Recentes manifestações do presidente da República, ecoando a fala de empresários a ele ligados e de acionistas da Bolsa de Valores, de que é preciso interromper imediatamente as restrições da quarentena, abrir o comércio, os templos e igrejas, as escolas, colocar o mercado em ação para fazer girar a economia, a despeito da epidemia, não podem ser naturalizadas como folclóricas ou como manifestação exclusiva de insanidade.
O corolário implícito ou explícito desses posicionamentos é que os efeitos colaterais de tais medidas seriam plenamente justificáveis mesmo que custasse a vida de alguns milhares (5 ou 7 mil, como disse um representante ‘moderno’ da área de serviços), dezenas de milhares e, possivelmente, milhões de pessoas. Apenas entre pessoas com mais de 60 anos, são mais de 30 milhões de vidas que importam, isso sem falar nas demais pessoas. Conforme os indicadores da OMS, a letalidade é relevante também em outras faixas etárias, inclusive de jovens.
A mensagem presidencial é, pois, de esperança em certo futuro. O custo seria pequeno e aceitável frente aos benefícios para os negócios. Idealiza o futuro para justificar massacres no presente. Justamente por projetar o porvir, a política preconizada – é necessário frisar, a política, pois feita em cadeia nacional com a conivência de todos os ministros do governo – precisa ser pensada de modo sistemático e rigoroso.
Política de morte: uma longa trajetória política
O fascismo é uma política de morte. Morte seletiva de judeus, gays, comunistas, socialistas, negros, ciganos, artistas ‘degenerados’; em resumo, morte de um outro de menor grau de humanidade, um outro inferior. Conforme o darwinismo social (que nada tem a ver com as ideias de Darwin), existe uma hierarquia de raças, culturas e naturezas humanas.
O direito à vida é e tem que ser diferenciado e compete ao Estado definir os que podem sucumbir em nome do futuro. Reduzir a população de ineptos é uma medida eugênica, como já apregoava, no século XIX, Francis Galton. Os fascistas veem na morte, com soberba, um acontecimento generoso: ao ficarem no caminho, ajudam os mais fortes, melhoram a espécie.
A doutrina fascista preconiza, por conseguinte, que o endurecimento – violento e competitivo – da ‘seleção natural’ é benéfico para o aperfeiçoamento da humanidade: os mais evoluídos sobreviverão e deixarão descendentes mais aptos à vida. E, desse modo, os mais evoluídos poderão afirmar sua cultura como dominante para a raça ‘purificada’. O fascismo, nesse prisma, é uma forma de ‘Guerra Cultural’. Destruir a cultura inferior, inclusive a que circula nos livros, escolas e universidades, joga a favor da seletividade social necessária ao modo de vida dominante.
Darwinismo social no Brasil de hoje
Diante de uma crise econômica de tectônicas proporções, potencializada pela epidemia, a humanidade está sendo interpelada sobre as alternativas possíveis. E as referidas manifestações em prol da “solução final” de imensa quantidade de pessoas, expressam a atualidade da autocracia burguesa no século XXI.
A política pretendida pelo governo tem raízes no pensamento dito científico recente. Hans J. Eysenk (King’s College London), Richard Herrnstein (Harvard) e os neoliberais há tempos vêm expressando preocupação com os efeitos negativos do enfraquecimento da seleção natural sobre os que herdaram menor aptidão em virtude do Estado de Bem-Estar Social. O silogismo de Herrnstein é claro: 1. Se as diferenças de atitude mental se herdam, e 2.se o êxito social requer essas atitudes, e 3. se a renda e o prestígio dependem do êxito, 4. então o ‘status social’ (que reflete a renda e o prestígio) estará baseado em certa medida nas diferenças herdadas pelas pessoas: os mais capazes e enérgicos sobressaem[1].
Decorre desse tipo de proposição, a defesa da redução drástica dos direitos sociais, visto que a luta no mercado é o locus da seleção natural: manter artificialmente inaptos contraria a seleção baseada no darwinismo social. Neste, os que forem selecionados negativamente, os fracos e os ineptos, sucumbem como efeito colateral da lei dos mais fortes.
É necessário repetir: a banalização do mal[2] tem uma longa história em que a política de morte do fascismo ocupa um lugar de destaque. Tal como no fascismo da II Guerra Mundial, está sendo dito, com todas as letras, que o Estado deve selecionar os que têm direito à vida. Com base em quais critérios?
As ações advindas do governo Bolsonaro podem ser caracterizadas de diferentes formas. Embora a melhor conceituação ainda esteja em debate, e terá de incorporar o modo de ação do governo Bolsonaro na pandemia, defini-lo como neofascista ou protofascista é uma aproximação razoável. Nesta caracterização, é importante considerar que a linha que separa a civilização da barbárie foi rompida quando empresários, acionistas da bolsa de valores e governo se posicionaram pelo imediato fim da quarentena, a despeito das consequências para a vida humana. A ideia subjacente é que a ‘seleção natural’ irá agir na epidemia: os mais fortes (como os ‘super-homens’ Bolsonaro, o dono do Madeiro, entre outros muitos) sobreviverão, os fracos sucumbirão.
