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BRASIL

Currículo escolar: uma discussão necessária

Adriano Nascimento e Leonardo Chacal, professores da rede estadual paulista
Pedro RIbas / AnPR

Há uma forte tendência, nos dias que se seguem, de contínuo esvaziamento do conteúdo (científico, filosófico e artístico) nos currículos da escola pública. Do Banco Mundial aos cursos de pedagogia, passando por alguns “novos” movimentos sociais,chegando até o Estado, é dito que as crianças e os adolescentes do mundo contemporâneo não precisam ter mais acesso, na escola, ao conhecimento erudito e sistematizado que a humanidade produziu historicamente, no lugar advogam o ensino, por exemplo, de competências socioemocionais, seja lá o que isso possa significar.

Da África do Sul ao Canadá, após uma campanha de décadas financiada pelo Banco Mundial, construíram um consenso de que uma educação de qualidade (ou seja, uma educação baseada nos valores do mundo ocidental) possa resolver, senão todos, pelo menos, boa parte dos nossos problemas sociais, éticos, políticos, ambientais etc. Em suma: esperam que a escola salve o mundo de uma catástrofe.

Nesse contexto, o governo brasileiro, desde os anos 1990, elabora diversas políticas públicas que visam incentivar o desenvolvimento da educação nos moldes acima mencionados. A própria LDB (Lei de diretrizes e bases) de 1996 é uma amostra disso. A partir da década de 1990, finalmente, inicia-se um processo de universalização do ensino, o Brasil figurava entre os nove países com as maiores taxas de analfabetismo.

Movidos pela onda liberal que correu o mundo, desde o fim da URSS, o governo brasileiro atuou em parceria com instituições e organismos internacionais que tinham por objetivo contribuir financeiramente com aqueles países considerados em “desenvolvimento”. No entanto, atrelada à  ajuda financeira estaria também algumas orientações técnicas sobre como tal investimento deveria ser aplicado, ou seja, junto ao dinheiro também veio uma proposta de ensino para os jovens brasileiros. Em poucas palavras, o ensino deveria – como sempre aconteceu – preparar os nossos jovens para o chamado “mundo do trabalho” e também para a cidadania. O papel da educação é adequar alunos e alunas às novas tecnologias e aos avanços da ciência, além de trazer algum grau de civilização.

O maior parceiro do Brasil foi e continua sendo o Banco Mundial. Uma instituição criada a princípio para ajudar os países europeus que sofriam as consequências da segunda guerra mundial (1939 – 1945), mas que logo passou a investir também nas principais economias em desenvolvimento, como a brasileira. 

Orientado pelo Banco Mundial, o Brasil, desde os anos 1990, como já sabemos, passando pela Lei de Diretrizes e Bases de 1996, elabora políticas públicas que pressupõe parcerias público-privadas, ou seja, o Estado brasileiro repassa fundos públicos para empresas privadas atuarem no setor educacional. Isso ocorre nas três esferas de governo (municipal, estadual e federal). Tais repasses assumem diversas formas: desde verbas públicas ou incentivos fiscais para escolas filantrópicas, por exemplo, ou pela contratação de empresas privadas que prestam algum tipo de serviço: construção de salas de aula, livros didáticos, apostilas, sistemas de computadores, laboratórios de informática etc. 

De uma maneira ou de outra, o cenário acima nos revela que o setor educacional passava enfim a despertar o interesse do capital privado. Começaram a surgir no Brasil diversas instituições educacionais, todas elas ligadas ao capital financeiro (Fundação Lemann; Instituto Ayrton Senna etc.). A educação tornava-se uma mercadoria. Quando a educação se torna mercadoria, investidores financeiros, orientados por consultores de mercado, migram das áreas tradicionais de investimento para o campo educacional em busca de lucros. A educação deixa de ser um bem ou um direito público e transforma-se num negócio.

O cerne de todo o debate em torno das reformas educacionais é a possibilidade de investimentos privados na esfera pública: o lucro! Seja este direto, com a participação cada vez maior de instituições na elaboração, distribuição e aplicação de sistemas de ensino ou indireto, com a formação em todos os níveis e formas de força de trabalho (nas classes dominadas) e quadros dirigentes (nas classes dominantes) capazes de gerir os negócios em prol da manutenção do status quo.

