Pular para o conteúdo
Colunas

Como a crise nos ensina que as refinarias, gasodutos e distribuidoras não podem ser privatizadas

Economia para os 99%

É difícil afirmar que o capitalismo deu certo vivendo em um país onde mais de um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza. Mas se você fizer parte do “1%” mais rico por que não achar que está “tudo bem, obrigado”? Esta coluna se preocupa com temas econômicos do cotidiano: desemprego, renda, passagem de ônibus, inflação, aposentadoria e um longo etc., mas sempre na perspectiva dos 99%, afinal de contas, nenhuma análise econômica é neutra.

Eric Gil Dantas é economista do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (IBEPS) e doutor em Ciência Política. É militante da Resistência/PSOL.

Nove de março de 2020 foi o estopim da, provavelmente, maior crise econômica do século XXI. Estopim porque esta crise já se gestava, no mínimo, desde o ano passado. Este artigo objetiva apresentar aos petroleiros como se iniciou esta grande crise e quais são as suas consequências para o mercado do petróleo em todo o mundo, principalmente no que se refere à importância da manutenção do refino, distribuição e comercialização da Petrobrás como política de sobrevivência ao novo cenário que se desenha.

A partir de dados do Banco Mundial, podemos observar que entre 2017 e 2018 o mundo passou a crescer menos, como podemos observar no Gráfico 1, ou seja, uma desaceleração econômica. Entre 2017 e 2019 a economia global já estava desacelerando em quase 1 ponto percentual. Já em dezembro de 2019, após o encontro anual do Comitê Monetário e Financeiro do FMI, o órgão havia comunicado a sua preocupação com a desaceleração econômica global. Após ter cortado a previsão de crescimento para o ano de 2020, ainda em dezembro, a entidade afirmava que isto ocorria por conta da guerra comercial entre EUA e China, limitado espaço para uso de políticas, riscos geopolíticos e elevado e crescente nível de endividamento e vulnerabilidades financeiras. Sequer o grande deflagrador da crise, a pandemia do Coronavírus, havia sido relevante na discussão do órgão.

Gráfico 1 – Crescimento anual do PIB por região


Fonte: Banco Mundial

 

É importante apontar que o Brasil estava indo na mesma linha, como pode ser visto no Gráfico 2. Em 2019 o país cresceu menos do que nos anos de 2017 e 2018, muito diferente da expectativa de quando Bolsonaro foi eleito presidente, o qual o mercado dizia que o Brasil iria crescer a uma taxa de 2,5%. As previsões para o crescimento do PIB em 2020 também já estavam se deteriorando muito antes da chegada do Coronavírus no país, por conta dos péssimos resultados do primeiro ano de Bolsonaro. As reformas, diferentemente do que Temer e Bolsonaro prometeram, não entregaram nenhum crescimento econômico.

Gráfico 2 – Taxa de crescimento anual do PIB brasileiro

Fonte: IBGE

 

Posto este contexto, o de desaceleração econômica mundial, podemos ver que a crise desencadeada no dia 9 de março não foi um raio em um céu azul. O comportamento da economia capitalista se caracteriza por sua trajetória cíclica, com fases de crescimento, ápice, crise e depressão, o ciclo inteiro se completando, em média, em dez anos. No entanto, nem todas as crises econômicas são tão fortes como as duas últimas, esta e a de 2008.

Para que entendamos o início desta crise é importante voltarmos para duas datas específicas, os dias 9 e 11 de março.