Nos tristes trópicos assolados pelo bolsonarismo, o Estado não poderá ter como critério inicial a existência de uma “raça superior”. Isso não quer dizer que o racismo tenha sido abandonado como critério. Está posto, desde já, que, pelas manifestações presidenciais, seria possível discriminar negros (“Fui num quilombola em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava 7 arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais” [sic]), povos originários (“o índio mudou. Está evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós” [sic]), nordestinos (“Daqueles governos de paraíba, o pior é do Maranhão. Tem que ter nada com esse cara” [sic]) e marxistas ‘culturais’, todos estes, claro, selecionados ainda mais negativamente se mulheres. Implicitamente, os moradores das favelas, em geral, pois seriam os mais atingidos pela decisão de fim abrupto da quarentena.
A seleção dos melhores pela “inteligência” (Q.I.), por motivos óbvios, não seria prudente. Na toada de Herrnstein, os bem-sucedidos devem ser o critério. Pela teologia da prosperidade, o Estado poderia eleger os mais aptos pela “cultura” (reconhecendo, como virtudes, o fundamentalismo, o antissecularismo, a hostilidade à laicidade e ao conjunto da herança Iluminista e a fascinação com certo, grife-se, certo estilo estadunidense de vida) combinando os atributos culturais com o lugar social: os mais bem posicionados economicamente seguramente devem isso a sua natureza humana superior. O determinismo cultural é calibrado pelos dogmas da ‘Guerra Cultural’ e tem como base fundamental a classe social.
A pergunta necessária é: como a epidemia servirá como fator seletivo, obedecendo aos dogmas do Estado bolsonarista? Em sua narrativa, o rebanho bolsonarista nada teria a temer. Afinal, é constituído pelos mais fortes, aqueles que, testados positivo para o Covid-19 perceberiam, no máximo, os sintomas de uma ‘gripezinha’. Entretanto, só o negacionismo pode explicar como o vírus afetará de modo diferenciado os escolhidos e os não escolhidos. O irracionalismo, por isso, é constituinte da ‘Guerra Cultural’. O tratamento diferenciado por classe (acesso privilegiado aos hospitais privados) é facilmente explicável, mas em caso de elevação abrupta de casos, se houvesse o fim generalizado da quarentena, ainda que confinando os idosos, provocaria tal colapso no sistema de saúde que dificilmente os “escolhidos” sairiam ilesos. Daí, novamente, a necessidade dos fatos alternativos.
É certo que a classe trabalhadora, em tempos de ampliação desmedida do exército industrial de reserva, é pensada como um público que deve ser mais duramente atingido, pois constituída pelos que não se destacaram no mercado e, como perdedores, não podem reclamar de seu lugar social, afinal, determinado por sua condição humana. Poderiam fazer um pequeno sacrifício permanecendo quatro meses sem remuneração, por exemplo, e oferecer alguns corpos, preferencialmente de idosos (contribuindo, adicionalmente para as contas da previdência), nas favelas, como preço a pagar pelo fim da quarentena.
Pouco importa o nome, a aposta política do governo é clara. Exige diferentes formas de enfrentamento nas quais os socialistas são imprescindíveis. Não haverá encaminhamento construtivo sem a agenda da esquerda (tema do próximo texto). Somente a esquerda pensará saídas sob o ponto de vista do trabalho.
Um problema se impõe. Não é possível naturalizar o risco de um governo liderado por adepto da política de morte. Não há segredo no intento de ruptura democrática. Por isso, vastos setores sociais já concluíram pela inevitabilidade da mudança de governo. Uma frente democrática deve ser constituída para impedir a saída totalitária.
Assegurada a mudança, a primeira variável tem de ser a epidemia: definir políticas de contenção do vírus, de tratamento digno, proteção aos profissionais de saúde e medidas de mitigação da queda abrupta do poder aquisitivo dos assalariados e dos informais. A votação do dia 26 de março para assegurar renda mínima aos precários é um alento, contudo, outras medidas como a suspensão dos aluguéis pelo período da quarentena e da reorganização da economia, gratuidade do transporte, cestas básicas, gratuidade de água e luz no período etc. A maioria dessas medidas é consensual entre as forças democráticas, mas não para o conjunto da grande burguesia. Tampouco existe consenso sobre as alternativas após o fim da epidemia. A continuidade das políticas neoliberais, cada vez mais extremadas em virtude da crise subjacente, não afastará o espectro da morte de muitos que irão sucumbir por falta de condições materiais de vida. A questão da estratégia, por conseguinte, é um tema axial para a esquerda brasileira.
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[1] . Ver EYSENK, H.J. La desigualdade del hombre. Madrid: Alianza, 1987; HERNSTEIN, R. and MURRAY, C. The bell curve. Intelligence and class structure in American Life. NY: The Free Press, 1994. Citados por Jurjo Torres. Educación en tiempos de neoliberalismo. Madrid: Ed. Morata, 2007.
[2]. Hanna Arendt. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
*Artigo publicado originalmente na Carta Maior
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