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BRASIL

Aqui em casa não bate sol

Isabela Blanco*, do Rio de Janeiro (RJ)
Giotto di Bondone

Hoje fui pegar sol na praça. Na minha casa não bate sol nessa época do ano, o que faz a casa ser fria no inverno e fresca no verão. Isso costumava ser bom, na pandemia não, na pandemia não bate sol. Então eu criei coragem, peguei o elevador e sentei na praça. Sozinha. 

De repente você chegou com seu avô e seu carro. Por um momento eu fiquei desconfortável, seu avô provavelmente está na “faixa de risco” e você deve ser um pequeno “vetor do vírus”. “Deus protege”, ele disse, “a gente precisa pegar sol”. Concordo com a cabeça, é preciso ter uma boa justificativa pra estar na praça hoje em dia, eu também preciso pegar sol. 

Depois dessa socialização forçada e constrangida eu volto a me concentrar. Seu avô vai pegar sol, você vai brincar e deus vai proteger. Tudo no lugar. Não é o que acontece. A praça é enorme, mas na primeira oportunidade você tenta me atropela com seu carro. “O nome dele é Henrique, ele faz 2 anos dia 31 agora”. Poxa, Henrique, será que você não viu o jornal ontem? 

Eu sei que você não entende nada disso Henrique. Eu sei que você não viu o jornal. Eu sei que você não sabe nada de isolamento social. Você ainda vive em um mundo onde é possível pedir beijos pra moças desconhecidas na praça. É, você fez isso Henrique, andou na minha direção, sacudiu as mãozinhas e me pediu um beijo. Eu não dei, eu neguei, eu nem encostei em você Henrique. Eu vi o jornal ontem. 

No meio disso apareceu uma senhora, ela andou em minha direção (a essa altura eu já considerava, sinceramente, se tinha sido uma boa ideia pegar sol na praça), sentou do meu lado, a um metro e meio e disse “é por causa do sol”. Respiro aliviada, ela não estava andando em minha direção, por um minuto de delírio imaginei que ela também ia balançar os bracinhos e pedir um beijo, ela só queria sentar na metade da praça onde batia sol. 

—Essa doença veio por causa do carnaval. 

Pronto Henrique, viu o que a gente fez? Enquanto você desfila por aí imprudente sacudindo os bracinhos a senhora do meu lado condena todos os beijos sem compromisso na praça. 

—Acho que não, eu respondo.
—Quando você acha que vai acabar?
—Não sei, acho que se a gente ficar em casa vai acabar mais rápido.
—Você conhece alguém que morreu?
—Não, só vi no jornal. 

Eu levanto pra voltar pra casa. Depois de duas semanas de quarentena já estou exausta de tanta interação social. Quando será o dia em que eu vou conhecer alguém que morreu? Quando será que vai acabar? Mas você não desiste Henrique, rapidamente você corre de novo pra perto de mim e pede um beijo. Eu fico constrangida. Eu quero um beijo. E pegar sol. Isso costumava ser bom. Mas na pandemia não. Na pandemia não bate sol e beijos na praça estão proibidos. 

Eu neguei seu beijo duas vezes, Henrique. Pedro negou Jesus três. Judas beijou Jesus uma vez, Henrique, eu não te beijei nenhuma. “E o que o traía tinha-lhes dado um sinal, dizendo: o que eu beijar é esse; prendei-o.” (Mt 26:48) Sim, eu neguei seu beijo, eu virei o rosto, eu parti meu coração. Desculpa por isso tudo Henrique, eu queria correr com você pela praça e pegar sol. Mas na pandemia não pode beijo, não pode praça e aqui em casa, nessa época, não bate sol. 

Dedico esse texto ao meu amigo Felipe Demier. 
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coronavírus