No primeiro dia assistimos o início do conflito entre Rússia e Arábia Saudita. Poucos dias antes, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo e aliados (OPEP+) havia decidido por diminuir a produção de petróleo para assegurar os preços desta commodity, pois, como já vimos, a economia já não estava tão bem, e economia ruim é igual a preço de petróleo baixo. No entanto, a Rússia não aceitou a decisão da OPEP+, se recusando a diminuir sua produção por pressão do empresariado russo. Isto fez com que a Arábia Saudita, através da sua petrolífera estatal, Aramco, decidisse por abarrotar o mercado mundial com petróleo, ao mesmo tempo em que diminuiria o seu preço. Como consequência, vimos o preço do barril de petróleo cair 24,1% em um único dia, como pode ser visto no Gráfico 3 (segundo a Petrobrás, o preço médio do barril de petróleo no ano de 2019 foi de US$ 64,3, duas vezes e meia o valor atual). Como efeito no Brasil, vimos a imediata queda da bolsa de valores, puxada principalmente pela perda de valor de mercado da Petrobrás, em mais de R$ 90 bilhões.

Gráfico 3 – Preço do barril (brent) entre os dias 25 de fevereiro e 25 de março de 2020 (em dólares)

Fonte: Investing

 

Temos um agravante para as consequências disto no caso brasileiro. O petróleo foi uma mercadoria que ajudou bastante a economia em 2019 em três diferentes pontos. O primeiro foi a arrecadação via leilões, lembrando que a 16ª rodada de leilões rendeu R$ 8,9 bilhões e a cessão onerosa R$ 69,96 bilhões, especificamente com bônus. Somando ambos os valores temos quase 3% de tudo o que foi arrecadado pelo Governo Federal em 2019, uma baita ajuda. No segundo ponto temos a arrecadação via royalties. Com o valor do barril em alta, os estados passaram a arrecadar muito mais com a exploração do petróleo. O Rio de Janeiro, em 2019, arrecadou cerca de R$ 16 bilhões, quatro vezes e meio a mais do que em 2016, pior ano da crise fiscal fluminense. A própria Petrobras pagou mais 527% de royalties no país em 2019, se comparado ao ano de 2016. E lembrando que, em 2016, o preço do brent estava, em média, segundo a Petrobrás, US$ 43,69, muito acima do patamar atual! O terceiro refere-se ao lucro da Petrobrás. Este número foi inchado por conta das privatizações feitas no ano de 2019, a estatal lucrou R$ 40,2 bilhões, e até setembro daquele ano, o Governo Federal já havia recebido R$ 3,91 bilhões deste lucro, em forma de dividendos, segundo o Boletim das Empresas Estatais Federais. Somando tudo isto, podemos ver que a Petrobrás e o setor de petróleo ajudaram bastante nas contas públicas do ano, o que não ocorrerá em 2020.

Voltando à nossa linha do tempo, vamos ao segundo dia importante para entender a crise, 11 de março. Neste dia a OMS declarou estado de pandemia por conta do Coronavírus, quando o número de infectados no mundo já atingia os 128,4 mil. O combate ao vírus tem um impacto econômico direto. A China, país onde o vírus surgiu, publicou recentemente seus dados sobre produção industrial de janeiro e fevereiro deste ano, indicando uma queda de 13,5% em relação ao ano anterior. Pensemos isto em escala global. Trump já declarou que possivelmente os EUA entrará em recessão neste ano, assim como já há previsão para isto ocorra também no Brasil (o Banco Central estima crescimento de 0%, mas a XP Investimentos prevê retração de 1,9%). Isto ocorre, primeiramente, porque a produção industrial para, mas também porque a circulação de pessoas diminui, impactando assim a economia tanto pelo lado a oferta quanto pelo lado da demanda. E isto ocorre em uma economia que já estava fraca.

