O aprofundamento da crise brasileira e a disputa institucional entre os líderes do Congresso, a maioria dos governadores e o governo Bolsonaro está entrando em uma fase aguda. O início da circulação do vírus pelo território do país acelerou os conflitos políticos, inclusive por iniciativas grotescas do próprio Bolsonaro. Contudo, é necessário pensar até que ponto o agravamento dessa crise chegou até a caserna, um dos esteios do governo federal e mais importante instituição do Estado.
A notícia que circulou em 26 de março, de que houve a troca de comando do Estado Maior e de 32 comandos, pode sugerir que Bolsonaro planeja se livrar de eventuais obstáculos às suas pretensões de se manter no poder a qualquer custo, inclusive recorrendo a um eventual fechamento do regime. É um truísmo afirmar que sem o apoio das Forças Armadas uma manobra ousada como esta será impossível. A pergunta é se ele conta com os militares para tal aventura.
Na última sexta, de acordo com reportagens publicadas na Folha e Estadão, comandantes manifestaram desconforto com a possibilidade de que a radicalização do discurso de Bolsonaro envolva a imagem das Forças Armadas. Se há essa suposta visão sóbria da cúpula militar, essa mesma cúpula preocupa-se com o fato do presidente da República ter capacidade de interpelar extratos médios e baixos das Forças, como também as PMs. Por sua vez, o El País relatou que algumas reuniões movimentaram a cúpula militar ao longo dessa semana, onde se discutiram os possíveis cenários oriundos de ações de Bolsonaro, entre eles um eventual impeachment deste. Mesmo com algumas restrições, os comandantes teriam sinalizado apoio a um hipotético governo Mourão. De qualquer modo, calculam que um afastamento de Bolsonaro não aconteceria em curto prazo.
A agitação bolsonarista agora se dirige diretamente a mobilizar suas bases para atos em frente aos quartéis no dia 31 de março. Qual a sua capacidade de mobilização ainda não está clara. Todavia, é imprudente subestimar tal dispositivo. De qualquer modo, sinais de que categorias como a dos caminhoneiros (naturalmente atingidos pela imposição da quarentena) podem apoiar a manobra são crescentes, assim como empresários (que através de organizações como Brasil 200 seguem investindo na desmobilização da quarentena) que se movimentaram ao longo da semana para pressionar pelo fim do isolamento social. Tudo isso pode tornar a situação explosiva.
Se nos resta agora apenas especular, é importante situar a questão da participação dos militares no processo político brasileiro. Fugir de esquemas ilusórios que povoam os comentários políticos, mesmo entre articulistas da esquerda, é mais do que nunca necessário.
A mitologia liberal das Forças Armadas profissionais
A mudança anunciada no comando das Forças Armadas alimentou a desconfiança sobre uma manobra golpista mas, de acordo com reportagem publicada no portal da revista Época, tal modificação não obedece a conjunções políticas. Seria apenas um procedimento burocrático realizado todo ano.
“Embora a data das mudanças esteja programada para o dia do aniversário do Golpe de 1964 e tenham ocorrido em meio ao momento mais agudo do governo Jair Bolsonaro, não há, segundo oficiais ouvidos pela coluna, nenhuma razão política por trás. Ou seja: a mudança era prevista.” (“Bolsonaro troca chefe do Estado-Maior e outros 32 generais”)
É óbvio que havendo razões políticas, dificilmente oficiais das Forças Armadas revelariam sua natureza à imprensa, especialmente se tramadas como uma conspiração, ilegal por natureza. Contudo, a mudança obedece roteiro de oficiais sendo enviados para a reserva e substituídos por oficiais de forma regular, como é o caso do cargo de comandante do Estado Maior do Exército, vago desde que o general Braga Neto assumiu a Casa Civil.
Embora tenha esclarecido a natureza regular da mudança, o jornalista Luiz Nassif em seu portal tratou de comemorar a consolidação da posição do general Edson Leal Pujol, caracterizado por Nassif como “estritamente legalista e profissional”. As palavras chave aqui são essas: legalista e profissional.[1]
Essas palavras remetem a velha formulação de politólogos latino americanistas que, no início da década de 1960, elaboraram tratados sobre a marca militarista no processo político na América Latina. Cientistas políticos como Edwin Lewis, J. J. Johnson e mais tarde Samuel Huntington atribuíram como causa da regularidade com a qual os militares intervinham na política latino americana a “falta de profissionalismo”. Partindo da teoria da modernização, acreditavam que a velocidade como as estruturas econômicas e sociais mudavam no subcontinente (com processos de urbanização e industrialização), não eram acompanhadas pelas estruturas políticas. E daí que, de acordo com esses autores, a política era dominada por “não profissionais”, entre os quais as Forças Armadas.
Havia também o fato de que a debilidade das estruturas políticas republicanas tornavam em muitas sociedades as Forças Armadas as únicas instituições nacionais, capazes de implementar um “projeto modernizante” (a exemplo do processo turco no início do século XX) e daí não só a regularidade, mas também o sucesso com que militares intervinham na política em detrimento dos civis. Nesse sentido, recomendavam a profissionalização das Forças Armadas como suposto antídoto ao intervencionismo militar.
Contudo, mal envelheciam os livros e artigos desses autores, o ciclo de ditaduras militares na América do Sul implodiu as certezas desses politólogos. A verità effetuale della cosa é que as Forças Armadas mais profissionalizadas do continente protagonizaram os mais violentos regimes ditatoriais, como foi o caso especialmente dramático do Chile.
A questão de fundo é que, sendo a mais importante instituição do Estado capitalista, as Forças Armadas regularmente participam do processo político como mantenedoras da ordem de classes, não só quando intervém de forma espetacular. Acreditar que tal instituição pode ser “apolítica” é puro doutrinarismo liberal. E no quadro do capitalismo dependente latino americano, comumente os militares estiveram e estão alinhados ao imperialismo estadunidense para garantir os interesses que articulam as classes dominantes centrais às residentes, como foi o caso patente das ditaduras militares que banharam de sangue o Cone Sul dos anos 1960 até os 1980.
Daí que as forças nacionalistas que, no interior das Forças Armadas se opuseram ao imperialismo, foram um dos alvos dos saneamentos institucionais ocorridos imediatamente a instauração dos regimes brasileiro em 1964 e chileno em 1973. No caso brasileiro, não é estranho que hoje sejam as Forças Armadas sustentáculos de um governo entreguista como o de Bolsonaro.
Contudo, uma das questões capitais para as Forças Armadas é a manutenção da ordem interna, e nesse sentido seria importante pensar como, apesar do apoio ainda significativo, o próprio governo Bolsonaro seja um fator de permanente perturbação social. Por sua natureza fascista (ou proto-fascista, neofascista, etc.), o governo Bolsonaro precisa da mobilização permanente de suas bases sociais.
Se essa é parte de uma estratégia para, a partir da instabilidade, levar a uma ruptura institucional que dê as Forças Armadas um protagonismo ainda maior no aparelho estatal, pode fazer sentido que estas estejam totalmente alinhadas com o projeto bolsonarista. Se, diferente disso, o estilo de governo que segue produzindo crises permanentes com outras instituições não tenha no horizonte um novo regime político, talvez as Forças Armadas não embarque na aventura até o fim.
Na última sexta (27/03), respondendo a uma indagação do aliado apresentador Datena da Band sobre se ele pretendia dar um golpe, Bolsonaro prontamente respondeu: “Quem quer dar um golpe jamais falaria.” Quem quiser, que siga acreditando que isso é só um blefe.
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