente até recentemente, os Estados Unidos levaram quatro dias a mais que o Brasil para chegar a 400 mortes, o que é bastante expressivo.

Isto indica que a situação brasileira é dramática. Não como algo isolado, pois o quadro mundial é muito preocupante, mas o suficiente para que possamos considerar que o discurso do Ministério da Saúde é inadequado e inapropriado. O crescimento do número de mortes diárias vem se dando em progressão geométrica:

Observa-se que no decorrer do mês de março e até aqui, em média a cada cinco dias o número diário de mortes no mundo duplicou. Já no caso brasileiro, a proporção é ainda maior, chegando a quase três vezes por intervalo.

Este conjunto de dados indica que se a posição daquele que ocupa a presidência da República é inqualificável, e por comparação a do Ministério da Saúde parece mais razoável, nem por isto ela está à altura das necessidades ou aborda adequadamente o quadro atual. A situação é muito grave, há uma tragédia nacional em construção e mesmo as imprescindíveis medidas de solidariedade social que felizmente vem crescendo bastante nos últimos dias serão insuficientes em um quadro próximo de colapso da saúde.

 

NOTAS

1 – Jornal O Globo

2 – EBC

3 – Revista Exame

 

 

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