A partir disto, tivemos quedas históricas na bolsa de valores brasileira, a B3 (antiga Bovespa), e altas históricas no dólar. A primeira ocorreu por conta do novo cenário econômico, com perda de valores das empresas e expectativas sobre a atividade econômica, principalmente de empresas dos setores mais atingidos, como de petróleo (Petrobrás), turismo (CVC) e aviação (Azul). Muitos estrangeiros tiraram dinheiro da bolsa para levarem para seus países ou para países com maior “confiança”, tal como os EUA. As desvalorizações ocorreram não só no Brasil. Na quinta-feira, 12, as bolsas de valores do mundo inteiro tiveram o pior pregão desde 19 de outubro de 1987, período conhecido como Segunda-Feira Negra, no qual o índice Dow Jones, da Bolsa de Nova York, desabou 22,61%. Mas o que chama a atenção é que o Brasil teve desvalorizações mais fortes do que a maioria dos outros países. E isto nos liga à outra questão, a do dólar. Com a saída de dinheiro do país, a demanda pela moeda americana aumentou, fazendo subir o câmbio. No dia 16 de março o dólar fechou, pela primeira vez, acima do valor nominal de R$ 5,00, e uma semana depois atingiu a sua máxima nominal, de R$ 5,14. Apesar de não ter ultrapassado o maior valor real (se considerarmos a inflação) da história, que ocorreu em 2002, quando o dólar chegou a um valor próximo de R$ 7,50 em valores atuais. Este é um câmbio extremamente problemático, sintoma de uma economia de onde todos estão fugindo. O mercado, segundo o Boletim Focus (do Banco Central do Brasil), prevê que nos próximos 3 anos o valor do dólar continuará acima dos 4 reais – entre R$ 4,23 e R$ 4,50).

Mas este novo cenário muda fortemente a configuração do setor petrolífero. Segundo o jornal britânico Financial Times, esta pode ser a pior crise no setor nos últimos 100 anos. E parece mesmo. Com o derretimento dos preços, que pode ser visto na série histórica do Gráfico 4, a era donde a produção era muito lucrativa se encerra. Para se ter uma ideia, o valor atual do brent, US$ 24,91, é a metade da média do preço do barril se considerarmos o período de janeiro de 1990 até hoje, e equivale a 38% da média do valor do brent no século XXI.

Gráfico 4 – Preço semanal do barril (brent) entre os dias 1 de janeiro e 27 de março de 2020 (em dólares – em valores nominais)

Fonte: Investing

 

Estes dados ainda nos fazem subestimar o problema, pois estão em valores nominais, sem deflacioná-los. Mas o dólar de janeiro de 1990 valia muito mais do que o dólar de março de 2020, pois de lá para cá, a inflação acumulada nos EUA foi de 68,46%, fazendo com que o valor atual seja, em termos reais, muito menor do que o do início da década de 1990.

Tendo este novo cenário em vista, com a possibilidade de o preço do petróleo permanecer por tempo indeterminado a níveis pré-crise do choque do petróleo, a defesa de uma Petrobrás verticalizada, abrangendo todos os níveis do setor, ganha importância. Mesmo que haja uma resolução entre o conflito de Rússia e Arábia Saudita, o que ainda não está no radar, há a imensa queda da demanda por petróleo, causada pela crise instaurada, que deixará marcas profundas no setor. Haverá aumento do home office, diminuindo assim a demanda por petróleo? Haverá uma aceleração da transição energética? Tudo isto está sendo posto por analistas do setor.

É importante que a Petrobrás abandone urgentemente o seu plano de ser apenas uma operadora do pré-sal, vendendo suas refinarias, suas distribuidoras e transportadoras e abandonando a pesquisa para transição energética. A realidade se impôs a um argumento infantil que vem desde o governo Temer, de acabar com a empresa verticalizada, pois nada seria mais lucrativo do que extrair o petróleo do pré-sal (ao menos a parte que não deram de presente às outras petroleiras). Afinal de contas, podemos deixar a Petrobrás dependendo unicamente do preço do barril de petróleo? Além disto, o valor está beirando o preço de equilíbrio da estatal para os próximos anos, que é de US$ 25, o que faz a questão ainda mais urgente.

Bem, defender a Petrobrás verticalizada deixou de ser apenas uma questão futura, está posta para o já turbulento ano de 2020.

[1] Economista do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais, é doutor em Ciência Política pela UFPR.

Publicado originalmente no site do Sindipetro SJC.