Luta de classes e currículo

Ora, é justamente aí que entramos no objetivo deste texto, qual seja, o de mostrar que a luta de classes na escola pública gira em torno do tipo de conhecimento que se quer socializar: o que aprender, como aprender e com qual objetivo. Segue-se que, a partir disto, é organizado o currículo, a formação dos professores, as apostilas, os livros didáticos e as políticas de educação em geral. Portanto, partindo principalmente das necessidades do capital em dado contexto histórico, determina-se o que deve ser ensinado, como e com quais objetivos. 

Pois bem. Para não cairmos no idealismo pedagógico, que pensa a escola como o lugar privilegiado na luta pela conquista de “consciências” críticas e revolucionárias, é preciso frisar que estamos falando da escola pública nesta sociedade dividida em duas classes estruturalmente antagônicas, ou seja, a burguesia e o proletariado. Nesse sentido, qual seria, então, o papel desta escola para os interesses da classe trabalhadora? Ou seja, o que fazer com a educação pública, partindo desta realidade contraditória, para que ela possa atender as necessidades imediatas e a longo prazo dos explorados e oprimidos?

A resposta, para um tema tão complexo, é simples e bem sabida por muitos: socializar o que de melhor a humanidade produziu de conhecimento científico, artístico e filosófico. Ou seja, os alunos e alunas precisam aprender a ler e escrever, entender as operações básicas e intermediárias da matemática, noções introdutórias das ciências da natureza (biologia, química, física) e das ciências da sociedade (sociologia, geografia, história), como também filosofia e arte. Mediar, portanto, o conhecimento sistemático com aquilo que os alunos já sabem, que em geral, é ao nível do senso comum. 

Dirão, os mais apressados, que isto é óbvio! Mas vejam que este “simples” objetivo encontra duras barreiras para ser realizado; por exemplo, a precária formação dos professores e sua jornada de trabalho abusiva, seus baixos salários e a inexistência de um plano de carreira atrativo. Junte-se a tudo isto a péssima estrutura física das escolas públicas no Brasil que, de acordo com o Censo Escolar de 2017, não oferece, para maioria delas, laboratórios de ciências e informática, bibliotecas, internet e saneamento básico! 

O saber científico transformado em saber escolar serve, na luta de classes, para instrumentalizar os trabalhadores à organização de sua força enquanto classe revolucionária. Vejam bem: não é da escola que eles podem chegar à famigerada “consciência de classe”. Isto é um delírio! A consciência socialista surge na luta, no embate contra a burguesia; é, portanto, resultado da prática revolucionária e não do puro conhecimento teórico. Como já foi dito, é preciso saber qual o papel específico que a escola cumpre numa sociedade dividida em classes. E para os trabalhadores, o que de melhor ela pode oferecer é o conhecimento erudito e sistematizado, produzido por toda a humanidade, mas que é apropriado pelas classes dominantes e usado para reprimir e explorar as classes dominadas. 

E é preciso frisar que uma educação emancipada só é possível numa sociedade emancipada. Ou seja, na sociedade das mercadorias, podemos realizar algumas atividades, tarefas e experiências (sobretudo socializando o conhecimento) que contribuam com o movimento de derrubada do capital à construção da emancipação humana. Entendendo, sempre, que a educação não pode ser a vanguarda deste movimento. Enfim, uma educação sistematicamente emancipada, que leve em conta as reais necessidades humanas, é impossível de ser feita sob a égide do Estado.

Portanto, os desafios são grandes. Pois temos todas essas dificuldades, como a formação dos professores, os baixos salários, escolas sem estrutura e nada interessantes para os alunos e alunas etc. Mas é a partir desta realidade concreta que devem ser pensadas as táticas e estratégias das possibilidades de socialização do conhecimento científico aos filhos e filhas da classe trabalhadora nesta sociedade de classes.

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currículo / educação